.feed-links{display:none !important;

Total de visitas

domingo, 20 de março de 2016

Taquinho de Minas=

Taquinho de Minas=
© Copyright 2013 Taquinho de Minas
1ª Edição - Ano da Edição: 2013 - Belo Horizonte
Produção Executiva: Selma Ferreira Revisão: Heloísa Rocha de Alkimim
Ilustrações em nanquin: Luna Almeida e Rúbia Almeida Ilustração da capa: Zeca Penido
Fotos: Selma Ferreira
Projeto gráfico: Otávio Bretas
FICHA CATALOGRÁFICA
M663v  Minas, Taquinho de
Viagem de Trem/Taquinho de Minas Belo Horizonte: o autor, 2013
152p.  il.
ISBN: 978-85-915284-0-0
1..Literatura Brasileira - Contos        I. Titulo.
CDU: 82-34(81)
CDD: 869
Gráfica e Editora o Lutador Rua Irmã Celeste, 185 - Planalto
31730-743 - Belo Horizonte - MG Fone : (31) 3439-8000
.olutador.com.br

Taquinho de Minas= a seguir

SUMÁRIO
Prefácio          7
Agradecimento           9
O Sonho Real 11
Sorte, ou Azar?          15
O Segredo do Rei      19
Menino Travesso em Noite de Tempestade  25
Muda Revelação        31
Liberdade aos Pássaros          39
Compadre da Onça    45
Mentiras Puras            49
Verdes Lágrimas        53
O Salvador     57
Pequeno Líder            61
No Banco da Praça    67
Capricho Caprichado 71
Mulher Misteriosa      77
A Cidade do Sonho   89
O Sábio           95
O Trapalhão na Noite 99
A Maior Riqueza        109
A Caminho do Além  113
Noite de Princesa, Dia de Teresa       119
Últimos Suspiros        127
Solidariedade Animal            133
Entre a Confissão e a Condenação    141
Viagem de Trem         147

PREFÁCIO
Foram as madrugadas frias
que me trouxeram a inspiração! Foram as manhãs ensolaradas que me aqueceram o coração!
Foram as tardes verdejantes que me encheram de emoção!
Foram as noites enluaradas
que me inebriaram de paixão!… E então me punha a escrever:
jorrava de mim, como de um rio caudaloso, um manancial de histórias
que eu tanto quero contar…
O autor

Agradecimento
Mais uma vez, com o apoio imprescindível de pessoas cuja alma é provida de solicitude, foi possível realizar esta obra que vem desaguar na literatura brasileira.

O SONHO REAL
Era uma vez uma menina muito pobre; chamava-se Luísa e era inteligente, bonita, educada e obediente! Ela acalentava um sonho, talvez o maior de uma criança: presentear a sua querida mãezinha no dia das mães. Mas, como, se era tão pobre, humilde, filha de uma lavadeira?!
Assim pensava Luísa em direção à escola, cami- nhando lentamente pelas ruas do bairro onde morava. A menina levava os cadernos debaixo do braço e, na merendeira, apenas um pão com manteiga e uma garrafinha de limonada.
Ao chegar à escola, Luísa avistou os coleguinhas reunidos a um canto do pátio.
–          Domingo, papai e eu vamos almoçar num restaurante com a mamãe! Contou Marcos, sorridente.
–          Nós  vamos  ao  clube,  mamãe  adora piscina!
Relatou Vanessa, movimentando os braços.
–          Minha mãe prefere ir para o sítio do vovô, ela disse que está cansada do barulho de cidade grande. Falou Gilberto, o mais alto do grupo.

Só Luísa não  tinha  o  que  comentar; encostada à parede, com olhos tristes, escutava atentamente a conversa que prosseguia:
–          A gente vai viajar, é provável que eu nem venha à aula na segunda-feira.
Todos se viraram para a pequena Cíntia, espantados.
–          A gente quem? Indagou Flávio, curioso.
–          Meu pai, minha mãe, minha avó, meu irmãozinho mais novo e eu. Respondeu ela, contando nos dedos.
–          Puxa vida, cinco pessoas! Exclamou Gustavo, filho único de pais separados.
–          Vocês vão aonde, posso saber? Interrogou Adriana, sem acreditar.
Mas não houve tempo para Cíntia informar o lugar, pois a sineta tocou e o grupo se dispersou em correria rumo à sala de aula. Luísa se pôs a andar bem devagar; foi a última a entrar na sala, sentou-se ao fundo e permaneceu calada em meio a uma grande algazarra.
Quando a professora passou pela porta, os alunos fizeram silêncio total.
–          Boa tarde, turma!
–          Boa tarde! Responderam em coro.
– Antes de iniciar a aula de hoje, preciso dar um aviso. Expectativa geral.
–          Amanhã, pessoal, não haverá aula. Informou ela.
–          Oh! Fez a classe inteira em uníssono. Então, a professora explicou o motivo:
–          Como vocês sabem, domingo próximo será o dia das mães; por isso, a escola foi convidada para assistir a uma linda peça de teatro sobre essa data.

–          Oba! Gritaram os alunos, batendo palmas.
–          Alguém aqui já foi ao teatro?
As crianças levantaram o dedo indicador, menos Luísa; a professora olhou-a com pena!
–          Professora, é necessário trazer lanche? Quis saber Vítor, o gordinho da turma.
Ela balançou a cabeça negativamente.
Carlos ficou de pé para falar mais alto, mas, infelizmente, se atrapalhou.
–          Eu tenho certeza de que a gente vai de ônibus “espacial”!
E a turma caiu na gargalhada. Apesar do engano do garoto, a professora confirmou com um gesto; por fim, encaminhou-se ao quadro e começou a escrever a primeira lição.

–          Por que você está chorando, Luísa? Perguntou- lhe Gabriela ao final da peça.Luísa enxugou as lágrimas num lencinho cor-de- rosa e sorriu para a coleguinha ao lado.
Após os aplausos, a atriz que fez o papel da mãe dirigiu-se à plateia:
–          A direção do espetáculo escolheu uma criança para receber um prêmio, pela emoção que ela sentiu durante a peça.

Suspense total. A atriz continuou:
–          É aquela menina loirinha sentada ali na terceira fileira. Completou, apontando Luísa.
Luísa nem se mexeu.
–          Vá, Luísa, ela está chamando-a. Disse Amanda à sua frente.
A professora veio buscá-la, e conduziu-a pela mão até o palco.
–          Qual é o seu nome, bonequinha? Indagou a atriz com meiguice.
–          Luísa de Jesus. Respondeu a menina, timidamente.
–          Levante a cabeça, para que todos vejam seu rostinho lindo! Pediu a professora, acariciando-lhe os cabelos compridos.
–          Como se chama a sua mamãe? Tornou a atriz. Luísa falou com voz clara:
–          Maria de Jesus.
Nesse instante, um homem grisalho aproximou- se da garota, entregando-lhe uma mochila e uma caixa magnificamente embrulhada em papel azul celeste!
Na volta para casa, Luísa transbordava de contentamento ao ver o seu sonho se transformar  em realidade; o  coração  palpitava  de  alegria  só  de imaginar o momento de presentear a amada mãezinha, no domingo Dia das Mães!

SORTE, OU AZAR?
Acordei numa manhã chuvosa de segunda-feira.
–          Puxa, quinze para as seis! Exclamei, percebendo que não alcançaria o ônibus em tempo.
A chuva fustigava a vidraça da janela do meu quarto de pensão. Em vinte minutos, já de banho tomado, desci apressado as escadas.
–          O café é servido a partir das seis e meia, moço. Informou a mulher, enquanto passava pano no chão da copa.
Na rua, a tempestade caía forte, encharcando-me sem dó! Eu esquecera o guarda-chuva no armário. Entrei na padaria da esquina.
–          A nova remessa de pão sai do forno em cinco minutinhos. Falou a moça no balcão.
Fiz que sim com a cabeça e pedi um café com leite.
–          Ai! Gemi ao queimar a boca com o líquido fervente.
Após dez eternos minutos, os pães chegaram. Perdi o ônibus das seis e trinta. Mastigava um pão sem manteiga, quando senti um alguém tocar de leve o meu braço.
–          Moço, me dê um trocado? Choramingou a criança ao lado.
Entreguei-lhe o outro pão e apontei a xícara de café com leite esfriando sobre o balcão. Atravessei correndo a rua e quase fui atropelado.
–          Ô, maluco, cuidado!
Virei para trás e só vi um carro cinza passando.
–          Para que tanta pressa, moço?
Alguém me puxou pela mochila. Parei, sem reação.
–          Estou atrasado para o serviço. Expliquei, sem ao menos ver quem era.
O sujeito embargou-me o caminho, olhando-me de frente. O aguaceiro cessara, felizmente.
–          Quero lhe fazer um convite.
Fitei-o, mas não o reconheci; sua fisionomia e seus cabelos brancos não me lembraram ninguém.
–          Domingo, eu faço aniversário, vá almoçar comigo! Convidou ele, sorrindo.
–          Mas eu nem sei quem é o senhor. Disse-lhe, sem jeito.
–          Você não é o filho do Antenor? Balancei a cabeça negativamente.
–          Desculpe-me, rapaz, é a velhice! Lamentou ele, soltando-me.
Continuei a andar.
–          Foi por água abaixo o meu primeiro dia de trabalho! Murmurei desolado.
Enfim, consegui pegar o ônibus das sete e quarenta.
Cheguei à fábrica às oito e cinquenta; e, para a minha surpresa, o portão estava aberto. Ao entrar, avistei uma multidão de operários no centro do pátio. Um homem gordo e calvo relatava que, no início daquela manhã, ocorrera um assalto na empresa.

O SEGREDO DO REI
Vivia num castelo ao sul da Europa um rei, cuja história correu o mundo: Soraya, sua primeira esposa, tinha os cabelos negros e morreu numa noite sem lua, ao pular de um despenhadeiro.
–          Bom dia, senhor, posso abrir as janelas? a manhã está linda! Perguntou-lhe a camareira com olhos baixos.
–          Sim. Respondeu ele, à meia voz.
–          Vossa Majestade deseja tomar o café aqui no quarto? Quis saber ela, descerrando as janelas.
–          Prefiro. Tornou o rei, grave.
–          Enquanto preparam ao senhor um magnífico café, direi ao mordomo que venha auxiliá-lo no vestuário.
A um aceno afirmativo de cabeça, a mulher deixou os aposentos e dirigiu-se pressurosa à cozinha.
Sibele, a segunda esposa do rei, tinha os cabelos castanhos e foi encontrada morta com uma faca cravada no peito; descobriram-lhe o corpo a dez milhas de distância do castelo.
Depois de transmitir a ordem à copeira, a camareira comentou com o mordomo:
–          Eugênio, Sua Majestade optou por tomar o café no quarto. – Achei-o muito estranho hoje. Concluiu ela, aflita.
–          Não se preocupe, Luzia, o rei fica invariavel- mente assim diante de um grande acontecimento. Tranquilizou-a o bom mordomo e, encaminhando-se às escadas, disse:
–          Então, vou ajudá-lo a vestir-se.
A terceira esposa do rei era Sarah. Essa tinha os cabelos loiros, além de ser a mais jovem e bela das três castelãs! Sua morte, entretanto, foi a mais trágica de todas: sabe-se que ela se perdeu na selva e que as feras devoraram-na.
–          Com licença, senhor. Pediu o mordomo, assomando à porta.
–          Entre. Autorizou o rei, de pé ao lado da cama.
–          Eugênio, como andam os preparativos da viagem? Sem interromper o serviço, o mordomo garantiu-
lhe sorridente:
–          Tudo arranjado nos mínimos detalhes, e a seu gosto!
–          Eugênio. Chamou-o, carrancudo.
–          Pois não, senhor.
–          Refiro-me, em especial, às minhas caixas.
–          Estão esmeradamente espanadas, devidamente ajeitadas na mala, e envoltas em túnicas. Minuciou o mordomo, orgulhoso.
A porta do quarto rangeu, abrindo-se em seguida; por   ela   passou   uma   criada   empunhando   duas bandejas e, ao depositá-las sobre a mesa, retirou-se sem fazer ruído.
–          Excelente apetite, senhor, vejo-o na hora do almoço.
Assim que Eugênio saiu, o rei debruçou-se na janela por alguns instantes, depois sentou-se à mesa e se pôs a comer com voracidade.
Ao fim daquela luminosa manhã, chegou ao castelo uma carruagem da qual desceram dois homens. Um criado os conduziu à presença do mordomo, que os recebeu solícito:
–          Sejam bem-vindos ao castelo do rei…
–          Somos amigos de velha data! Cortou-o o mais alto.
–          Desde os tempos da puberdade. Acrescentou o outro.
–          Lamento profundamente, cavalheiros, mas o rei não poderá revê-los. Desculpou-se Eugênio, pesaroso.
–          Está enfermo, o nosso amigo? Arriscou um deles.
–          O que ele tem, meu Deus? Assustou-se o outro, erguendo-se nas pontas dos pés.
–          Sua Majestade, felizmente, goza de excelente saúde!
Aliviados, os visitantes esboçaram um sorriso.
–          Sendo assim, por favor, diga a ele que quem está aqui é Visconde de Serra Branca. Informou o primeiro.
–          E eu sou o Marquês de Palmeiral. Identificou-se o segundo, curvando-se numa mesura excessiva.
O mordomo olhou-os fixamente nos olhos e comunicou-lhes, peremptório:
–          É escusado insistirem, porque o rei foi taxativo ao dizer que não quer ver nem a própria sombra.
O rei banqueteava em seus aposentos, quando o mordomo aproximou-se; e, sem delongas, relatou-lhe o episódio. O monarca ouviu-o em silêncio, por fim falou:
–          Você é o servo mais fiel em todo o meu reino, Eugênio!
–          Obrigado, senhor, não faço mais do que a minha obrigação.
Ao término da tarde desse ensolarado dia, o rei encaminhou-se para onde o mordomo havia posto  as malas.  Abriu  a  maior  delas  e  inspecionou-lhe  o conteúdo; por sob as túnicas, suas mãos tocaram levemente as caixas e, com a respiração suspensa,  ele trancou a mala rapidamente, em cuja tampa seus lábios roçaram como num beijo sagrado!
Ao anoitecer, Eugênio recebera no castelo a visita de duas religiosas.
–          Eis o dinheiro que Sua Majestade lhe prometeu, Madre.
–          As obras de caridade o agradecem, e as pobres crianças ficarão muito felizes! Disse a mulher, recebendo das mãos do mordomo um envelope.
– Orei nunca faltou coma sua valiosa contribuição. Completou a outra irmã de caridade, acompanhando a mais idosa pelo corredor.
–          Boa noite, dignas senhoras! Desejou-lhes o mordomo, à saída do castelo.
–          Eugênio, Eugênio, socorro!
Os berros do rei despertaram toda a criadagem. Veloz como um raio, o mordomo irrompeu no quarto e encontrou-o sentado na cama, suado e ofegante.
–          Cá estou. Que foi, senhor?
–          Eu tive um sonho horrível com elas! Murmurou ele, passando um lenço pelo rosto.
–          Não é nada, Majestade, não se impressione à toa, é apenas o jantar que não fez a digestão. Acalmou-o o mordomo.
–          Elas dançavam em volta de um canteiro de rosas, e me acenavam; à medida que eu chegava mais perto, o canteiro crescia e elas se diminuíam; de repente, um fogaréu se apresentou à minha frente, além da fumaça que me sufocava…
O mordomo compadeceu-se do rei, e falou-lhe com brandura:
–          Hei de velar pelo seu sono nesta noite; amanhã, a viagem far-lhe-á bem; descanse em paz, senhor!
O dia amanheceu chuvoso. O mordomo acom- panhou o rei até o convés do navio.
–          Boa viagem, Majestade, divirta-se; afinal, o senhor sempre almejou conhecer a Ásia!
Chovia forte quando o navio zarpou mar afora. A tempestade desabou em pleno oceano, inexorável e fatal. Após duas semanas do naufrágio, um pescador retornando          da        pescaria           sentiu  que      algo     batera de  encontro  à  sua  canoa.  Este,  ao  pegar  o objeto, constatou que se tratava de uma mala.
–          Serão tesouros?! Exclamou ele, retirando as caixas contidas na mala.
Os olhos do pescador perscrutavam o interior  de cada uma das caixas; no semblante do homem, estamparam-se o espanto e o horror!
Ele afastou com os pés para o canto da embarcação a mala cuja fechadura fora arrombada com uma ferramenta; e, de mãos trêmulas, colocou na mala as três caixas e arremessou tudo ao mar.
–          Papai, o senhor jogou os tesouros para o tubarão? Indagou a criança, incrédula.
–          Esses tesouros não são abençoados, filho.
E, ao olhar outra vez para as águas, o pescador não avistou mais a caixa preta; a vermelha, ainda estava meio submersa; porém, a amarela flutuava ao longe como um pingo de sol!…

MENINO TRAVESSO EM NOITE DE TEMPESTADE
Era uma vez um menino que se chamava Loim; ele morava num sítio, onde havia um pomar cheio de árvores carregadas de frutas maduras.
Um dia, seus pais foram à cidade e proibiram-no de sair de casa. Mas Loim era levado, desobediente e teimoso.
Quando anoiteceu, e a sua irmãzinha Camila adormeceu, ele pulou a janela e correu para a estrada. Naná, a empregada, sem desconfiar de nada, vendo que tudo estava em silêncio, também foi se deitar.
Muito longe, havia uma luz; Loim ficou fascinado por ela, partindo em sua direção.
O menino atravessou uma ponte, passou debaixo de uma cerca de arame e subiu a montanha; no topo desta, havia uma fogueira perto da qual dançava uma velha apoiada numa vassoura. Assim que ela avistou Loim, chamou-o:
–          Meu neto, venha cá, meu netinho.
Loim hesitava, não deu um passo à frente.
–          Eu tenho docinhos, bolo de chocolate, tudo para você, meu netinho!
Loim, que era louco por docinhos e bolo de choco- late, não resistiu à tentação; acompanhou a velha e entrou com ela num lugar. Era um lindo castelo! Ele ficou encantado com a piscina redonda, a sala de jogos de todas as espécies, o parque repleto de brinquedos coloridos…
–          Você quer brincar? Perguntou ela, bondosa. Ele fez que sim com a cabeça.
–          Conte para a vovó, qual é o seu nome?
–          Loim. Respondeu ele, sorrindo!
–          Rá-rá-rá, Loim parece com passarim. Ela soltou uma gargalhada.
Depois, a velhinha puxou Loim pela mão, dan- çando agarrada à sua vassoura. Ao final do corredor, ela abriu uma porta de vidro e entraram num galpão; Loim levou um enorme susto e quase caiu no chão.
O menino avistou uma enorme cascavel pronta a dar o bote; ele correu para a direita. Lá, um leão rugia com tanta ferocidade, batendo violentamente as patas na grade da jaula, que o coraçãozinho de Loim disparou. Apavorado, ele correu para a esquerda; ali, uma onça pintada, trepada numa árvore, mostrou- lhe as garras afiadas.
–          Socorro! Gritou ele.
–          Rá-rá-rá, Loim, filhote de passarim, então voa, senão os bichos vão devorar você. Respondeu a velha malvada.
O menino olhou na direção da  voz  e,  para  a sua surpresa, viu a velhinha sentada num banco de madeira; ela segurava uma bandeja com docinhos e dois pedaços de bolo de chocolate.
O leão conseguiu arrebentar a jaula, a cascavel se arrastava pelo chão, a onça desceu do galho.
–          Socorro! Gritou Loim, de novo, morrendo de medo.
–          Rá-rá-rá, eu adoro crianças que desobedecem aos pais, não há neste mundo comidinha mais saborosa! Comentou a velha bruxa.
Loim resolveu correr para os fundos daquele galpão imundo, horroroso. De repente, ele encontrou uma escada de ferro na qual subiu rápido feito um raio, alcançando o telhado. A onça foi atrás dele veloz como um foguete e saltou sobre a escada.
O menino teve uma ideia genial: empurrou a escada com toda a força que os seus braços gordinhos foram capazes; esta girou e tombou nos pés do leão, que ficou urrando de dor. Enraivecido, o rei da selva atacou a onça, e as duas feras se enfrentaram numa luta de vida ou morte. A cascavel se enroscou dentro de um pneu de caminhão e permaneceu quietinha.
Aliviado, Loim nem quis assistir à briga dos bichos. Andando pelo telhado, no escuro, ele não enxergou bem o caminho e caiu lá de cima.
O menino rolou na ribanceira até chocar o corpo contra uma pedra. Ele passou as mãozinhas pelos cabelos sujos de terra, depois limpou com a camisa o rosto ensanguentado.
Começou a chover forte; trovões explodiram no céu, relâmpagos cortaram o ar. Loim se levantou, mas uma rajada de vento o derrubou. A chuva caía pesada; à sua volta, apenas o breu.
O menino criou coragem. Decidiu sair dali, contornando a pedra para se proteger da ventania. Espantado, observou a cerca de arame arrancada e o rio transbordando pela enchente; a ponte, as águas bravias levaram.
Como um milagre de Deus, surge diante dos olhos de Loim uma cabana. Ele desafia o temporal e vai se esconder dentro dela; chegando lá, uma bela surpresa.
Um homem estava sentado num tamborete, fuman- do um cigarro de palha. Ao ver Loim entrar, exclamou:
–          Menino, você não é o filho do doutor Eduardo? Loim balançou a cabeça positivamente.
–          O que você está fazendo fora de casa, nesta noite de tempestade? Tornou o homem, pondo-se de pé.
O menino narrou-lhe toda a história nos mínimos detalhes, sem tirar uma vírgula, não se esquecendo de nada.
O homem escutou atentamente, por fim falou:
–          Oh! Menino, por que você fez isso com os seus pais? Doutor Eduardo é tão bom, nunca me cobrou uma consulta médica, sempre ficou satisfeito com os peixes que eu pesquei para ele!
Loim abaixou a cabeça, envergonhado.
O homem teve pena do menino, que trazia a roupa encharcada e tremia de frio.
–          Tire a roupa molhada e vista esse paletó; eu vou levar você para a casa na minha canoa. Determinou  o homem, apontando um paletó dependurado num prego.
O menino ficou engraçadíssimo usando o paletó que, de tão comprido, cobria-lhe os pés.
A chuva tinha diminuído bastante quando os dois saíram rumo ao rio. O homem ajudou o menino a subir na canoa. A travessia foi difícil, mas o pescador era ótimo remador. Loim, travesso que só vendo, sorria todas as vezes em que a canoa deslizava e quase virava.
O homem e o menino chegaram ao sítio no momento em que a família de Loim se encontrava reunida; além dos pais e da irmãzinha Camila, também estavam presentes os avós, os tios, os primos, todos rezando pela volta do menino fujão.
Mas, assim que Loim apareceu na porta, foi aquela algazarra: uns batiam palmas, outros pulavam de alegria, e, nos braços dos seus parentes, ele foi carregado como um troféu; um coro ecoou bem alto: Loim! Loim! Loim!…
A mãe do menino abraçava o filho e chorava de emoção!
–          Obrigada, Senhor, por me trazer meu filhinho querido são e salvo! Dizia ela, beijando-o com ternura! Enquanto Loim era recebido pelos familiares, Naná, a empregada, pôs para assar no  forno  as mais       deliciosas            empadas;         doutor Eduardo          não perdeu tempo e comprou refrigerantes; até  foguetes
espocaram, como em noite de São João!
O alvoroço despertou a curiosidade da vizinhança. Uma mulher gorda rompeu a multidão de pessoas e, percebendo que Loim era o centro das atenções, disse-lhe:
–          Parabéns, Loim, feliz aniversário! Aí, foi uma gargalhada geral.
Ao término da festa, Naná se dirigiu a Loim:
–          Vá tomar um banho e trocar essa roupa, menino, você está parecendo com Judas.
Camila riu baixinho no colo da mãe.
Após o banho, o pai de Loim chamou-o a um canto e falou:
–          Meu filho, amanhã, sua mãe e eu vamos conversar com você; hoje, tudo acabou em festa, mas poderia ter acabado em velório.
O menino arregalou os olhos.
–          Agora   vá   dormir,   você   precisa  descansar.
Completou o pai.
Na cama, o menino ficou pensativo…
–          Qualquer dia eu vou fugir novamente, só para saber como é um velório; será que é bom?!
Loim adormeceu como um anjo!

MUDA REVELAÇÃO
O homem tocou a campainha numa casa de muro esverdeado. Do alto do alpendre a mulher reconheceu-o pela grade do portão e sentiu o coração pulsar acelerado. Ele hesitou se deveria ou não apertar o botão pela segunda vez; ela, estática    e confusa, esperou paciente um novo toque. Enfim, os dois se decidiram simultaneamente: o homem acionava a campainha, enquanto a mulher descia as escadas lentamente.
Fitaram-se em silêncio por alguns instantes. Eram sete horas de uma noite de quarta-feira, sem lua, num final de mês.
–          Entre, Pedro. Convidou ela, dando-lhe passagem.
Ele permaneceu imóvel, depois avançou indeciso em direção à escada. Ela trancou o portão, guardou as chaves no bolso da jaqueta e seguiu-o à distância.
Fazia frio, e o dia estivera chuvoso pela manhã.
Quando a mulher entrou na sala, encontrou-o de pé olhando fixamente para um quadro na parede. Da moldura, um homem garboso de barbas castanhas e olhar sereno sorria para a vida!
–          Meu Deus! Balbuciou ela, aproximando-se.
–          Jorge tem o semblante tão feliz! Exclamou o homem sem tirar os olhos da fotografia.
–          Sente-se, Pedro, vou preparar um café para nós.
Anunciou ela, embaraçada.
Pedro obedeceu-lhe, acomodando-se confortavel- mente numa poltrona perto de uma estante repleta de livros.
O telefone tocou estridentemente, assustando a mulher parada no meio da sala.
–          Alô? Atendeu ela na terceira chamada.
–          Sou eu mesma, fale mais alto porque a ligação está ruim.
Pedro escutou-lhe a voz estranha, meio trêmula.
Sobressaltou-se.
–          E  agora,  por  que  eu  não  contei  tudo  logo?
Censurou-se ele em voz baixa, erguendo-se.
–          Sim, Marisa, pode continuar que eu estou ouvindo melhor agora. Dizia a mulher, pressionando o fone ao ouvido.
Pedro adiantou um passo, suas mãos crisparam le- vemente, e, com a respiração suspensa, prestava atenção.
–          Pedro acabou de chegar, mas… Uma tosse seca cortou-lhe a frase.
–          …ainda nem conversamos direito. Completou a mulher, esticando nervosamente o fio do aparelho.
Uma rajada de vento fechou com estrondo a porta de um quarto no andar superior da residência.
–          Venha o mais depressa possível, Marisa.
Pedro sentiu-se um pouco aliviado com a expectativa de mais uma pessoa presente no recinto, pois quem sabe assim não seria mais fácil…
–          Aguardo você, então. Concluiu a mulher, desligando.
Pedro correu à estante, pegou um livro e se pôs a folheá-lo distraidamente.
–          Que coincidência, Jorge está lendo justamente esse, ele adora contos! Comentouamulher, retornando à sala.
Pedro fechou o volume de capa grossa e colocou-o no mesmo lugar; mirou-a e falou-lhe antes de se afastar da prateleira de livros:
–          Esta vida parece um conto…
Debruçado na janela, Pedro notou que a mulher se retirou da sala. Enquanto fumava um cigarro, lembrava- se de coisas longínquas, do tempo em que Jorge e ele eram crianças numa pequena cidade do interior, em cujas ruas de terra brincavam descalços e alegres.
De repente, começou a chover de novo e um cheiro bom de café pairou no ar, trazendo-o à realidade.
–          Tome, Pedro, está fresquinho. Disse a mulher às suas costas, estendendo-lhe uma xícara de louça.
Pedro sorvia o líquido fumegante, olhando a chuva molhar a grama do jardim florido. Ao virar-se novamente, deparou-se com a mulher ainda a fitá-lo; esta desviou os olhos e foi sentar-se na poltrona ao lado da estante; ele imitou-a, automaticamente.
–          Quer comer um biscoito, ou um pedaço de queijo? Ofereceu ela, contemplando-o de frente.
Pedro balançou a cabeça negativamente, esvaziou a xícara e depositou-a sobre a mesinha de centro.
A chuva aumentou, fustigando ruidosamente a vidraça da janela.
–          Marisa está demorando. Comentou a mulher, torcendo os dedos com impaciência.
Pedro ajeitou o paletó nos ombros, o frio se fez mais intenso tal qual a aflição que o aperreava.
–          Jorge não chegou do trabalho, Pedro. Principiou a mulher.
–          Não se preocupe comigo, Olga.
Um trovão retumbou no céu carregado de nuvens.
O telefone tocou de novo.
–          Deixe que eu atenda para você. Prontificou-se ele, pondo-se de pé num salto.
–          Não, não, obrigada, dever ser Marisa avisando que não demora. Gaguejou Olga.
Pedro observou-a precipitar-se para o aparelho.
–          Alô? Atendeu, perfilando-se.
–          Sim, é Olga Moreira de Azevedo. Pedro prendeu a respiração, receoso.
–          Por favor, um instante só para eu apanhar papel e caneta.
Pedro suava de ansiedade, passava frenetica- mente um lenço pelo rosto.
–          Diga o endereço, moço, por gentileza.
A campainha soou três vezes sucessivamente. Olga interrompeu a escrita; Pedro caminhou resoluto para a porta.
–          É Marisa, Pedro, pode deixar que eu abro.
 Ele deteve o passo abruptamente, olhou para trás e viu-lhe o rosto lívido. Uma sensação de mal-estar tomou-lhe conta do espírito.
Olga terminou de anotar, batendo com o fone no gancho. Marisa insistia na campainha, sob a chuva que caía torrencialmente.
Olga fê-la entrar às pressas para o quarto e deu- lhe uma toalha estampada.
–          Enxugue os cabelos e tire esse casaco enchar- cado. Ordenou Olga, dirigindo-se ao guarda-roupa.
–          Por causa da correria, esqueci a sombrinha dentro do armário. Justificou-se Marisa.
Após secar os cabelos compridos, Marisa recebeu da irmã uma blusa de lã cinza.
–          Gastei quinze minutos para chegar até aqui porque vim de táxi, pois se eu tivesse vindo de ônibus…
–          Eu preciso que você me ajude a conversar com ele. Atalhou Olga, ajudando-a a vestir-se.
–          É que Pedro tem um problema cardíaco grave.
Explicou ela num sussurro.
Marisa arregalou os olhos e perguntou espantada:
–          Então, quer dizer que você ainda não contou nada?
Olga aquiesceu; e, com os olhos marejados de lágrimas, falou:
–          Jorge tinha o maior cuidado com Pedro, jamais permitia que alguém o aborrecesse.
O murmúrio das vozes chegava de modo ininteligível até Pedro; este passeava mais calmo pela sala, confiante no apoio que teria de Marisa no momento em que fosse conversar com Olga.
–          Vá distraí-lo, enquanto eu me arrumo para a gente sair. Pediu Olga à irmã.
Marisa encontrou-o inquieto, porém tranquilo.
–          Venha cá, sente-se aqui perto de mim. Convidou ela, apontando o lugar na poltrona à sua esquerda.
–          Como Olga está de saúde? Quis saber ele num impulso.
–          Muito bem, graças a Deus, melhor é impossível!
Respondeu Marisa, esboçando um sorriso.
Pedro olhou a noite escura lá fora, e reparou satisfeito que a chuva amainara um pouco.
–          É que Jorge me disse que Olga tem se queixado de umas dores renais. Informou ele, baixando a voz.
–          É verdade, mas nada tão sério; inclusive, ela foi ao médico ontem à tarde. Confirmou Marisa.
–          Jorge sempre foi bom marido, atencioso demais com a esposa! Emendou ela.
Pedro consultou o relógio: eram sete e trinta e oito; há mais de meia hora que ele estava ali, sem a menor condição de abordar um assunto tão melindroso! Definitivamente, faltava-lhe coragem.
–          Olga não ficará desamparada nunca, pois esta promessa eu faço ao meu irmão! Garantiu Pedro, desabafando-se na presença de Marisa.
Esta se arrepiou dos pés à cabeça ao constatar, boqui- aberta, que Pedro já tinha conhecimento do acontecido.
–          Sim, Pedro, Olga necessitará bastante do seu auxílio. Murmurou ela, refazendo-se.
–          Infelizmente, Jorge não queria fazer essa viagem, parece que ele pressentia o desastre… Lastimou Pedro com voz embargada.
 –         O destino às vezes é cruel, implacável! Enfatizou ele, levantando-se de súbito.
Nesse exato momento, Olga entra na sala de bolsa e trajando luto. Um silêncio pesado caiu sobre os três. Olga e Pedro se entreolharam; e, numa muda revelação, ambos compreenderam que o segredo fora apenas um refúgio onde se esconder de um vendaval.

LIBERDADE AOS PÁSSAROS
A criança chegou da escola e sentou-se à mesa da copa, pensativa. Sua mãe, da cozinha, admirou-lhe os olhinhos azuis!
–          Filha, como foi lá na escola? Perguntou ela, enquanto lhe preparava o lanche.
–          Lindo, muito lindo! Respondeu a menina, num suspiro.
Sônia interrompeu a tarefa, olhou novamente para a filha e contemplou-lhe os cabelos loiros que desciam em ondas até a cintura.
–          Deve ter sido maravilhoso mesmo, porque você está com o rostinho tão belo! Exclamou a mãe, enchendo um copo com suco de laranja.
A garota sorriu, mas continuou calada. Sônia serviu o lanche, estranhando o silêncio da  filha;  esta, no entanto, mastigava de boquinha fechada o sanduíche da sua preferência.
–          Está gostoso o lanchinho, querida? Indagou Sônia, com brandura.
 A filha limitou-se a balançar a cabeça afirmati- vamente.
–          Você não vai contar à mamãe o que a professora lhe ensinou hoje?
Pollyana passou o guardanapo delicadamente pelos lábios, recostou-se na cadeira e respondeu:
–          Aprendemos sobre a importância dos animais, o quanto eles são úteis!
–          Que formidável! Disse Sônia, encantada.
–          Dê alguns exemplos para mim, filhinha. Pediu ela, entusiasmada.
–          Além da carne e do leite, os animais nos oferecem o couro, a pele, os chifres, as penas, entre outras coisas, para a confecção de diversos produtos.
Pollyana falava com convicção; sua mãe escutava-a atentamente.
–          Por isso, precisamos cuidar direitinho dos bichos, permitindo que eles vivam em paz no seu habitat natural! Completou ela, antes de beber o último gole do suco.
–          É verdade, a gente tem desrespeitado os animais. Comentou Sônia, contente com a inteligência da filha. Pollyana morava num espaçoso apartamento. Ela estava no seu quarto, quando ouviu a voz do pai que chegava do  trabalho.  Então,  correu  para abraçá-lo;
este ergueu-a nos braços, dizendo:
–          Filha, o seu aniversário vem aí, e o cachorrinho que você quer de presente é uma beleza!
Pollyana sentou-se no sofá da sala, séria. Luís aproxi- mou-se dela, pegando-lhe as mãos carinhosamente.
–          Papai, eu quero de presente uma bezerra. Luís recuou um passo, espantado.
–          Pollyana, ninguém cria uma bezerra dentro de um apartamento!
Ela sorriu, depois explicou ao pai, tranquilamente:
–          É lógico que não, doutor Luís, vou criá-la na chácara do vovô Manuel.
Sônia assistia à cena, compreendendo perfei- tamente o desejo da filha.
–          Tudo bem, filha, vamos à chácara amanhã cedo, e você conversa com o papai. Propôs Luís, sem colocar obstáculos.
–          Acho  que  seu  Manuel  vai  gostar  da   ideia.
Interveio Sônia, satisfeita.
Luís beijou a esposa e foi tomar banho. O jantar transcorreu em harmonia, a família reunida e feliz!
Do quarto, Pollyana percebeu a empregada ir embora; e, mais tarde, quando os pais foram dormir, seu coraçãozinho bateu acelerado.
–          Vai dar certo. Murmurava ela, confiante. Pollyana se levantou da cama e saiu do    quarto;
pé ante pé, atravessou o corredor; passou pela sala, não esbarrou em nada na copa e, finalmente, entrou na cozinha.
–          Puxa, que escuridão! Balbuciou ela, antes de abrir a porta da área de serviço.
A lua cheia clareou o ambiente. Ela se dirigiu      à gaiola onde morava um casal de sabiás; abriu a portinha e ficou segurando-a, pacientemente.
–          Fujam, podem voar, vocês estão livres agora.
Os pássaros abriram os olhinhos, assustados; caminharam desconfiados pela prisão, mas, ao verem a porta aberta, bateram asas e sumiram na noite enluarada…
Pollyana voltou para o quarto sem fazer qualquer ruído; deitou-se na cama, cobriu-se com o cobertor e rezou:
–          Meu Deus, o Senhor sabe que pratiquei uma boa ação, amém!…
O dia amanheceu ensolarado! Sônia e Pollyana tomavam café quando, de repente, Luís apareceu furioso.
–          Meu casal de sabiás, comprei caro no mercado!
–          O que aconteceu, Luís? Interrogou a mulher, aflita.
–          Fu-fugiram da ga-gaiola. Gaguejava ele, nervoso.
–          Procure de novo, Luís, eles podem estar escondidos atrás do tanque. Sugeriu Sônia, fitando o marido.
Ele rebateu, irritado:
–          Que bobagem, Sônia, os passarinhos já estão longe daqui.
–          Papai, quem sabe eles se cansaram de viver presos!… Opinou Pollyana, com meiguice.
–          Nada disso, filha, foi a empregada que esqueceu a portinha da gaiola aberta ao levar alpiste e água para os bichinhos. Retrucou ele, inconformado.
Sônia serviu café ao marido, colocando à sua frente um delicioso bolo de fubá; por fim, apanhou a bolsa e desceu com a filha para a garagem do prédio.
A viagem até a chácara foi bastante divertida para Pollyana, que olhava as árvores frondosas pela janela do carro e jogava beijinhos para os bichos soltos no mato.
Luís estacionou o automóvel debaixo de uma laranjeira, indo abraçar o velho pai, que o aguardava na varanda.
– Vamos, filha, vovô Manuel está com saudade e espera por nós! Chamou-a Sônia, ternamente.
Mas Pollyana permaneceu imóvel à sombra da laranjeira; dos seus olhos rolavam lágrimas que lhe banharam o rostinho angelical!
Sônia acompanhou o olhar da menina, e encontrou dois sabiás voando alegremente e a cantar uma doce melodia! E, com grande emoção, concluiu que Pollyana, sua filha adorada de nove anos, havia dado liberdade aos pássaros!…
COMPADRE DA ONÇA
A fazenda Rio Velho, de propriedade do Sr. Juca Vieira, era a mais bela da região. Homem sistemático, taciturno, adquiriu suas terras com o suor do trabalho. Sentado na varanda da casa-grande e pitando um cigarro de palha, Juca olhou a estrada e avistou um cavaleiro tocando um boi preto.
–          Compadre Chico a esta hora! Reconheceu ele, aborrecido.
Antes de Chico Barroso cruzar a porteira, Juca identificou o boi preto como sendo o seu Furacão, desaparecido havia dois meses.
–          Bom dia, compadre! Cumprimentou Chico, apeando-se.
–          Bom dia. Respondeu Juca, aproximando-se e estendendo-lhe a mão calosa.
Os dois homens galgaram os três degraus da varanda, sentando-se num banco de madeira sob a janela da sala. E, sem qualquer solicitação, apareceu uma mulher trazendo uma bandeja com quitandas e um bule de café; colocou-os entre eles, retirando-se sem fazer ruído. Puseram-se a comer em silêncio. Por fim, Chico principiou a conversa:
–          Vim propor a vosmecê um negócio, compadre. Juca raspou a garganta e aguardou.
–          É que a patroa não anda boa de saúde, e o doutor me cobrou uma fortuna pela consulta. Explicou Chico, fazendo rodeios.
–          O que a comadre Zefa arranjou? Perguntou Juca, descrente.
Chico coçou a barba ruiva e respondeu:
–          Ah, coitada, uma dor assim nas cadeiras… outra dor aqui no peito…
Juca acompanhava-lhe osmovimentos, sacudindo a cabeça.
–          Mas, mudando o rumo da prosa, é por causa desse boi que eu preciso falar com vosmecê. Disse Chico, entrando de vez no assunto.
Juca olhou para o Furacão; contou-lhe as manchas brancas no lombo, depois fitou Chico Barroso.
Este não perdeu tempo em dizer:
–          Esse boi é digno de um grande comprador, compadre; vosmecê se interessa?
Juca   enrolou   outro   cigarro, displicentemente.
Chico adiantou-se, maleável:
–          Vosmecê põe o preço, eu confio no compadre! Juca retribuiu-lhe o sorriso, agradecido.
–          Se vosmecê concordar, compadre, posso voltar amanhã e pegar o dinheiro…
–          Combinado, então; hoje, o Furacão fica para experiência. Cortou Juca, levantando-se.
 –         Bonito nome, compadre, vosmecê tem bom gosto!
Elogiou Chico, batendo-lhe no ombro amavelmente.
Noite enluarada! Chico Barroso cavalgava pelo pasto da fazenda de Juca à procura do boi preto; porém, o que encontrou foi uma onça pintada junto ao pé de jatobá.
O empregado de Juca Vieira chegou à varanda ofegante.
–          Patrão, o homem veio de novo roubar o Furacão.
Relatou ele, com os olhos arregalados.
Juca mirou o rapaz, tranquilizando-o:
–          Não se preocupe, desta vez Furacão está protegido.
No outro dia, bem cedinho, Chico Barroso mandou o filho buscar o pagamento.
–          Sua bênção, padrinho! Pediu o menino, beijando a mão do fazendeiro.
–          Deus o abençoe, Ricardo, e como tem passado a comadre Zefa?
O pequeno informou, inocente:
–          Mamãe está viajando, mas retorna domingo para o batizado da minha irmãzinha.
Juca tossiu seco, cruzou os braços e esperou com paciência. Enfim, o afilhado tomou coragem e falou:
–          Papai pediu para o senhor me passar o dinheiro da venda do boi.
Juca Vieira falou com pesar:
–          Diga ao compadre Chico, que ontem aconteceu uma desgraça!
O garoto se assustou.
–          Uma onça matou o boi. Ricardo abriu a boca, apavorado.
–          Sossegue, porque eu dei uma lição nela; e, como prova da minha façanha, vou enviar ao compadre o couro da malvada.
Chico Barroso nunca mais pôs os pés na fazenda Rio Velho, alegando que lá tem onça, e das bravas!…

 MENTIRAS PURAS
O telefone toca pela quarta vez, estridentemente.
– Atende, Carla, branquela. Berra a mãe, passando o pano no chão da cozinha.
Ao quinto toque, a garota se levanta languida- mente do sofá reformado e tira o fone do gancho.
–          Alô? Fala com voz sonolenta.
–          Carla, sou eu, Juliana!
–          Oi, Juju, espera um momentinho que eu vou pegar o controle remoto da TV; é que o som tá alto.
Ela se dirige ao aparelho e desliga-o.
–          Diga, querida! Retorna à linha.
–          Puxa, o tel chamou várias vezes, pensei que você não estivesse em casa.
–          É que eu estava no andar de baixo, Juju, sacou?
Justifica-se Carla.
–          Legal, então; eu te liguei ontem, Carla, uma mulher muito brava atendeu e disse que você tinha ido com seu pai à feira…
–          Nada disso, meu bem; essas empregadas não sabem o que dizem, eu fui ao clube. Corta ela, rápida.
–          Carla, desocupa a merda desse telefone, seu pai ficou de ligar, esqueceu que eles roubaram meu celular no pagode, menina? Grita a mãe, do tanque.
–          Algum problema, eu telefonei em horário inoportuno? Preocupa-se Juliana.
–          Não, Juju, imagina, é que o papai está aguar- dando uma ligação internacional, pode continuar.
–          É bom saber que você tem o hábito de ir ao clube aos domingos; sendo assim, a gente vai juntas. Propõe Juliana.
–          Bem, depende da disponibilidade do papai e, cá pra nós, do humor do velho. Esquiva-se ela.
–          Eu compreendo, Carla, os pais que têm filho único, como somos você e eu, pensam que estamos à disposição deles.
–          Cacá, cadê mamãe? Pergunta um garotinho de nove anos.
–          Ih, menino catarrento, sua mãe tá lavando roupa, sai. Ela enxota o irmão.
–          Ô, Carla, coitado, eu sou louca pra ter um irmãozinho!
–          Cruzes, pra quê? Já basta esse filho da lavadeira pra me aporrinhar.
–          Carla, vai catar o feijão pro almoço, sua lerda, enquanto eu vou ali comprar uma carne moída. Ordena a mãe, da rua.
–          Desculpe-me, Carla, acho que estou incomo- dando, sei que está quase na hora do almoço.
–          Fica à vontade, Juju, nós vamos almoçar fora; você acredita, amiga, que a nossa cozinheira não veio hoje, aquela bruxa?
–          Nossa, que chato! Sensibiliza-se Juliana.
–          Carla, eu tenho uma novidade pra te contar: é sobre o Beto.
–Aquele dos olhos verdes? Indaga ela, interessada.
–          Exato; nós estamos namorando, começamos ontem!
Após um breve silêncio, Carla retruca:
–          Eu o acho muito infantil, ele até deu de cima de mim no início do ano, mas não me agradou.
–          Ah, realmente ele me disse que precisa esquecer uma garota que conheceu. Confessa Juliana, conformada.
–          Carmelita, aonde Virgínia foi? Pergunta um negro forte e alto.
– Ju, eu te ligo à noite, é que chegou uma mensagem no meu celular; deve ser a resposta da minha viagem pro fim de semana. E desligou bruscamente.
–          Qual é, João, isso é jeito de me chamar, logo agora que eu estava conversando com meu namorado?!
Carla entra no seu quarto.
–          Caramba, minha mãe arranja cada homem! E bate a porta com força.

VERDES LÁGRIMAS
O dia amanheceu ensolarado, esplêndido! Porém, seu Francisco acordou macambúzio, desa-lentado!
–          O que foi, Chicão, que tristeza é essa? Pergun- tou-lhe o jacarandá, cutucando-o com um galho.
–          Não tenho vontade de abrir os olhos nem para ver este sol! Lamentou o velho carvalho.
–          O velho Chico está assim por causa da Constru- tora. Disse uma meiga goiabeira.
–          Construtora? não compreendo do que se trata.
Comentou o mamoeiro, bocejando.
–          É porque você dorme demais, Alfredo, por isso não ouviu a conversa de ontem pela manhã. Ralhou o jacarandá, irritado.
–          A Construtora vai acabar conosco e construir vários prédios no nosso lugar. Explicou Vera, cujas goiabas estavam maduras e deliciosas.
O jacarandá teve orgulho de sua amiga ser tão esperta.
–          Essa   maldita   Construtora   esquece   que  os móveis do seu escritório vieram de nós! Argumentou seu Francisco, desapontado.
–          É verdade, Chicão, sem contar que nas portas  e janelas também estamos presentes! Acrescentou o carvalho, batendo no peito com imponência.
–          Quanta ingratidão… Eu quero ver quem vai lhes fazer sombra, oferecer-lhes frutos! Redarguiu a laranjeira, indignada.
–          E os pássaros, Helena, será que farão seus ninhos nas paredes?!
A laranjeira mirou o rosto da jabuticabeira no qual se estampou um sorriso irônico, e rebateu solene:
–          Certamente, hão de se refugiar em outros campos…
–          Até mesmo aquele riacho há de secar, não sobre- viverá a tanta poluição! Interveio Nelson, sombrio.
–          Seu Nelson, fale mais alto, por favor. Pediu alguém, de cima.
–          Falo baixo sim, para que você foi crescer além do normal? Retrucou o limoeiro.
–          Nelson prevê a morte do riacho pela poluição. Repetiu a mensagem o mamoeiro, atento dessa vez.
–          Ué, Alfredo, onde então vou lançar os meus cocos? Quis saber Juninho, dirigindo-se ao mamoeiro e inclinando-se levemente.
–          Jogue pela janela dos apartamentos, e tomara que acerte a cabeça de algum indivíduo. Respondeu a limeira, revoltada.
–          Se depender de mim, nenhuma pessoa ficará impune. Ameaçou a jaqueira, balançando o tronco.
–          Qualquer um que passar por aqui descalço… Insinuou a laranjeira, afiando os espinhos.
–          Você tem a minha ajuda, Helena! Apoiou seu vizinho, o pé de mexerica.
O bananal e o canavial acenaram, num apoio incondicional.
–          Bobagem, queridos amigos, nós nem estaremos vivos para nos vingarmos. Lembrou a mangueira, sensata.
Dona Vitória era uma árvore frondosa, centenária, cuja sabedoria serve de exemplo para a humanidade!
–          Dona Vitória, o que a senhora acha dessa atitude do homem? Indagou a goiabeira.
–          A evolução é muito importante, mas com responsabilidade; é necessário preservar as matas, admitir que elas são o pulmão do planeta!
–          Parabéns, mestra, que lucidez! Exclamou o jacarandá, aplaudindo com entusiasmo.
Helena também admirava a mangueira, adorava escutar-lhe as opiniões, procurava seguir-lhe os conselhos sempre que os recebia do bondoso coração da anciã.
–          A senhora precisa conscientizar os cidadãos dessas coisas. Sugeriu a jabuticabeira, fitando-a com olhos grandes e pretos.
–          É inútil, colega! Afirmou o abacateiro, bruscamente.
–          Silêncio, para que dona Vitória possa  concluir.
Exigiu a pitangueira, vermelha de raiva.
A mangueira pronunciou as palavras com voz cansada, mas bem audível:
–          É sabido que os empresários são inconsequentes e as autoridades, descompromissadas; por isso, o povo deveria ser mais participativo e menos passivo.
–          Visam apenas ao dinheiro, e o contribuinte é que sai perdendo! Complementou o carvalho, resignado. Após tão enfáticas e incontestáveis colocações acerca do mau comportamento dos poderosos, o vento soprou com fúria, arrancando das árvores milhares de folhas e arrastando-as para longe em total desvario; encheu as ruas circundantes ao parque e sujou as casas da vizinhança, num desejo incontido de  manifestar  a  sua  desaprovação  e,     sobretudo,
clamar por socorro contra uma crueldade iminente!
A companhia de limpeza urbana gastou horas com a remoção do lixo, assim como os moradores para varrer suas residências.
Infelizmente, tudo em vão, pensou o vento, quando, de repente, no princípio da tarde daquele fatídico dia, avistou as máquinas da Construtora avançando tais quais monstros e derrubando as árvores, impiedosamente!
Hoje, só resta a mangueira no centro do pátio, cercada de cimento que lhe sufoca as raízes; ela vive tolhida do calor do sol e do frescor da brisa…
Um homem, ao terminar de lavar o carro, entrega o balde ao filho, ordenando:
–          Despeje esta água barrenta nos pés dessa merda, ela só dá manga azeda.
Dona Vitória sente saudade dos bons tempos de ar puro, da presença da natureza, e chora derrotada!

 O SALVADOR
Um fazendeiro fora à cidade vender a sua produção de rapadura e cachaça; levara consigo o filho de quatro anos e um escravo, homem da mais absoluta confiança. A venda rendeu ao próspero fazendeiro grande quantia, cujo dinheiro ele guardou numa bolsa de couro.
De manhã bem cedinho, o coronel acordou o filho pequeno e o escravo, e se puseram a caminho de volta. A tropa de burros contava com doze animais que, a passo tardo, cortava as estradas do sertão.
Ao passarem por uma palhoça à beira do caminho, um velho acenou para o coronel; este fez estacar a tropa e escutou-o.
–          Coronel, eu preciso avisá-lo que nesta região tem havido muitos ladrões; por isso, tome cuidado. Aconselhou ele, tirando o chapéu de palha.
O coronel, que jamais usara uma arma sequer, franziu a testa e respondeu-lhe:
–          Obrigado, bom velhinho! Agradeceu, colo- cando a tropa em movimento.
 De fato, depois de percorrerem o caminho por duas horas, o fazendeiro e o escravo avistaram, estupefatos, do topo de um morro, três homens suspeitos parados numa curva: trajavam roupas escuras, usavam cabelos e barbas compridos e sujos, além de portarem revólveres.
O escravo, de cima do cavalo, disse ao patrão:
–          Coronel, são os ladrões que o velho falou.
–          Sim, são esses homens malvados que vivem praticando crimes, impunemente.
O escravo apeou abruptamente do animal, dirigindo-se novamente ao patrão com o semblante iluminado:
–          Coronel, tive uma ideia aqui na cachola.
–          Qual? Diga então. Pede o fazendeiro, ansioso.
–          O senhor segue na frente com a tropa, eu vou atrás com um balaio na cacunda, com o menino e o dinheiro dentro. Explicou ele, atabalhoadamente.
E, sem ao menos esperar pelo parecer do patrão, o escravo tomou-lhe das mãos o filho e a bolsa de couro, colocando-os num enorme balaio, o qual foi posto nas costas e amarrado à frente do corpo.
O fazendeiro, não vendo outra saída, auxiliou-o no disfarce. E, com a tropa já em marcha, ouviu o escravo gritar:
–          Vai com Deus, coronel, que Nosso Senhor Jesus Cristo nos proteja!
O fazendeiro teve a passagem interceptada pelos bandidos, que o fizeram desamarrar e abrir todos os balaios. Durante esse período de humilhação da qual ele era vítima, passou por perto um homem descalço carregando nas costas um balaio, dentro do qual uma criança chorava e esperneava. Os ladrões olharam     a cena, mas não se importaram com o sofrimento daquele pobre cidadão.
Finda a busca em todos os balaios, e não encontrando o dinheiro, os bandidos vingaram-se do fazendeiro roubando-lhe cinco animais.
Ao ser alcançado pelo patrão, quase uma légua adiante, o escravo exclamou:
– Aqueles ladrões são todos bestas; eles roubaram os piores animais da tropa!
O fazendeiro, tendo o filho nos braços outra vez, olhou para o céu e agradeceu a Deus: pela vida e também pela amizade fiel que sempre lhe dedicou o seu escravo, Salvador da Silva.

PEQUENO LÍDER
Doze   garotos   encontravam-se   na   pracinha do bairro de classe média de uma cidade grande.  Era fim de tarde e o céu estava azul! Sentados em círculo sobre o gramado verde, todos tinham os olhos focados num colega de pele clara e cabelos castanhos, em cujas mãos havia um celular de cor prata. O garoto, ao ligar o aparelho, dirigiu-lhes a palavra:
–          O motivo desta reunião, como vocês sabem,    é pegar os caras que estão praticando vandalismo dentro da nossa escola.
–          Detonar sem dó! Apressou-se um gordinho à sua direita, fazendo o muque.
–          Calma, Gordo, nada de violência. Ponderou o líder e depois continuou, indignado:
–          Em três meses, a escola foi atacada duas vezes; ninguém toma providência, nenhum vândalo preso, e os nossos pais arcando com os prejuízos…
Silêncio pesado.
–          É difícil prever quando esses caras   aparecem.
Lamentou um deles.
–          Um esquema existe para isso, Dudu: resolver os grandes problemas. Falou o líder, sério.
Alguém tossiu seco.
–          A partir de hoje, todos os celulares deverão ter créditos e a bateria carregada, para o recebimento e envio de mensagens.
Sob a ordem do líder, os comandados ligaram seus aparelhos imediatamente.
–          A primeira mensagem que vai aparecer agora na tela são as fotos dos quatro pavimentos da escola; vejam como ficou legal o trabalho do Marcão!
Após soar um sinal, apareceu o logotipo: o mar ao fundo, um cachorro sentado na areia e, acima de sua cabeça, a palavra fotografias escrita em formato de onda.
–          O Caveirinha e o Lombriga, que moram nos fundos da escola, é que darão o alarme. Determinou o líder.
–          É que o nosso celular não pega muito bem no quinto andar do prédio. Informou o mais magrinho dos irmãos.
–          Vão se revezando, se virem, quem estiver em cima sinaliza para o de baixo. Protestou o líder.
–          Na entrada principal, eu quero o Velho; se acaso esses caras fugirem por lá, não há outra pessoa melhor para segui-los pela avenida afora.
O garoto mencionado tinha, no máximo, dezessete anos; ele adorava ser chamado assim, dava-lhe um orgulho de protetor.
–          Contornando a escola em sentidos opostos, o Moreno e o Loirinho, que são os mais velozes entre nós. Indicou o líder.
Um automóvel caindo aos pedaços passou com  o som ligado no último volume; uma voz esganiçada berrava qualquer coisa erótica de péssimo gosto. Dentro, um rapaz de cabeça raspada e óculos escuros tinha um cigarro no canto da boca. Ao mesmo tempo, um telefone toca.
–          Alô? Atendeu o líder.
–          Sim, mãe, o que é? Perguntou ele, de cenho fechado.
–          Eu não vou à festa da Júlia, mãe, tô com o saco cheio de aniversário.
Então, ele cortou a ligação, mais nervoso com o incidente do carro do que com o convite da festinha da prima.
–          Enquanto o Gordo e o Pimentão vão à delegacia avisar à polícia que os caras estão no interior da escola, o Dudu e o Mosquito pulam o muro do jardim, passam pelo basculante da portaria e desligam o padrão de luz atrás da secretaria.
–          É para fazer só isso? Resmungou um garoto de rosto avermelhado.
–          Pulam o muro com a ajuda do Marcão e do Urso, é lógico. Completou o líder, ignorando o Pimentão.
–          Mas… a polícia não vai acreditar na gente. Insinuou o Gordo, também querendo mudar de função.
–          O Marcão estará tirando e enviando fotos instantâneas das cenas de vandalismo; a polícia não poderá abrir mão do flagrante, e chega de omissão por parte das autoridades! Rebateu o líder num fôlego só.
–          Valeu, turma, qualquer dúvida acessem a caixa de mensagens e leiam as instruções.
Ele se levantou e o grupo o imitou, dispersando- se pelas ruas arborizadas do bairro.
Noite de céu estrelado! Seis marmanjos saltaram o muro da escola, urinando a poucos metros do banheiro. Desceram por uma rampa e, ao final  desta, arrombaram o cadeado do portão  que  liga um pavimento ao outro. Aí, foi uma algazarra geral: gritos, chutes nas portas, objetos lançados de encontro às paredes…
Depois, a gangue invadiu a cantina tal quais verdadeiros animais famintos, devorando alimentos prontos e danificando os crus.
De repente, tudo ficou escuro, um breu. Os delin- quentes saíram afoitamente da cantina tropeçando  em caixas, trombando em mesas, esbarrando nos armários e derrubando garrafas que espatifavam no chão, encharcando-o.
A polícia cercou todo o quarteirão da escola. A lua redonda e majestosa brilhava no céu!
Os garotos se juntaram para ver os meliantes serem conduzidos algemados e aos empurrões para dentro da viatura. Sob o olhar da multidão de espectadores aglomerados em torno, os carros pretos arrancaram em disparada transportando os criminosos.
Uma chuva de aplausos ecoou naquela noite de outono, coroando a ação praticada pelos garotos, que permaneceram imóveis sobre a calçada.
– Quem é o líder do grupo? Perguntou o sargento aproximando-se e fazendo continência.
Os celulares tocaram simultaneamente emitindo a mensagem: “Tarefa cumprida. P.L.”.

NO BANCO DA PRAÇA
Era uma cidadezinha do interior onde, no fim de tarde, os moradores vinham à praça ver o pôr-do-sol e se deleitar com o frescor da brisa!
–          Eu pensei o dia todo em ti! Declarou o namorado, mirando-a com olhos ternos.
–          Ah! Eu fiz o tempo andar na velocidade das batidas do meu coração, só para estar aqui aninhada em teus braços! Exclamou ela, sorrindo.
–          Mamãe, a professora pediu para que eu entregasse à senhora este bilhete.
A mulher leu-o com atenção.
–          Filha,  mas  uma  reunião  na  segunda-feira    é inviável para mim, pois o hospital se encontra abarrotado de pacientes! Reclamou, amarfanhando o papel.
–          Doutor, eu não quis que a coisa terminasse dessa maneira; no calor da discussão, a arma  disparou, não tive culpa! Relatou o homem, gesticulando freneticamente.
–          Acalme-se, tudo será resolvido, deixe comigo. Garantiu o advogado, tocando-lhe de leve no braço.
–          Compadre, o senhor está mesmo disposto a vender a fazenda, morar na capital? Perguntou um velhote, incrédulo.
–          É, os filhos estão crescendo, precisam estudar em melhor escola, de um futuro mais promissor!… Respondeu o fazendeiro, resignado.
–          Dona Rosa, o sermão do padre Ricardo na missa das sete deixou muita gente com a pulga atrás da orelha. Comentou a gorda, maliciosa.
–          Eu achei foi bom, este lugar se transformou  no ponto das sirigaitas. Rebateu dona Rosa, a mais carola de todas.
–          Que notícias traz esse jornal, Rubens? Indagou a esposa, tecendo um paletozinho para o neto que vai nascer.
–          Nada de bom; apenas guerras, povos se dizi- mando, uma insanidade total! Respondeu o marido, limpando a lente dos óculos num lenço azul de seda.
–          Ô, Jurema, na sexta-feira vai ter arrasta-pé lá pros lados do córrego do Pica-pau, eu vou. Contou a empregada do armazém do Sr. Nivaldo.
–          Eu também vou, mas se Terêncio vier com aquele assanhamento, dou nele um sopapo no focinho. Ameaçou a negra, séria.
–          Confesso que não  o  compreendo,  Júnior, você se matando de trabalhar para esse prefeito descompromissado. Censurou a tia, fechando o livro de capa amarela.
–          É porque a senhora não imagina quais são as minhas pretensões, tia Célia! Justificou-se o sobrinho, sonhadoramente.
–          Comadre, a senhora está a par do rompimento do noivado da filha do coronel João Neves?
–          Pois é, Irene; dizem que o moço é casado, o sem- vergonha. Explicou a esposa do juiz, em surdina.
–          Dona Benedita, não tenho mais visto seu Lauro por aqui. Espantou-se o sapateiro.
–          O pobre bateu as botas, Moisés, morreu dormindo feito um anjo! Disse esta, beijando um crucifixo de marfim.
Enfim, a noite desceu  silenciosa  e  enluarada;  as pessoas se dispersaram, cada qual tomando seu rumo.

CAPRICHO CAPRICHADO
A adolescente de treze anos chorava compul- sivamente, fechada no seu quarto. A mãe, compade- cida, vai consolá-la.
–          Filha, não chore assim, senão a mamãe fica triste!
–          Triste estou eu, pois o Leão é tudo para    mim!
Soluçava Bárbara, inconformada.
Ana Maria afagou-lhe, com ternura, os cabelos ondulados!
–          O papai não lhe disse que dará outro cachorrinho?
–          Mas eu quero o Leão, eu adoro o Leão, eu não vivo sem o Leão! Protestou Bárbara, batendo com as mãos nas pernas.
–          Está bem, a gente procura de novo pelo condo- mínio e, quem sabe, encontraremos esse bendito cachorro.
Bárbara interrompeu o choro e encarou a mãe.
–          É inútil, é perda de tempo; a senhora não ouviu o porteiro contar que viu um homem saindo com o Leão?
Ana Maria permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois falou calmamente:
–          O papai mandou colocar no jornal, e a recompensa é boa…
–          Nem todo mundo lê jornal, nem toda pessoa devolve as coisas alheias, ainda mais para receber uma mixaria. Atalhou a filha, insolente.
–          Mixaria, você acha duzentos dólares uma mixaria?! Indignou-se Ana Maria.
Bárbara se pôs de pé e, com as mãos na cintura, replicou:
–          Saiba a senhora que o Leão vale uma fortuna, muito mais do que esse troço que eu ganhei no Natal!
Ana Maria olhou desolada o computador que ela e o marido deram à filha, por exigência dela.
–          Leão é um presente de  madrinha  Valéria,  por isso ele é tão importante! Completou Bárbara, recomeçando a chorar.
Ana Maria, que nunca se acertou com a cunhada, retrucou desfeiteada:
–          Valéria só lhe deu esse cachorro, Bárbara, porque se mudou para os Estados Unidos.
Porém a filha não cessava de chorar, indiferente ao seu comentário.
Ana Maria aproximou-se mais de Bárbara.
–          Vamos almoçar, filhinha, fiz a lasanha de que você tanto gosta!
–          Não sinto fome. Falou Bárbara, soluçando.
–          O papai vai nos levar à noite ao aniversário da Natália! Comunicou-lhe a mãe, alegremente.
–          Não tenho a mínima vontade de ir à festa alguma. Redarguiu Bárbara, ríspida.
–          Natália é sua melhor amiguinha, filha! Lembrou- lhe, a mãe.
–          Meu amigo é o Leão, e me deixe em paz.
Ana Maria desistiu de vez do caso. Quando o marido chegou do trabalho no fim da tarde, relatou- lhe o comportamento da filha. Ele se dispôs a conver- sar com a garota imediatamente.
–          Filha, você comeu só uma fruta, e o papai não quer vê-la adoecer!
–          É bom que eu morra! Resmungou Bárbara, deitada de bruços.
Ana Maria entrou no quarto e anunciou:
–          Bárbara, Letícia quer falar com você ao telefone.
–          Diga que eu estou com o ouvido inflamado e dor de dente. Respondeu ela, sem se virar.
Assim que Fernando se viu a sós com a filha novamente, perguntou entusiasmado:
–          Quem vai entregar à Natália o presente que eu comprei?!
–          Quem vai me devolver o Leão, também não sei.
Respondeu Bárbara, virando-se de costas.
Fernando examinou-lhe os olhos vermelhos de chorar. Ana Maria, retornando ao quarto, argumentou:
–          Bárbara, seja sensata, seu pai e eu precisamos nos divertir.
–          Eu não os atrapalho em nada, apenas não desejo participar daquela festinha de crianças! Defendeu-se ela, sentando-se na cama.
–          Este condomínio vai de mal a pior… Bárbara fitou o pai com atenção.
–          Na semana passada, furtaram o som do carro do doutor Alexandre. Revelou ele, franzindo a testa.
A filha aproveitou a deixa:
–          É porque nos condomínios moram pessoas de origem suspeita; hoje, qualquer um adquire uma mansão, e ainda traz seus amigos para completar o bando!
–          Bárbara, não vá dizer isto por aí, alguém pode escutar! Advertiu-a a mãe.
–          Azar, estou pouco me lixando, é o que eu penso.
A campainha soou estridentemente. Ana Maria fez menção de ir abrir a porta, mas antes consultou a filha com o olhar.
–          Se me chamarem, conte que torci o pé, fraturei o joelho e quebrei a costela.
Fernando coçou a cabeça, impaciente.
–          Já que prefere não sair de casa, filha, vou tomar um banho e me arrumar.
Bárbara permaneceu em silêncio.
Antes de partirem, uma hora depois, Ana Maria foi ao encontro da filha.
–          Era a Gisele, Bárbara. Mandou um beijo e aconselhou-a tomar um chá de limão para curar-se do resfriado.
Como resposta, obteve da filha um sorriso irônico. Bárbara escutou o motor do carro do pai sendo ligado e correu para a janela; e, ao visualizar o automóvel penetrar na noite estrelada, precipitou-se
para a cozinha.
Ela abriu a geladeira e tirou o refrigerante; pegou a travessa de lasanha e colocou-a no micro-ondas. Após três minutos, sentou-se à mesa e começou a comer avidamente, esfomeada.
BárbaraassistiaaumfilmepelaTV,quandoescutou um ruído vindo de fora. Apurou o ouvido e constatou que era o portão da garagem sendo arranhado; num impulso, desligou a TV e, nitidamente, distinguiu o ganido do Leão. Seu coração bateu forte de emoção!
Bárbara passou pela porta da sala, desceu a escada até a garagem e abriu o portão com tanta habilidade que nem ela imaginava ter. Abraçou o cachorro e carregou-o para dentro como se fosse uma criança abandonada.
–          Leão, querido, você está imundo! Dizia ela, acariciando-lhe o pelo amarelo.
–          Leão, coitadinho, maltrataram você! Exclamava ela, ao se deparar com uma pata machucada do animal. Bárbara fê-lo comer ração, beber água, antes de jogá-lo na banheira e esfregá-lo com bucha e sabão. Enquanto  o  enxugava,  cantarolava  uma   canção de ninar; deitou-o no berço ao lado da sua cama,
cobrindo-o com uma manta azul-marinho.
Alta madrugada, Fernando e Ana Maria voltaram da festa e, estupefatos, encontraram o cão e a dona adormecidos.
–          Nossa filha precisa de um irmãozinho, e com urgência. Disse Fernando para a esposa.
Ambos sorriram e, abraçados, se recolheram felizes!

MULHER MISTERIOSA
A enchente derrubara a ponte que ligava a pequena cidade à zona rural; e, segundo os habitantes, isso foi motivo para que o prefeito perdesse os últimos fios de cabelo.
Mas, na venda do seu Benedito, sempre abar- rotada de homens no fim da tarde, a conversa regada à cachaça corria solta.
–          Põe mais uma branquinha, seu Bené, que é  pra afogar as mágoas! Pediu um homem de chapéu quebrado na testa.
–          Larga dessa bebedeira, moço, isso não resolve nada. Aconselhou o vendeiro.
–          Deixe o homem entornar o caneco, seu Bené, ninguém dá jeito à solidão no peito… Intrometeu Fabiano, poético.
–          Eu mato aquela desgraçada! Rosnou o homem, coçando a cabeleira crespa por baixo do chapéu.
–          Ô, Fabiano, qual é a novidade de hoje? Perguntou o professor Salustiano, frequentador assíduo do botequim.
–          Nenhuma, mestre, mas tenho esperança que aconteça algo que preste.
Fabiano gostava de falar bonito, rimando, se possível.
–          Como o prefeito vai resolver o problema da ponte? Interrogou mestre Salu, assim chamado por todos.
–          Seu João Porto tem arrancado os cabelos, sem saber a quem recorrer num apelo. Respondeu pronta- mente Fabiano, o secretário da prefeitura.
–          Mas ele não tem cabelo desde que nasceu.
Tal insulto partiu do capataz do coronel Junqueira.
–          Isso é intriga da oposição, pois João Porto ganhou a eleição; derrotou o Junqueira, queira ou não queira.
Fabiano rebateu, olhando de soslaio para o peão agachado a um canto; este, porém, riscou o chão com a ponta da faca.
–          Quero ver de onde vai sair o dinheiro pra levantar essa ponte. Comentou Agnaldo, cujo pai a vida toda foi correligionário do coronel Junqueira.
O capataz ergueu a cabeça e sorriu-lhe, sem dentes.
–          Do mesmo lugar de onde saiu para construir a de cimento, como proposta de campanha do coronel, sem cabimento! Retrucou Fabiano, impávido.
Agnaldo ficou murcho; o capataz tremeu de raiva. Mestre Salu esfregou as mãos de contentamento, pois odiava o coronel.
–          Os recursos hão de aparecer, gente,   paciência!
Ponderou seu Benedito, pacificador.
–          Tô pouco me lixando pra merda dessa ponte, é bom que eu caio no rio e morro de uma vez! Grunhiu o bêbado, indiferente.
Fabiano suspendeu o copo e rematou:
–          Coronel Junqueira de novo, nem de brincadeira, meu povo!
O professor Salustiano imitou–lhe o gesto, triunfante!
–          Essa política ainda mata alguém, ouçam o que eu estou dizendo! Alertou um homem sentado no degrau da porta.
O capataz se levantou e caminhou na direção   do negro que falara; Agnaldo fez o mesmo; ambos o cercaram num apoio mudo.
–          Vosmicê é bosta, negro, e faz raiva na gente quando está dura que nem pau. Reagiu o bêbado, pensando que a conversa era com ele.
O homem deu um salto, abriu a navalha, ameaça- doramente.
–          Calma, Leôncio, você não vê que o infeliz está embriagado?! Interveio seu Benedito, passando para fora do balcão.
–          De porre não, seu Bené, mas viro bicho se o negócio fede.
Jeremias cambaleava, gesticulando atabalhoada- mente. O vendeiro amparou-o e, a um aceno seu, Leôn-cio guardou a navalha na cintura. Fabiano e mestre Salu pediram mais um trago, tomando-o num brinde silencioso.
O ônibus de viagem contornou a praça e estacionou defronte à agência dos Correios. Dele,  desembarcou uma mulher vestida elegantemente de preto; os cabelos castanhos e longos emolduravam-lhe o rosto delicado. Amulher lamentou ter encontrado a agência fechada àquela hora e, não avistando qualquer outro estabelecimento público aberto, dirigiu-se resoluta para a venda de seu Benedito. Ao penetrar no recinto, o zunzunzum cessou rapidamente.
–          Boa noite, senhores! Cumprimentou ela.
–          Seja bem-vinda, madame! Recebeu-a o proprie- tário, saindo de trás do balcão.
Os fregueses devoraram-na com os olhos, embasbacados com tanta beleza!
–          Senhor, vim a esta cidade à procura do padre Vítor. Explicou a mulher, firmemente.
Sua voz era macia e sussurrante, e de seu corpo exalava um aroma que perfumou o ambiente!
–          Padre Vítor é muito  querido  por  nós,  e  há de recebê-la com prazer! Assegurou o vendeiro, sorridente.
–          O que uma mulher bonitona assim quer com um padreco caduco? Perguntou o bêbado, insolente. A            mulher limitou-se        a          baixar  a          cabeça,
constrangida.
–          Não se aborreça, madame, esse moço é um pobre coitado!
Jeremias encarou o vendeiro que, movendo a cabeça de um lado para o outro, falou com autoridade:
–          Eu exijo respeito dentro do meu estabeleci- mento, senão expulso o infrator.
–          Aprovado, seu Bené! Bajulou-o mestre Salu. Jeremias abriu a boca, mas Fabiano interrompeu-o com um aceno de mão, adiantou-se dois passos e disse, cortês:
–          Nossa cidade acolhe com amor, sempre que por aqui desabrocha uma flor!
A jovem senhora ruborizou ante as palavras do rapaz de olhos verdes.
–          Ele é o poeta do município, é quem escreve os discursos do nosso prefeito. Esclareceu Salustiano, ajeitando os óculos por sobre o nariz.
–          Nando, ô Nando, aonde foi aquele menino que não me escuta? Gritava o comerciante para dentro do balcão.
–          Sim, papai, aqui estou eu. Apresentou-se um garoto de quinze anos que surgiu do fundo da venda. Seu Benedito mirou o filho com censura; este usava  calção  e  camiseta  regata,  e  trazia  uma bola
debaixo do braço.
–          Ah! Meu Deus, na idade desse menino eu tocava uma boiada e tratava dos porcos! Disse o pai, tomando-lhe a bola com brandura.
–          Acompanhe a madame até a igreja, ela deseja falar com o padre Vítor. Ordenou o vendeiro.
–          Agora de noite? Indagou Nando, inocente.
–          Isto não é da sua conta, moleque. Ralhou o pai.
O garoto baixou os olhos e, obediente, pegou a mão da mulher e puxou-a com carinho!
Na porta da igreja, ela deu-lhe um beijo no rosto, dizendo:
–          Este dinheiro é para você comprar uma bola de couro.
–          Igual à de jogador de verdade! Exclamou ele, com os olhos brilhando.
A mulher sorriu, acariciando-lhe os cabelos cacheados.
O filho do vendeiro disparava pela rua, quando foi agarrado pelo braço.
–          Nando, que mulher é aquela? Interrogou-o alguém, bruscamente.
–          Não sei, dona Quita, licença.
Ele conseguiu se desvencilhar das garras da beata mais pertinaz do rebanho de padre Vítor. Esta, porém, com a curiosidade aguçada, resolveu chamar as duas comadres e vizinhas e colocá-las a par do que estava acontecendo.
Quando as três matronas chegaram à igreja, avis- taram a formosa mulher sentada no primeiro banco.
–          Mas o menino Nando não contou a vosmicê quem ela é? Indagou Juraci, sentando-se à direita de dona Quita.
–          Aquele pirralho malcriado disse que não a conhece, o mentiroso.
–          Padre Vítor não recebe nem homem após as oito da noite, que dirá uma mulher estranha! Comentou Feliciana, a mais nova delas.
O sussurro das vozes atraiu a atenção da mulher que, educadamente, virou-se para trás e sorriu!
–          Cara de anjo a Fulana tem! Disse Feliciana.
–          Olhos grandes e azuis, belos! Emendou Juraci.
–          Dizem que o demônio aparece em forma de mulher faceira… Rematou dona Quita, persignando-se.
A porta da sacristia abriu-se. Dona Quita apertou a mão de Feliciana à sua esquerda. O sacristão desceu os dois degraus, seguido pelo vigário; e ambos caminharam na direção da mulher.
–          Ela beijou o padre na testa, que falta de respeito!
Escandalizou-se dona Quita.
–          Será  que  eles  se  conhecem  de  algum lugar?
Arriscou Juraci.
–          Vai ver, são até parentes. Imaginou Feliciana, em voz alta.
O sacerdote e a mulher trocaram meia dúzia de palavras e, por fim, ele a levou para a sacristia.
–          Dona Quita, vosmicê está vendo? Inquiriu Juraci.
–          E agora? Perguntou Feliciana, boquiaberta. Dona Quita soltou a respiração e disse, categórica:
–          Eu não saio daqui enquanto essa história não ficar devidamente esclarecida.
O sacristão se aproximou delas e comunicou, sem jeito:
–          Padre Vítor mandou fechar a igreja, e não deixar ninguém dentro.
As três se retiraram em fila indiana, caladas e carrancudas. Ganharam o jardim lateral da Matriz, sentando-se num banco de cimento sob o pé de manga.
–          O sacristão cumpre ordens. Aquiesceu Feliciana.
–          Ele não fez por mal… Ponderou Juraci.
–          Mas poderia ter sido mais humano, nos permitindo ficar na casa de Deus!… Também,     nem sabe quem é seu pai, esse palerma. Revoltou-se dona Quita, tiritando de frio.
A lua brilhava no céu; o vento arrastava as folhas pelo chão; os grilos cantavam, monótonos…
–          Já passa das dez horas! Murmurou Feliciana, bocejando.
–          Sinto frio! Admitiu Juraci, arrepiada.
No entanto, dona Quita permanecia em silêncio, tesa, tentando captar através dos sussurros a verdade daquela conversa que escoava pela janela da sacristia, à pequena distância.
–          Como lhe disse, minha filha, lamento profunda- mente o que ocorreu ao desembargador!
O sacerdote fez uma pausa para tossir.
–          Portanto, esse seu gesto em benefício do povo daqui o colocará mais próximo do Santíssimo! Concluiu o vigário, com as mãos postas.
–          Este é o último desejo dele, padre, e só me coube vir até aqui e pô-lo em prática.
O pároco levantou-se da cadeira e acenou para que ela o acompanhasse.
Quando a porta dos fundos da sacristia se abriu, as três espiãs cravaram os olhos no sacerdote e na visitante.
–          Boa noite, padre! Disse Feliciana, com voz melosa.
O vigário trancou rapidamente a porta, dando o braço à mulher, indiferente.
–          Aonde o senhor vai com tanta pressa,    padre?
Perguntou Juraci, capciosamente.
Ele estacou de súbito, depois mirou-as incrédulo.
–          Vou levar esta bondosa senhora para pernoitar na pensão de dona Olívia. Explicou, franzindo a testa.
–          E o senhor volta hoje, padre Vítor? Afrontou-o dona Quita, de pé.
–          Não retorno, pois vou passar a noite na orgia como fazia o vosso finado marido, Quitéria Dias Pinto!
–          Caduco insolente! Grunhiu dona Quita, desfeiteada.
Ao chegar à rua em passadas largas, em tempo de vê- los dobrar a esquina, benzeu-se; e, a caminho de casa, garantiu às companheiras que marcaria uma reunião para debaterem o assunto.
Um novo dia amanheceu ensolarado; e, mais quentes do que o sol daquela manhã eram as fofocas absurdas,     os            comentários    difamatórios   sobre   a mulher misteriosa: que ela havia dormido na porta da igreja feito uma mendiga; que o padre a acomodou na sacristia, receoso de abrigá-la na casa paroquial e tornar a sua situação ainda mais vexatória; que a tal fulana teria passado a noite em claro nas imediações da pensão de dona Olívia, bebendo e jogando baralho com uns caminhoneiros num bar à beira da estrada… O vigário conduziu a mulher até o ônibus,  onde
se despediram.
–          Vai em paz, e que Deus a proteja! Disse ele, abençoando-a.
–          Amém, padre Vítor, e foi uma honra conhecê- lo! Exclamou ela, beijando-lhe a mão.
–          A cidade prestará uma justa homenagem ao desembargador! Afiançou o sacerdote, enternecido.
O motorista do ônibus passou por eles e sentou- se ao volante.
–          Se eu não comparecer à inauguração da ponte, é porque estarei viajando para a Europa. Justificou-se ela, antes de partir.
O sacerdote atravessou a praça e entrou no prédio da prefeitura municipal.
– Padre Vítor, prazer em revê-lo! Saudou-o, o prefeito. O vigário postou-se à frente de sua mesa.
–          Sente-se, padre. Convidou o prefeito, apon- tando-lhe uma cadeira.
–          Aceita um       cafezinho,       então?!            Ofereceu         o prefeito, sorridente.
Diante das recusas do velho pároco, João Porto sentiu-se embaraçado.
–          Fica para outra hora, seu João.
E, estendendo o braço por cima da mesa, falou:
–          Só vim lhe trazer isto.
O prefeito pegou o envelope, abriu-o e examinou o conteúdo.
–          Que  dinheiro  é  este,  padre,  caiu  do      céu?
Perguntou assustado com os maços de notas.
O vigário ignorou o deboche contido na pergunta.
–          É para a construção da nova ponte. Limitou-se ele a informar.
O prefeito fitou-o, espantado.
–          O senhor cobrou caro da moça, hein, padre Vítor? O senhor conta ao menos o milagre…
–          Seu João de Oliveira Porto, respeite os meus cabelos brancos, eu exijo! Atalhou o vigário, ríspido.
–          Desculpe-me, padre Vítor, foi apenas uma brincadeira. Apressou-se o prefeito, envergonhado.
–          Pilhéria  de  mau  gosto,  própria  de  um ateu!
Repreendeu-o novamente o vigário, enérgico.
O prefeito baixou os olhos, depois falou com cautela:
–          Padre, para a prestação de contas, preciso saber quem é o doador desta exorbitante quantia.
–          Registra, portanto, que se trata de um     santo!
Sugeriu o vigário, sem hesitar.
–          Mas eu não acredito nessa bobagem de   santo!
Retrucou o prefeito, levantando-se.
–          Pois, se acreditasse, teria mais sorte na sua maldita carreira política! Rebateu o vigário, que lhe virou as costas e saiu.
Após seis meses de trabalho intenso, a ponte foi inaugurada com grandes festejos! Findo o discurso acalorado do prefeito, este convidou o padre a descerrar a placa comemorativa em honra ao desem- bargador.
A CIDADE DO SONHO
Era uma vez uma cidade encantada. Suas ruas    e praças eram limpas; suas casas, pequeninas e humildes, ostentavam uma beleza sem igual!
Era manhã ensolarada, quando batidas fortes ressoaram no portão de ferro; uma velhinha de 90 anos de idade foi abri-lo, ligeira e alegre!
–          Entre, meu filho. Disse ela bondosamente.
–          Onde você mora, velha? Gritou um adolescente de pele escura, mãos e rosto imundos, pés descalços e vestindo trapos.
A velhinha recuou um passo, trêmula e horrorizada.
–          É ali, na primeira casa. Respondeu ela num sussurro.
O moleque mais que depressa adentrou a casinha, exclamando:
–          Dinheiro, joia, cadê?
–          Não tenho nada disso; apenas a cama, o armário e essa mesa são a minha mobília. Explicou ela, cujos cabelos brancos arrepiaram-se de medo.
Seguindo o olhar da anciã, o delinquente arrancou bruscamente da parede um crucifixo, metendo-o numa sacola encardida.
A cidade encantada ia acordando pouco a pouco, serena e colorida! O gorjeio dos pássaros, nas árvores frondosas, enchia a praça de uma melodia doce e suave!… Caminhava por ela, tranquilamente, uma menina linda: seus cabelos loiros e longos, seus olhos azuis e cintilantes, seu rosto cândido e meigo… tudo isso dava-lhe a semelhança de um anjo! Quando ela percebeu o rapazinho vindo ao seu encontro, tentou desviar, mas em vão.
–          Me dê isso, guria. Exigiu o meliante arreba- tando-lhe a merendeira.
–          Devolva o meu lanchinho, por favor, foi mamãe quem me deu. Suplicou ela.
–          Não; desde ontem, eu não como bosta nenhuma.
E foi-se o malvado.
A garotinha abaixou a cabeça e chorou a perda da merenda que levava para a escola.
Ao transpor a praça, o invasor da cidade encantada avistou uma  porta  aberta;  dirigiu-se para lá, saltitante. Dentro, um homem bem vestido, sentado numa cadeira, aguardava pacientemente o barbeiro que fora afiar a navalha.
–          Tio, tô precisando de uns trocados. Anunciou o moleque agitando os braços.
–          Seu tio não tarda, sente-se e espere. Respondeu- lhe o homem de terno preto, com o rosto ensaboado, sem fitá-lo.
 Instantes depois, o barbeiro regressou.
–          Preferi dar um pulinho no armazém e comprar outra navalha, senhor… Vossa Senhoria merece uma novinha!
–          Seu sobrinho está aí. Informou o homem na cadeira, de olhos semicerrados.
–          Que sobrinho? Inquiriu o barbeiro, relanceando o olhar pelo estabelecimento. – Não tenho sobrinho, senhor, sou filho único. Completou o solteirão desem- brulhando as compras.
De um salto, o homem bem-apessoado pôs-se de pé; e, estupefato, constatou a falta da sua maleta que colocara sobre o banco.
O pequeno ladrão, de posse da maleta de couro preto, ao dobrar a terceira esquina à esquerda, mirava deslumbrado a vitrine de uma loja.
A moça por detrás do balcão, meio confusa, indagou:
–          Você é que veio ajudar no carregamento das caixas de mercadorias que chegaram ontem?
–          Não; eu tenho muito dinheiro, moça… eu vou comprar aquele jogo. E apontava com o dedo sujo     o jogo de botões do seu time predileto, passando à atendente todo o dinheiro da maleta. A funcionária recebeu as cédulas e arregalou os olhos diante de tão grande quantia.
–          Pode pegar? Perguntou o adolescente com ansiedade.
–          Um momento, por gentileza; vou buscar o troco e volto já. Disse ela sorrindo.
A balconista subiu rapidamente ao segundo andar da loja e narrou a história ao seu patrão. Este, convencido de que o rapazinho houvesse roubado alguém, empurrou quatro caixas com os pés e, seguido pela moça de óculos, desceram as escadas. Nesse ínterim, o trombadinha, esperto como ele só, catou o jogo na estante e disparou ladeira abaixo. Ofegante, ele sentou no meio fio, dizendo:
–          Vou mostrar para aquele menino branquelo que mora na casa de grade verde que o meu jogo é melhor do que o dele!
O proprietário da loja de brinquedos verificou o conteúdo da maleta e, ao constatar que esta pertencia ao prefeito, fechou-a novamente e comunicou à mocinha, que o observava de braços cruzados, que iria à Prefeitura, sem demora.
O garoto sentiu a sede secar-lhe a garganta, assim como a fome incomodá-lo novamente. Vagueando pela  cidade  encantada,  o  pivete  deparou-se  com  a Igreja Matriz, da qual saía um grupo de idosas. Entrando furtivamente nela, esgueirando junto à parede, o negrinho alcançou o altar.
–          Ah! vovó, tô com fome e com sede… depois que mamãe lavar a roupa, ela acerta com a senhora; já que ela falou que a senhora é a mãe dela! E ele surrupiou todo o dinheiro da imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Saindo da sacristia, o padre flagrou-o enfiando o dinheiro nos bolsos da calça surrada.

–          Deixe isso aí, menino, é o dinheiro da santa.
–          Santa não precisa de dinheiro, velho. Revidou ele correndo. E o vigário partiu atrás dele, gritando:
–          Moleque, vadio, me dê o dinheiro… Nosso Senhor o castigará!
Do meio da praça, o peralta botou a língua para fora, fez careta para o sacerdote e berrou:
–          Se mamãe acordar de ressaca amanhã e não for trabalhar, Deus lhe pague, vovó!
Uma ventania levantava a batina do pároco; uma poeira tapava-lhe os olhos, impedindo-o de ver o menor infrator.
–          Onde você está? Vagabundo, safado, capeta… nunca houve nesta cidade um bandido, Jesus Cristo!
O vento balançava as árvores com tal furor que as vergava até ao chão; a poeira encobriu as casas e encheu o espaço de um cinza escuro. E, de repente, a cidade encantada voou pelos ares!
Na cadeira de balanço, a mulher de cabelos brancos despertou com as badaladas do relógio anunciando a hora do chá.
No quarto cor-de-rosa, o beija-flor despertou a menina abraçada à boneca de porcelana.
À beira da piscina, o homem despertou com o calor do sol, tendo ao lado uma taça de champagne vazia.
Na sala de teatro, o aplauso febril ao término da peça despertou a moça que, languidamente, segurava seus óculos no estojo de veludo.
Na poltrona confortável, outro homem despertou no avião que cortava o céu!

O SÁBIO
Numa cidadezinha muito distante, existia um sábio. Certa manhã, uma mulher o procurou e perguntou-lhe:
–          Senhor, o que fazer para ser feliz como as outras pessoas?
O sábio mirou fixamente o horizonte, refletindo por longo tempo; depois, fitou-a nos olhos e respondeu-lhe pausadamente:
–          Você precisa usar um vestido azul numa manhã de domingo, banhar-se nua no rio numa tarde ensolarada e gerar um filho numa noite de lua cheia!… A mulher agradeceu, levantando-se em seguida.
No percurso de volta para casa, ela caminhava pensativa: só possuía vestidos de cor preta, tinha horror ao corpo e jamais se imaginou mãe. Porém, ela resolveu obedecer ao sábio, de quem todos falavam maravilhas, cujas histórias corriam o mundo.
Numa clara manhã dominical, trajando um belo vestido azul, a mulher foi à feira no centro da cidade.

Dos seus cabelos castanhos exalava um perfume que inebriava, os seus olhos esmeraldinos refulgiam tal qual brilhante!
–          Madame, a senhora é esplêndida! Elogiou-a res- peitosamente um homem, obstruindo-lhe a passagem.
À tarde desse mesmo dia, a mulher despiu-se pudicamente, mergulhando-se nas águas  mornas  do rio. Após alguns minutos  de  plena  liberdade, ela descobriu, subitamente, que um homem a contemplava ao longe!
Noite. Duas batidas soaram de leve na porta. A mulher consultou o relógio, fechou o livro de capa grossa e foi atender.
–          Como vai, madame?
–          Entre. Disse ela, simplesmente.
A mulher o reconheceu imediatamente: seus cabelos fulvos e bem penteados moldavam-lhe o rosto sereno, os grandes olhos chamejantes de um desejo ardente…
Os dois sentaram-se à mesa, sobre a qual a mulher colocou uma garrafa de vinho. Enquanto conversavam, suas mãos se tocavam numa cumplicidade mútua. Lá fora, a lua boiava no céu como símbolo do mais puro e eterno amor!
Passados três meses, a mulher retornou à casa do sábio. Ao chegar, deparou-se com uma velha que, em soluços, contou-lhe com voz abafada:
–          Ele morreu há duas semanas.
Na primavera daquele ano,  a  mulher  deu  à  luz uma linda menina; e, ao ver a filha de róseas bochechas e com um sorriso a brincar-lhe no rostinho angelical, seu coração transbordou de uma felicidade infinita!…

O TRAPALHÃO NA NOITE
O quarto se encontrava em total silêncio; apenas os lábios de sua mulher moviam céleres, pois ela lia um livro à luz do abajur. Mas, de repente, ele abriu os olhos e murmurou:
–          Que saudade de Pedro! E soergueu o tronco.
Aesposa fechou o livro e disse-lhe, afetuosamente:
–          Pedro está junto de Deus… reze pra ele, deite  e durma; o seu dia foi de muita labuta, Fagundes! Rematou ela com voz trêmula, por se referir ao filho que perderam havia dois meses num desastre de automóvel.
Ele levantou-se da cama e encaminhou-se para a porta, abrindo-a bruscamente. Dona Augusta estra- nhou-lhe o comportamento, sabendo-o sempre de gestos calmos.
No vão da escada, ela tentou detê-lo com brandura:
–          Fagundes, aonde você vai, meu bem? É tarde e… Sem dar importância, ele se desvencilhou dela  e
respondeu-lhe, evasivo:
–          Já recebi alta, enfermeira, doutor João me deu.
Perante essa explicação, estamparam-se no rosto de dona Augusta espanto e terror! O marido acordar no meio da noite… ele, que tem o sono pesado, dizer- lhe coisas sem nexo; ele, que é tão ponderado… Refletia ela plantada no centro da sala, vendo-o atravessar o jardim em passadas largas.
Dona Augusta caminhou apreensiva até o aparelho telefônico e discou um número, automati- camente.
–          Redação do Jornal, boa noite, Mara. Atendeu uma voz metálica do outro lado da linha.
–          Preciso falar com o Jorge, por favor,  senhorita.
Pediu dona Augusta.
–          Ah! Obrigada pelo senhorita; que pena, não posso chamá-lo.
–          É urgente, filha, pelo amor de Deus! Insistiu dona Augusta soluçando.
–          Mas como, criatura, o Jorge tá no ar; ele é um beija-flor, que ainda não sabe pousar! A atendente esparramou-se na cadeira e piscou um olho para o redator chefe à sua frente.
Dona Augusta ignorou o gracejo e tornou a falar:
–          Aqui quem está falando é a…
–          Ei, escuta, o seu número tá registrado no BINA; assim que entrar o comercial, eu passo o recado pro Jorge Júnior.
Mara cortou a ligação, irritada.
–          Poxa, cada fã que esse cara arruma, só eu não tenho vez! Lamentou ela com a colega à esquerda.
–          Chame-o de leão, quem sabe você tem mais sorte. Aconselhou a moça de olhos verdes, mordendo os lábios sensuais.
–          Me disseram que passarinho gosta de bicar mamão. Rebateu Mara cruzando os braços sob os seios fartos e flácidos, que saltavam da blusa decotada.
Fagundes entrou no bar da esquina e dirigiu-se ao balcão.
–          Cigarros,         dois     maços, depressa.         Exigiu.
Recebendo-os, saiu sem pagá-los.
O proprietário não se preocupou com o dinheiro, conhecia-o há muitos anos; no entanto, não entendeu nada, pelo fato de ele ser presidente da Associação Antitabagismo.
Dona Augusta se encontrava sentada numa poltrona paralela à mesinha do telefone, derrotada. Ligou para a filha no celular; todavia, a ligação caiu diretamente na caixa postal.
–          Após os comerciais, veja os flashes da cerimônia de posse do novo presidente norte-americano, Barack Obama. Anunciou o apresentador do telejornal noturno, Jorge Fagundes Júnior.
–          Juninho,  há  um  recado  pra  você,    querido!
Chamou-o Mara, enciumada.
Ao ler o número registrado pelo BINA, exclamou:
–          Da minha casa, a essa hora!
A secretária do jornal abriu a bocarra, assustada, e fitou no belo homem de blazer azul seus olhos míopes; cedendo-lhe o assento, afastou-se ajeitando atabalhoadamente as banhas na minissaia.
Fagundes avistou três adolescentes sentados no meio fio; aproximou-se precipitadamente deles e acenou-lhes. O mais velho dos garotos, porém franzino, avançou em sua direção e estacou a alguns passos.
Fagundes estendeu-lhe a mão direita, sorrindo! Quando o chefe do trio arrebatou os maços de cigarros, Fagundes aconchegou-o contra o peito, apertou-o fortemente, beijou-lhe ambas as faces sujas, mirando-o com olhos paternais; este, entretanto, recuando com a destreza que lhe era peculiar, cuspiu no chão e disse:
–          Pô, que isso, que velho boiola! E disparou ladeira abaixo, tendo os outros pivetes no seu encalço.
O som estridente da campainha do telefone despertoudonaAugusta, que o atendeu sobressaltada.
–          Alô?
–          Mamãe, o que aconteceu?
–          Filho, o seu pai saiu de casa. Contou ela gaguejando.
–          Aonde ele foi, mãe? Perguntou Jorge Fagundes, vendo o tempo escoar pelo monitor instalado na outra extremidade da sala.
–          Não sei, ele saiu sem dizer nada.
Jorge se viu embaraçado ante a desinformação da mãe e o momento exato de voltar ao ar.
O redator chefe socorreu-o, assegurando-lhe que tomaria conta do caso.
Fagundes caminhava há mais de uma hora por uma avenida imensa. Enfim, ele fez sinal a um ônibus, em cujo letreiro se lia “Morro da Fumaça”.
O veículo freou ruidosamente, no qual ele entrou e sentou-se atrás do seu condutor; um velho de chapéu acercou-se dele, puxando-lhe a manga da blusa.
–          Você vai lá, também? Perguntou tirando o chapéu e sentando-se a seu lado, de pernas abertas.
Fagundes examinou-lhe a cara amarela, a boca desdentada, ignorando-o em seguida.
–          Meu nome é Juvenal, e o seu? Insistiu o velho.
–          Também. Limitou-se Fagundes a dizer, sem voltar-se para o seu interlocutor.
–          Ô, xará, que prazer… Aperta esta mão amiga! E agarrou a mão de Fagundes que, com os sacolejos provenientes dos buracos das ruas por onde o ônibus trafegava, estava colado ao seu companheiro de viagem.
–          Vou levar o amigo no forró da Zefa Pinto. Fagundes arregalou os olhos.
–          Cuidado, chofer, esta ponte tá que nem gangorra. Juvenal alertou o motorista, e, de pé, aguardava a parada do ônibus. Antes de descer, fez uma careta para Fagundes, dizendo:
–          Xará, chegou, vem, aproveita o zero-oitocentos.
E os dois desceram pela porta dianteira.
Ao adentrarem num galpão enorme, uma mulher veio recebê-los. Usava um vestido preto de tecido barato, por sobre o qual uma blusa estampada deixava à mostra um pescoço branco feito cera, cujo gogó acentuado se destacava sob o queixo quadrado; os cabelos longos e maltratados esparramavam-se pelo seu lombo até as ancas.
–          Ô, Zefa Pinto, olha quem eu trouxe, o Xará. Fagundes se viu apertado por dois braços fortes,
sentindo na cabeça de cabelos grisalhos os beijos que os marcaram de batom vermelho.
–          Que coroa, Pai do Céu! Exclamou ela exibindo os dentes podres.
O apresentador do telejornal noturno recebeu um papel do próprio redator chefe, e leu-o, estupefato:
–          Está desaparecido há cerca de três horas o grande industrial do ramo de produtos de limpeza, o senhor Jorge Fagundes; quem tiver qualquer informação a respeito do paradeiro do empresário, favor manter contato com a polícia que já está tomando as devidas providências.
Entre os milhares de espectadores que assistiam ao jornal e viram brotarem lágrimas dos olhos do apresentador, Felipe Albuquerque esvaziou o copo de uísque, desligou o aparelho de TV, serviu-se de mais uma dose e disse à mulher:
–          Esse homem me forçou a vender as minhas ações da empresa… Eu fui caluniado por todos da diretoria.
Sua mulher limitou-se a limpar os óculos num lenço cor de rosa, retirando-se da sala no seu passo de tartaruga.
Fagundes sentou-se à mesa sem forro; ao som de uma música que lhe feria os ouvidos, passaram-lhe uma caneca contendo um líquido esverdeado. Ele ingeriu-o num só gole, ávido, pois a sede ressecava- lhe  a  garganta. Após  a  terceira  bebida,  sua cabeça começou a rodar; com a vista turva, mal podia distinguir as figuras que o rodeavam.
–          Quem é esse cara? Parece que veio do hospício.
Rosnou uma magricela desprovida de seios.
–          É o Xará, amigo meu! Prontificou-se Juvenal batendo no peito.
Mas ela não se convenceu da resposta; encarou Fagundes, jogando-lhe com desdém a guimba do cigarro.
De repente, introduziram-lhe uma moela na boca; um negro alto arrancou-lhe o Rolex do braço;   a música cessou abruptamente, e Fagundes vomitou na blusa do pijama cinza claro.
O carro de Jorge voava pela cidade, seus pensamen- tos se fixaram em dois homens: Felipe Albuquerque, ex- sócio de seu pai, e Maurílio Peçanha, cujo filho também morrera no acidente que ceifou a vida do seu irmão caçula. Jorge foi arrancado do seu devaneio, pela voz retumbante do locutor da emissora de rádio.
–          Comunicamos mais uma vez, senhores ouvintes, o sequestro do industrial Jorge Fagundes; homem de sessenta anos, casado, pai de quatro filhos…
–          O quarto filho, ele teve com a sua mãe. Berrou Juninho, como é chamado no jornal, desligando o rádio do carro.
Fagundes foi posto numa cama sem lençóis, de cujo colchão emergiam baratas que lhe sobrevoavam o corpo.
–          O que a gente faz, Zefa Pinto? Indagou Juvenal coçando a barba ruiva.
–          Chamar a polícia; é o jeito.
–          Mas a polícia não sobe aqui no morro, madrinha Zefa! Afligiu-se uma mulatinha menor de idade.
–          O homem está morrendo… ou a polícia sobe, ou Deus desce pra buscá-lo. Sentenciou a dona do cabaré. Por ironia do destino, um batalhão de repórteres aguardava o filho de Fagundes no portão de sua residência.
–          Júnior, por favor, o que você tem a dizer sobre o sequestro do seu pai?
–          Seu Fagundes tem inimigos?
–          Os bandidos já fizeram algum contato?
Falavam todos ao mesmo tempo, como descarga de metralhadora.
–          Pessoal, o papai não foi sequestrado…
–          A  gente  entende  a  sua  situação,  a  sua  dor!
Reiniciou a repórter, compassiva.
–          Principalmente  por  sermos  colegas,   Júnior!
Completou outra.
–          É que nos foi passada a informação de um pedido de resgate, no valor de um milhão de reais. Atacou o repórter de meia idade.
O filho do empresário deu um sorriso e retrucou:
–          São especulações da imprensa. Dito isso, buzinou estrepitosamente, meteu o pé no acelerador e transpôs o portão eletrônico.
Fagundes foi levado ao hospital do subúrbio; no final do corredor de paredes manchadas e úmidas, puseram-no na maca e aplicaram-lhe soro na veia. Ele ressonava, enquanto a enfermeira recém-formada limpava-lhe o rosto com gaze embebida em álcool.
O sargento rabiscava num bloco de papel, quando Jorge assomou à porta.
Dona Augusta tinha no semblante sinais de desânimo e frustração.
–          Meu filho! Balbuciou ela no conforto do abraço do seu primogênito, sem, no entanto, deixar de afagar os cabelos louros da filha que soluçava no seu colo.
–          Tudo anotado, senhora; a polícia porá a família a par de quaisquer pistas. Trovejou o sargento retirando-se, acompanhado por dois homens.
A campainha do telefone soou feito uma bomba na sala da mansão. O segundo toque pôs apreensiva a pequena família reunida; e, ao terceiro chamado, Jorge atendeu:
–          Alô?
–          Boa noite, é do asilo? Inquiriu alguém do outro lado da linha.
–          Não. Respondeu ele, seco.
–          Aqui é do hospital público, meu rapaz; é que nós estamos com um paciente de nome… E a voz tranquila pronunciou o nome de seu pai.
–          Como ele está? Jorge sentiu as palavras rasgarem-lhe a garganta.
Os corações das duas mulheres deram um salto e, no silêncio que se seguiu, ouviu-se o pio de uma ave noturna.
–          Qual é o endereço, por gentileza? Pediu Jorge, depois de se identificar.
Fagundes foi transferido para uma clínica particular ao sul da cidade.
Jorge caminhava cabisbaixo pelo pátio interno da clínica, aguardando o chamado do médico da família. Já era dia claro quando dona Augusta e a filha saltaram do táxi, atravessaram o vestíbulo do prédio cor de gelo e, seguindo Jorge, entraram na antessala do apartamento onde Fagundes estava sob observação.
O médico os recebeu, fez uma leve curvatura e indicou-lhes os assentos. Após o longo e minucioso relatório dos exames, o renomado neurologista comunicou à família que Fagundes seria submetido  a um urgente tratamento contra o sonambulismo.

A MAIOR RIQUEZA
André pediu ao pai que o levasse ao Jardim Zoológico na tarde ensolarada daquele sábado. Antes, porém, passaram pela casa do seu amigo Lucas, que morava a cinco quarteirões de distância. Os dois garotos se acomodaram confortavelmente no banco traseiro do carro, colocando imediatamente o cinto de segurança. Pela janela aberta, o vento entrava fresco diminuindo o calor intenso.
Assim que o automóvel parou no estacionamento, André e Lucas desceram apressadamente; olharam em torno, como quem procura alguma coisa.
–          Qual bicho você quer ver primeiro? Perguntou Lucas, ansioso.
–          Os macacos, é claro, eles são muito inteligentes!
Respondeu André, sorrindo.
–          Eu prefiro ver o leão, o rei da selva! Disse Lucas, estufando o peito.
–          Nem sempre o rei é o melhor. Rebateu André, desviando os olhos do amigo.
A um gesto de Roney,  os meninos puseram-se    a segui-lo. No primeiro carrinho de pipoca, André comprou três pacotinhos.
–          O leão come carne, por isso é forte! Comentou Lucas, dando um passo à frente.
– As pipocas não são para os macacos, pois a gente não deve dar comida aos bichos. Explicou André, distribuindo os pacotinhos entre eles.
–          Por quê? Quis saber Lucas, de boca cheia. André virou o rosto para o outro lado e respondeu:
–          Porque, segundo os tratadores dos animais, o alimento fora de hora lhes faz mal, além de ser de origem desconhecida.
–          Minha cachorrinha Bolota come sempre que tem vontade, e até no lixo ela fuça. Revelou Lucas sem nenhuma vergonha.
André fez de conta que não escutou; Roney os acompanhava de perto, em silêncio.
Enfim, pararam defronte à jaula dos macacos; André observava-os encantado!
–          Pai, veja aquele acendendo um cigarro, e sem se queimar; que destreza daquele outro ao descascar uma banana… Ia dizendo André, admirado!
Dali foram para a jaula das girafas. André ficou fascinado com as girafas desde o dia em que lhe disseram que elas são mudas;  na  sua  imaginação de criança, ele tenta descobrir como esses animais conversam entre si.
O sol se punha quando Roney os chamou para irem embora. Lucas sentiu muita raiva por não ter visto o leão, o tigre, a onça, as feras da sua preferência; entretanto, André permaneceu um tempo enorme contemplando as aves de todas as espécies.
Roney reencontrou um amigo, ao qual deu carona até um hotel próximo; este, ao descer, esqueceu uma mochila, e que só foi vista por André ao chegar em casa. Roney, supondo que na mochila houvesse apenas objetos esportivos, pediu ao filho para guardá-la, prometendo devolvê-la ao dono tão logo regressasse de viagem na segunda-feira à noite.
André explicou à mãe que Lucas teve permissão dos pais para passar o fim de semana com ele.
No quarto, os garotos abriram a mochila; Lucas ficou boquiaberto!
–          Poxa, agora você está rico! Exclamou ele, aproximando-se mais de André.
–          Nós somos ricos com o que possuímos, não com o que é dos outros. Retrucou André, segurando o maço de notas de cem reais.
Lucas tocou-lhe os ombros com as pontas dos dedos; depois, falou quase num sussurro:
–          Você não roubou, companheiro, achou.
–          A grana é do amigo do meu pai, o que você quer que eu faça? Interrogou André, elevando a voz.
Lucas se pôs a passear pelo quarto, sonhando acordado:
–          Eu, tão necessitado de uma bicicleta nova, de um computador mais possante, e ainda sou doido para ter um cão da raça rottweiler!
André ouvia tudo aquilo, indignado. Sua mãe bateu na porta avisando que estava indo a uma festa e que tinha deixado o dinheiro dos sanduíches e do refrigerante debaixo do telefone.
Lucas correu para o amigo; agachou-se, enlaçou- lhe as pernas, propondo:
–          Que sanduíche que nada, brother, vamos a um rodízio de pizza, de táxi!
André se desvencilhou do colega, guardou o maço de notas na mochila e trancou-a na gaveta da cômoda.
No dia seguinte, bem cedo, Lucas o pressionou:
–          O que você fará com a grana, já resolveu? André respondeu olhando a rua pela janela da sala:
–          Eu encontrei o número do celular do Sérgio; liguei, e ele vem buscar o que lhe pertence.
Lucas pôs as mãos na cintura, desanimado com a decisão do companheiro.
Ao primeiro toque da campainha, André correu e entregou a mochila ao homem pela grade do portão. Este, sem contar o dinheiro, sacou uma nota de cem e deu a André, agradecendo-lhe e, principalmente, parabenizando-o pela atitude.
–          O   que   você   vai   fazer   com   essa mixaria?
Perguntou Lucas com arrogância.
André respondeu sem hesitar, de cabeça erguida:
–          Vou comprar uns livros,  pois  foi  neles  que eu aprendi que a maior riqueza de uma pessoa é a honestidade!

A CAMINHO DO ALÉM
Não havia sol, nem brilhava a lua. Sob um céu de cor indefinida, caminhavam várias pessoas; seus pés descalços pisavam algo  semelhante  a  areia.  Um homem vetusto olhou para trás e, ao avistar caminhantes tão jovens, até mesmo crianças, pôs-se a andar imponentemente!
–          Ele viveu bem! Falou uma mulher magérrima e pálida, às suas costas.
Outra, com o aspecto não menos doentio, tossiu seco. Depois quase silêncio, não fosse um ruído intermitente parecido com o farfalhar de folhas ao vento.
–          É tão longe! Murmurou uma obesa de meia- idade, ofegante.
Um homem alto e de barbas negras apressou-   se em ajudá-la; ele usava terno cinza e de sua mão esquerda pendia uma maleta de couro marrom.
–          Será que era médico? Arriscou alguém, relanceando o olhar em torno.
Entretanto, toda a atenção do grupo se convergiu para uma criança que soluçava; seu vestido branco dava- lhe a aparência de um anjo, e dos olhos azuis corriam lágrimas que inundavam seu o rostinho pueril!
–          Deus há de confortar os seus pais, a família… pelo que lhe aconteceu. Consolou-a uma mulher bondosa, acariciando-a ternamente!
–          A culpa foi sua, brother. Acusou um rapaz de pouco mais de vinte anos.
–          Quem mandou o cara reagir? Rebateu o acusado, o mais novo dos três.
–          Era só passar a grana, na paz, eu disse. Completou o De Menor, ajeitando o boné na cabeça.
–          Você  se assustou, velho, logo na primeira  fita.
Comentou um mulato entre os dois.
Nesse exato momento, uma fragrância de rosas impregnou o ar! Um casal de idosos que seguia no grupo se entreolhou sorrindo!
–          Do que você se lembrou, minha velha?!
–          Daquela tarde do nosso casamento!… Respondeu ela, suspirante.
–          Nunca imaginei que, seis meses após minha partida, pudesse reencontrá-la. Tornou o velho, pegando-lhe a mão.
–          É que não suportei mais a solidão! Confessou ela, colocando o xale sobre os ombros.
Um homem que escutara a conversa dos anciões baixou a cabeça desesperançado, pois o filho pequeno, que, por sua irresponsabilidade, caíra no abismo, estava a trinta e oito anos de distância.
–          Por que criança morre? Quis saber um garoto saudável.
–          Para virar anjo! Respondeu outro menino.
–          Para que existe anjo? Tornou o primeiro.
–          Para proteger os que vivem na Terra, assim me ensinaram as freiras no hospital.
Impaciente, o garoto examinou o menino franzino a seu lado e perguntou:
–          Aonde a gente vai, pode jogar bola?
–          Não, apenas rezar para os vivos.
O garoto arregalou os olhos, indagando:
–          As freiras também lhe ensinaram isso?
O menino franzino limitou-se a menear a cabecinha miúda.
–          Eu gostava tanto de jogar bola na rua da minha casa, só que me acertaram “num dia de clássico”! Lamentou ele, pondo a mão sobre o peito.
Quatro jovens em fila indiana; todos cabisbaixos, mutilados e sombrios!
–          O tempo da velocidade acabou, me    esperem.
Gritou um rapaz aos companheiros de farra.
O primeiro da fila não lhe deu importância; tampouco o segundo, apesar de coxear horrivelmente.
–          Perdão, mano, sei que estou falhando novamente, já que ultrapassei a carreta pela direita. Lamentou o terceiro da fila.
–          Esqueça, Tiago, esse acidente há de servir de exemplo para alguém!
Tiago sentiu-se comovido com as palavras do irmão, recuou um passo e ergueu-o do chão.
Uma moça que andava ereta começou a esfregar os quadris freneticamente quando, de repente, suas vestes curtas e transparentes se transformaram em pétalas de rosa; ela se pôs a flutuar e tomou a dianteira do grupo, distanciando-se logo em seguida.
–          Vá com Deus, Patrícia! Murmurou a mulher obesa.
–          A senhora a conheceu? Interrogou alguém, tocando-lhe no braço.
–          Você não leu nos jornais o caso da universitária, cujo assassinato chocou toda a cidade? Retrucou ela, virando-se para trás.
–          Não, eu já me encontrava do lado de cá. Arguiu o homem, segurando com firmeza o braço flácido da mulher.
Esta, reconhecendo-o, atacou:
–          Mas também quando o senhor esteve do lado de lá, não fez nada para mudar esse quadro, deputado!
O homem inflou o peito, raspou a garganta e rebateu solene, impávido:
–          As pessoas precisam ter mais consciência, para não cometerem tantos erros; ademais, a solução dos problemas não depende exclusivamente de nós.
–          Duvido que Vossa Excelência tenha proferido tal discurso em campanha. Interveio um religioso, fechando a Bíblia.

–          Nem eu acredito que o senhor cumpriu à risca com tudo que pregou. Replicou o parlamentar.
–          Sendo assim, quem ganha mais dinheiro, a política ou a Igreja? Um aposentado interpelou as autoridades.
Ambos se mantiveram calados, indiferentes.
–          Quem é mais pobre, o eleitor ou o fiel? Troçou um famoso humorista da televisão.
Gargalhada geral!
Ao final de uma descida íngreme, uma linda moça aproximou-se de um homem, perguntando-lhe com voz suave:
–          Professor, se há pessoas que praticam o bem, outras que praticam o mal, por que então vamos para o mesmo lugar?
O mestre limpou a lente dos óculos e respondeu filosoficamente:
–          A cada aluno dei igual lição, porém, notas diferentes!
O grupo seguiu silenciosamente pela estrada; depois de uma curva, galgou o  morro  e,  ao  término deste, um enorme portão de ferro abriu-se pesadamente.



NOITE DE PRINCESA, DIA DE TERESA
A festa teve início pontualmente às oito horas. Sob um céu magnífico repleto de estrelas, Cristina cruzou o gramado de braço dado com seu pai, o rei Antônio.
Os convidados saudavam o rei, elogiando a beleza da filha.
– Linda princesa, Majestade! Disse um marquês, cavalheiro.
Cristina meneou a cabeça levemente.
–          Permita-me enaltecer a formosura de vossa filha, Majestade! Falou o duque com ênfase, depois de mirá-la demoradamente.
O rei se curvava agradecido a cada elogio; a princesa movia os lábios timidamente, enquanto seus olhos azuis passeavam céleres pelos convidados que abarrotavam o salão oval do palácio.
A rainha, trajando um elegante vestido grená, passou por  entre  as  mesas  e  encaminhou-se  para o rei. Cristina sorriu para as duas moças que acompanhavam sua mãe.
–          Princesa, Vossa Alteza é mais bonita pessoal- mente do que na revista! Exclamou a ruiva.
–          É verdade, minha prima tem razão, é mesmo maravilhosa! Concordou a gordinha de óculos.
–          Obrigada, vocês são muito gentis! Murmurou Cristina, inibida.
–          Elas vieram de longe especialmente para conhecê-la! Explicou a rainha, orgulhosa.
Cristina fitou-as com ternura, antes de apanhar uma taça de licor na bandeja de cristal. O garçom serviu a todos, retirando-se em seguida.
–          Que sabor delicioso! Comentou a ruiva, sob o olhar aprovador da outra.
–          É de jenipapo. Informou a rainha imediatamente.
A um aceno do rei, o mordomo aproximou-se pressuroso.
–          Às ordens, Majestade. Prontificou-se.
–          Osmar, por favor, diga ao maestro que pode dar início ao baile.
O mordomo fez uma reverência e foi cumprir a ordem. Cristina levantou-se para ir ao toalete; todos os olhares se convergiram em sua direção. Uma mulher de meia-idade, não se contendo, tocou com as pontas dos dedos o seu vestido de seda azul-claro; em uma mesa ocupada por três homens, o mais velho ergueu- se e só retornou ao assento assim que a anfitriã passou
por eles exalando um perfume adocicado.
–          Princesa Cristina, por gentileza, um minuto da vossa atenção. Chamou-a uma mocinha de tranças, cuja voz melíflua foi abafada pela orquestra.
O momento mais esperado da festa aconteceu     à meia-noite. A chegada triunfal do príncipe Felipe alvoroçou os corações das donzelas, arrancando-lhes do peito suspiros profundos!
O mordomo irrompeu abruptamente no salão de dança, onde o rei valsava com a filha.
–          Perdoe-me, Majestade, é que o rei Valentino acaba de adentrar o palácio em companhia da rainha e do príncipe Felipe. Comunicou ele, formal.
Pai e filha precipitaram-se para o jardim. Lá, os reis se abraçaram efusivamente, e se encaminharam para a biblioteca onde se puseram a fumar um charuto. A rainha Jurema puxou delicadamente a outra pela mão, com o intento de apresentá-la a uma condessa que ansiava conhecê-la.
Os olhos do príncipe Felipe devoravam Cristina, devastadoramente.
–          É inconcebível que ainda não tivesse conhecido tão rara joia!
Sua voz soou aos ouvidos de Cristina, límpida tal qual uma fonte de águas cristalinas! Ela, encantada com tanto charme e polidez, ciciou:
–          Ah! Parece um sonho!
O príncipe sentiu-lhe as mãos úmidas ao levá-las à boca e beijá-las com sofreguidão.
–          Que lindo luar! Murmurou Cristina, comovida.
O príncipe fitou-a por um instante, depois disse galanteador:
–          Toda a natureza que nos cerca, não tem o esplendor que tu irradias!
Felipe valsava com Cristina sob os olhares cobi- çosos das donzelas que os admiravam. Ela flutuava languidamente, envolta pelos seus braços varonis.
–          Que belo par formam nossos filhos! Contem- plou-os a mãe do príncipe.
–          Um par perfeito! Emendou a rainha Jurema, aprovadoramente.
O príncipe sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Cristina; esta ruborizou-se, mas ergueu a cabeça e fitou-o de frente; então, seus lábios abriram-se como pétalas de rosas… ele aconchegou-a mais a si e…
–          Teresa, ô Teresa, acorda, menina, senão você perde a hora.
Teresa Cristina despertou assustada com sua mãe esmurrando-lhe a porta do quarto.
–          Teresa, acorda, minha filha, levanta ligeiro dessa cama. Insistia dona Jurema.
Mas Teresa Cristina permaneceu muda, lembrando- se do sonho que tivera; depois, percorreu o pequeno quarto com o olhar, até encontrar sobre uma cômoda velha a jaqueta surrada ao lado da calça jeans desbotada.
Dona Jurema colou o ouvido à porta, por fim falou enfurecida:
–          Desisto, praga, também não sei pra que ficar vendo filme até de madrugada!
–          Inferno! Resmungou Teresa Cristina, jogando o cobertor para o canto.
–          Ufa! Pensei que você fosse dormir o dia todo, credo! Exclamou dona Jurema, quando a filha entrou bocejando na cozinha.
Um homem estava sentado num tamborete perto da janela aberta; rodava displicentemente um chapéu de palha no dedo indicador.
–          Não conhece mais seu pai, menina? Interrogou ele, ríspido.
Teresa Cristina estremeceu, desviando os olhos do velho enrugado à sua frente.
–          Senta aí, Teresa, já que você não consegue pegar o ônibus das sete, toma pelo menos um café com bolacha. Ofereceu a mãe, pondo o bule na mesa.
–          Tô sem fome hoje. Murmurou ela, observando o avental sujo da mãe.
Dona Jurema virou-se para o marido:
–          Antônio, pergunta pro Osmar se ele vai pra cidade agora cedo. Quem sabe essa criatura arranja uma carona… Seu  Antônio  atirou  a  guimba  do  cigarro  pela
janela e respondeu com tranquilidade:
–          Sorte dela que o Osmar precisa fazer compra, porque na mercearia a gente não acha nem fubá.
Automaticamente, Teresa Cristina abriu a gela- deira, tirou a marmita e colocou-a na bolsa.
–          Eu guardei o seu pedaço de frango do almoço, filha, vê se come. Gritou-lhe dona Jurema do portão.
Teresa Cristina sentou-se no banco empoeirado da Brasília de Osmar. Dois quilômetros adiante, o combustível acabou; felizmente, ele arrumou um litro de gasolina por empréstimo com um antigo freguês. Na metade do caminho, furou um pneu traseiro.
–          Puxa, esqueci de mandar remendar meu estepe!
Lamentou Osmar, batendo com a mão na testa.
Incrédula, Teresa Cristina saiu do carro.
–          Calma, Teresinha, deixa que eu vou parar um busão pra você. Berrou ele, descendo do automóvel e avançando para a pista.
Oito ônibus passaram lotados feito latas de sardinha; enfim, o décimo terceiro parou a cinquenta metros de distância. Osmar arrastou Teresa Cristina pelo braço até a porta dianteira.
–          Leva essa moça pra mim, colega, o diabo do pneu me deixou na mão. Disse ele ao motorista, ajudando-a a subir os degraus.
Ao meio-dia, Teresa Cristina sentou-se num banco da praça; abriu a bolsa, pegou a marmita e almoçou a comida fria; dos seus olhos, rolaram lágrimas grossas e quentes!
Fim de tarde. Exausta de tanto perambular pelas ruas da cidade, Teresa Cristina recostou-se numa árvore para se descansar.
–          Oi, Tê, saiu mais cedo da loja? Perguntou-lhe um rapaz corpulento, beijando-a com o rosto suado.
–          Sim. Respondeu ela, seca.
Ele passou-lhe o braço pelos ombros, enquanto caminhavam em direção ao ponto do ônibus.
–          Ai, Luís, tô cansada demais. Reclamou, esquivando-se.
Ao dobrarem uma esquina, alguém mexeu com ele da portaria de um prédio:
–          Eh, Barrão, seu time tomou de quatro ontem!
–          Vai à puta que te pariu, veado. Rebateu ele, sem olhar para trás.
–          Por que você permite que te chamem desse jeito? Indagou Teresa Cristina, sentindo-lhe o odor insuportável de óleo.
–          Qual é, Tê, é que eu sou conhecido dessa maneira lá no pagode, algum problema? Retrucou ele, acelerando o passo.
O trânsito estava completamente engarrafado; um acidente entre uma moto e um caminhão vitimou o motoqueiro, cujo corpo jazia no asfalto a céu aberto; o buzinaço ensurdecedor exasperou Luís ainda mais.
–          Todo dia acontece essa desgraça! Xingou ele, impaciente.
Teresa Cristina mantinha-se impassível a seu lado.
–          Você está diferente, Tê, o que foi? Quis saber ele, desconfiado.
–          Nada, só estou farta desta vida de pobre! Quando o ônibus entrou na vila onde moravam,
após duas horas de viagem, Luís abriu a camisa e anunciou:
–          Vou descer no próximo ponto, preciso tomar uma cerveja no trailer do Gigante, senão eu explodo! Teresa            Cristina           acompanhou-o            indiferente.
Sentaram-se à mesa na calçada, e um homem muito alto e magro veio atendê-los.
–          E aí, Barrão, uma gelada pra refrescar a   cuca?
Perguntou o proprietário, limpando a mesa.
Luís limitou-se a sacudir a cabeçorra afirmativamente.
–          O que deseja tomar…
–          Cristina é meu nome; aceito um suco de laranja, por favor.
O dono do estabelecimento passou a mão comprida pela barbicha e, antes de sair, disse saudoso:
–          Quando eu era jovem, li um livro que contava a história de uma princesa chamada Cristina.
Ela sorriu e olhou a lua no céu azul!
Luís tomou um largo gole de cerveja, encarou a namorada e comentou depois de um arroto:
–          Você está esquisita, Tê, parece no mundo da lua!… Teresa Cristina redarguiu sem se alterar:
–          Estou mesmo é no olho da rua.
Luís arregalou os olhos; a expressão no rosto dela era de pura resignação.
–          Meu patrão me demitiu, jogou na minha cara que eu faltei seis vezes em quatro meses. Relatou ela, serena.
–          Valentino, filho da puta …, quando ele aparecer no posto pra abastecer, dou um soco na fuça dele! Bradou Luís, esmurrando a mesa.
Quinze minutos mais tarde, Luís deixou-a em casa. Teresa Cristina arremessou a bolsa em cima da cômoda, deitou-se de bruços na cama sem forças para dar a má notícia aos pais.

ÚLTIMOS SUSPIROS
Deitado no leito sob os lençóis alvos e limpos encontrava-se Ulisses, enfermo gravemente. Ele despertou e abriu os olhos numa bela manhã!
–          Ah! Graças a Deus o senhor hoje está melhor! Saudou-o a empregada, ao ouvi-lo assobiar uma melodia brejeira.
–          Nada como um novo dia, Joana! Explicou Ulisses.
–          Eu vim lhe trazer estas cartas, vou deixá-las sobre a cômoda. Disse ela cumprindo a tarefa e, retirando-se, comentou:
–          Hoje, o carteiro passou mais cedo.
–          Joana, antes de você sair, abra essa janela, deixe o sol entrar! Pediu Ulisses.
No momento em que a empregada cumpria a ordem, o telefone tocou.
–          Volto já, seu Ulisses, deve ser dona Sônia.
O sol iluminou o quarto e trouxe consigo uma linda borboleta azul! Mas Joana, de volta ao aposento, investiu contra o inseto, com o cabo da vassoura.
–          Esse bicho dentro de casa, não pode porque…
–          Não  faça  isso,  criatura,  ela  veio  me   visitar.
Repreendeu-a Ulisses.
–          Minha avó dizia que borboleta só aparece para se despedir da gente; mas, já que o senhor prefere… Cedeu ela, cruzando os braços.
–          Quem era ao telefone ? Você se esqueceu de contar. Falou Ulisses, mudando de assunto.
–          Eu lhe dou o que quiser, se acertar qual a pessoa que ligou. Propôs a empregada, sentando-se numa cadeira ao lado da cama.
–          Compadre Pedro Almeida, padrinho do meu filho Ricardo. Arriscou Ulisses, sem pensar.
Joana sacudiu a cabeça negativamente.
–          Pedro e eu não nos encontramos desde o enterro de Ricardo, há dois anos! Lembrou o doente, sombrio.
–          Arrisque outro palpite, seu Ulisses, imagine uma coisa boa! Instigou-o Joana.
–          Lázaro, meu conterrâneo, só pode ser. Joana fez uma careta e disse:
–          Esse homem ficou devendo ao senhor uma fortuna; e, minha avó dizia que dívida com mais de vinte anos quem paga é o Satanás.
Ulisses acompanhou a borboleta voar pela janela.
–          Então, Joana, eu não sei. Confessou, resignado.
–          Era a Maria do Carmo ao telefone, seu Ulisses, o senhor acredita?!
Ante a revelação da empregada, Ulisses suou frio, depois fitou-a estupefato.
–          Onde será que ela conseguiu o meu    número?
Perguntou ele, incrédulo.
–          Com o Maurício, seu irmão. Respondeu Joana, prontamente.
– Maurícioé um irresponsável; sea Sôniadescobre, decerto vai ralhar com ele, e com toda razão. Irritou- se Ulisses.
–          Vai ver Maurício só quis lhe fazer o bem, aproximando do senhor as pessoas queridas! Ponderou Joana, serena.
–          Maurício nunca me perdoou por eu ter me casado com Sônia, e, assim sendo, conheço a sua real intenção. Confidenciou Ulisses, exaltado.
–          Dona Sônia  não  dá  importância  a  picuinha, o senhor pode ficar descansado. Assegurou Joana, levantando-se.
–          Vou preparar a sua sopinha, o senhor já falou demais por hoje. Avisou a empregada.
–          Joana,  quero  uma  xícara  de  café,  por favor!
Pediu ele, humildemente.
–          O médico proibiu, seu Ulisses, não seja teimoso. Recusou-se ela, indo abrir a porta da sala quando ouviu a campainha.
–          Ah,  dona  Sônia,  que  bom  a  senhora chegar!
Exclamou Joana, aliviada.
–          Seu Ulisses quer tomar café, daqui a pouco pede doce e, se não bastasse, no almoço fala que tem vontade de comer torresmo. Delatou ela.
–          Vá cuidar das tarefas, Joana, que eu resolvo esses probleminhas.
Sônia dirigiu-se ao quarto do marido, anunciando:
–          Olhe quem veio ver o vovô, quem será?!
Ela entrou no quarto, escondendo a criança atrás de si.
–          Meu passarinho preto. Disse Ulisses.
–          Passarinho voou, voou…
Ulisses relanceou o olhar, procurando pela pessoa de tão meiga voz!
–          Meu peixinho dourado. Prosseguiu Ulisses.
–          Peixinho nadou, nadou… Tornou a criança, sempre encantada com a brincadeira de todas as vezes.
–          Se não é o passarinho, nem o peixinho, é a minha netinha Raquel, um anjo do céu!
E a criança mostrou o rostinho angelical; depois, sorridente e saltitante, foi pedir a bênção ao avô e beijar-lhe a mão.
–          Conte ao vovô o que fomos fazer hoje,  Raquel.
Pediu Sônia, achegando-se a eles.
Ulisses fitou a neta, cuja semelhança com Ricardo é incontestável, acentuada pelos grandes olhos verdes.
–          Nós fomos encomendar os balões coloridos, pratinhos e copinhos de papel, docinhos e salgadinhos de verdade, tudo para a minha festinha de aniversário no sábado!
–          Que maravilha, bonequinha, e quantos anos você vai fazer mesmo? Indagou Ulisses, afagando- lhe os cabelos cacheados.
Raquel ergueu a mão direita, mostrando quatro dedinhos rosados.
–          Venha, princesa, vovó vai colocá-la na banheira com água quentinha, para você ficar bem cheirosinha!
Ulisses estendeu o braço e pegou as correspon- dências, entre as quais havia um telegrama de sua irmã caçula.
Quando Sônia retornou ao quarto, encontrou o marido sorrindo!
–          É Flávia comunicando que vem passar o Natal conosco! Explicou Ulisses, passando-lhe o telegrama.
Assim que Sônia terminou a leitura, ele pediu com voz cansada:
–          Sônia, sabe aquela fotografia de Ricardo esquiando?
–          Sim. Respondeu ela, apreensiva.
–          Deixe-me vê-la, pois estou com muita saudade do nosso filho!
Ela fez menção de reprimi-lo, mas Ulisses implorou com brandura:
–          Traga-me, prometo que não choro!
Sônia fez-lhe o desejo; entregou-lhe a fotografia exposta numa magnífica moldura de marfim.
–          Ricardo era tão jovem, tão cheio de vida… Ulisses   contemplou   o   filho   por   mais alguns
instantes, depois deu um suspiro derradeiro!
Sônia cerrava-lhe as pálpebras, quando Joana adentrou o aposento com o prato de sopa fumegante nas mãos.

SOLIDARIEDADE ANIMAL
Ao entardecer de um dia de inverno, reuniram- se sob  uma  frondosa  gameleira  todos  os  bichos  da fazenda e adjacências. A bicharada fez silêncio absoluto no momento em que a vaca se aproximou com passo tardo.
–          Boa tarde, senhores! Cumprimentou ela com sua voz de contralto.
–          Hoje, pela manhã, quando fui beber água no rio, um cardume de peixes me procurou. Iniciou ela, séria.
–          Haverá festa, que bom! Arriscou um ratinho.
–          Cale a boca, Leo. Repreendeu-o o gato de pelo cinza, tendo os olhos fitos no roedor.
–          Os peixes clamaram das condições em que se encontra a água. Continuou Catarina, a vaca.
–          Como assim, mulher? Perguntou o boi sem atinar com o motivo.
–          Reclamaram que a água está suja, infectada, que o homem tem poluído os rios, atirando neles tudo quanto é lixo, como se os coitados fossem aterro sanitário.
–          É verdade, dona Catarina, faço minhas as palavras deles. Endossou o marreco, impávido.
–          Que dó, meu Deus! Exclamou uma borboleta de asas azuis.
–          Continue, dona Catarina, por favor. Pediu o coelho, saltitante.
A vaca estufou o peito e prosseguiu:
–          Com tanta poluição, eles estão morrendo asfixiados, é a falta de oxigênio…
–          Se o assunto é tão relevante, por que eles não vieram para a reunião? Cortou uma voz fanhosa.
–          Mas você é mesmo um burro, pois peixe não vive fora d’água. Respondeu o bezerro, quase um garrote.
–          Meu filho, não é preciso ser indelicado com seu Jurandir. Corrigiu-o a mãe.
–          E se não nos solidarizarmos com os peixes, sofreremos as mesmas consequências. Advertiu o cavalo.
–          Que consequências? Espantou-se um bode mais afastado do grupo.
–          Pedro tem razão, senhores. Tomou a palavra novamente Catarina, olhando de esguelha para o cavalo.
Todos os bichos ficaram mais atentos, apreensivos.
–          Poluir os rios, devastar as florestas, é maltratar a natureza… e as consequências são infalíveis, levando- nos a um caótico estilo de vida!
 –         Sendo assim, não é possível viver neste mundo; certo, mamãe?! Indagou a bezerrinha ainda criança.
A vaca passou a pata enorme pela cabecinha branca da filha e sorriu.
–          Eu odeio o homem, esse malvado só me dá pauladas. Queixou-se a cobra, enroscando-se atrás de um toco.
–          É exagero seu, Marieta, porque quem é fiel ao homem o tem como amigo para sempre! Defendeu o cão de focinho preto, abanando o rabo freneticamente.
–          Chega de conversa fiada, vamos ao que interessa.
Interveio o gato, autoritário.
Jorge rosnou e mostrou as presas.
–          Queridos companheiros, eu, Catarina Oliveira de Mendonça Nunes, esposa de Osvaldo Augusto Nunes, progenitora de Bruno e Carlinha, apresento- lhes a seguinte solução…
De repente, um tiro ecoou na mata.
–          Puxa, ainda bem que estou presente nesta bendita reunião! Suspirou o veado feliz atrás do cão.
–          Psiu, veadinho bobo. Ciciou a andorinha, pondo a asinha na ponta do bico.
Jorge ergueu as orelhas e farejou a caça, sacudindo a cauda.
A vaca o censurou, severamente:
–          Hoje, nada de intrigas, somos todos pela mesma causa: a preservação do meio ambiente e a salvação da fauna brasileira!
–          Então, apresente-nos a solução, professora. Manifestou-se o macaco trepado no galho da árvore.
–          Bem, eu levei o problema dos peixes ao conhecimento do Pedro que, por sua vez, nos aconselha a agir de maneira rápida e enérgica devido à gravidade da situação, antes que esta venha a nos afetar diretamente.
O cavalo bateu a pata traseira no chão, em sinal de aprovação.
–          Meu marido é um sábio! Elogiou uma exuberante égua de crina comprida.
–          A coisa não é tão caótica assim. Discordou uma voz que pareceu ter brotado da terra.
–          Sua opinião tem de ser desconsiderada, pois você vive se chafurdando na lama, Raimundo, porco! Indignou-se o pavão todo garboso.
–          Letícia, distribua estas cartilhas, que eu mesma preparei, entre os presentes, por favor. Solicitou a vaca.
–          Leiam atentamente o texto e as instruções logo abaixo. Orientou Catarina durante a distribuição.
Letícia desempenhou a tarefa graciosamente! E, de regresso ao seu lugar, um potro sussurrou-lhe ao ouvido:
–          Potranca linda, casa comigo?!
Letícia esquivou-se do atrevido, refugiando-se sob a crina da mãe.
–          Anoiteceu, comadre, preciso recorrer aos óculos para ler, senão… Lamentou a cabra, dirigindo-se à vaca.
Terminada a leitura, alguém observou:
–          Realmente, dona Catarina, o negócio está preto!
–          Olhe o preconceito, Cristóvão. Alertou o urubu.
E o peru ficou vermelho de vergonha.
–          Titia cochilou o tempo inteiro. Delatou uma franga do pescoço pelado.
–          Também, não sei para que uma reunião passar das sete horas. Resmungou a obesa galinha, tendo os olhos semicerrados.
–          Pessoal, tudo agora depende de nós; se cumprirmos à risca com o nosso papel, quem sabe o homem terá bom senso!
Dito isto, a vaca fez um aceno e deixou a assembleia seguida pelos filhos.
–          Boa noite, sinhá, e pode contar conosco! Garantiu a pomba.
–          Colegas, só mais um detalhe: não se esqueçam de que o acordo selado aqui é segredo. Lembrou o cavalo.
–          Fique sossegado, seu Pedro, comigo é bico fechado. Assegurou o papagaio no verdor da idade.
–          Será, moleque linguarudo?! Duvidou o gato, afiando as unhas.
–          Você me acompanha num drinque no bar do Chico, Osvaldo? Convidou o cavalo.
O boi babou e respondeu-lhe:
–          Com muito prazer, Pedro. Vamos nessa, Jurandir?
O burro empacou e respondeu carrancudo:
–          Não, detesto aquele gavião metido a besta.
–          Um  aperitivo  antes  da  ração,  é  bem-vindo!
Disse o cão, juntando-se aos dois.
–          Quem é que cuidará da guarda noturna, moço?
Inquiriu a coruja.
–          Dona Laura, além de mim, há três vigilantes; portanto, não se preocupe com a segurança. Redarguiu o cão, saindo em disparada para alcançar os companheiros.
–          Enfim, conseguirei dormir; ô, povo que conversa alto! Xingou a preguiça ao notar o silêncio em volta.
Amanheceu. Os vaqueiros perderam a hora, pois os galos não cantaram ao alvorecer! As vacas deram um leite minguado, insuficiente até mesmo para o consumo doméstico. A empregada saiu em busca de ovos para fazer o bolo predileto da filha do patrão, porém encontrou os ninhos totalmente vazios. Os caçadores acharam os cães lerdos, displicentes, e resolveram não enfrentar o perigo, mesmo munidos de armas. Os tropeiros se assustaram com a reação dos bois, quando estes prostraram no meio da estrada. Os pescadores retornaram cabisbaixos no fim da tarde, carregando as varas sobre os ombros.
As semanas foram passando arrastadas e sem qualquer mudança no comportamento da bicharada, tornando-a mais e mais emagrecida e descorada. Desesperado ante a epidemia que devorava os animais, o fazendeiro mandou vir um veterinário da cidade, o qual diagnosticou desnutrição, desidratação, entre outras enfermidades.
Consciente da boa e farta alimentação dada aos bichos, o desolado fazendeiro concluiu, resignado, que a má qualidade da água do rio adoecera o seu rebanho. Decidido a recuperá-lo, o homem não poupou gastos para tratar do rio que ele havia irresponsavelmente poluído!
O resultado foi positivo. O sol brilhou no horizonte, as flores desabrocharam, e todos os bichos saciaram a sede nas águas límpidas dos rios, a bela morada dos peixes!


ENTRE A CONFISSÃO E A CONDENAÇÃO
A mulher aguardava pacientemente. Era ainda jovem, bela e tinha os olhos serenos.
–          Vão em paz e que o Senhor os acompanhe! Encerrou a celebração da missa das sete horas da manhã o padre de feições delicadas.
A mulher puxava os cabelos num gesto vago, alheia a tudo. Seus lábios carnudos e vermelhos entreabriam-se, enquanto os seios subiam e desciam lentamente por sob a blusa decotada.
–          Há alguém esperando pelo senhor no confessio- nário, padre. Avisou o sacristão.
–          A esta hora?! Exclamou o sacerdote encami- nhando-se para lá.
Ao chegar, deparou-se com uma mulher cuja saia mal cobria as coxas.
–          Bom dia, minha filha! Cumprimentou o vigário sentando-se à sua frente.
A mulher ergueu a cabeça e jogou no colo uma bolsa que valia bem mais do que as suas vestes. A presença do ancião envergonhava-a, o silêncio emba- raçava-a.
–          Estou aqui para ouvi-la, minha filha, em nome de Deus!
–          Eu o matei, padre. Confessou ela abruptamente. O  vigário acompanhou-lhe         os        movimentos. Viu-a retirar da bolsa um celular igual ao que vira nas mãos brancas e peludas do Bispo, num almoço de
confraternização.
–          Quanto lhe custou esse aparelho? Indagou ele para despistar.
–          Ele me deu faz uns quinze dias.
–          Não me lembro de tê-la visto aqui na igreja.
Disse o vigário sondando.
–          Eu não sou daqui. Informou ela guardando o celular na bolsa de couro marrom.
–          De onde é, então?
–          Do interior, eu fugi de casa.
–          Por quê? Perguntou o velho padre aproximando- se mais dela.
A mulher ajeitou os cabelos num modo faceiro e, pela primeira vez, fitou no sacerdote os olhos claros.
–          Eu tinha dezessete anos quando peguei barriga; meu pai me deu uma surra e…
O experiente padre imaginou a cena: falta de alimentos, de educação e de diálogo.
–          Quando você o conheceu? Inquiriu o vigário entrando no assunto.
          No pagode. Respondeu ela cruzando os braços morenos.
–          Há quanto tempo?
–          Três anos.
O sacerdote alisou a batina com a mão esquerda e, com a outra, remexeu as contas do terço.
–          Como era a vida de vocês?
–          Um inferno! Desculpa, padre.
–          Ele já bateu em você?
–          Nossa, muitas vezes… A primeira foi quando ele levou um amigo pra almoçar lá no barraco; e, só porque eu falei que o moço é bonito que nem o Fábio Assunção, depois que o moço foi embora, eu apanhei igual uma cachorra.
O padre avistou uma marca roxa em um dos seus ombros, desviou o olhar e perguntou:
–          Fábio Assunção é seu parente?
–          Não, padre, ele trabalha na novela das oito.
O sacerdote afugentou um mosquito; depois se deu conta de que nunca assistira a uma novela. Em pensamento, teve pena dessa pobre gente que se perde nas fantasias da televisão, mas não atina para a realidade da vida!
–          Vocês viviam com que renda?
–          Eu trabalhava na padaria, mas ele me tirou de lá.
–          E ele, era empregado? Insistiu o vigário.
–          Vigia noturno, mas…
–          Continue. Pediu ele.
A mulher deu voltas com uma bela correntinha entre os dedos finos e longos.
–          Ele estava desempregado… confusão com a justiça. Rematou ela cabisbaixa.
–          Que confusão houve? Pode relatar, minha filha.
–          Pensão pros outros filhos dele e…
–          E o que mais? Forçou ele brandamente.
–          Padre, eu tenho com ele um menino de dois anos; uma noite, fui levar esse menino no posto de saúde, pois ele estava doente.
O sacerdote escutava-a com atenção.
–          Aí, quando eu voltei já de madrugada, ele estava dormindo com a minha menina; eu juro que não vi nada de mal, pois ele a criava desde os cinco aninhos.
Ela fez uma pausa, como se fosse mudar a página de um livro invisível.
–          No outro dia a minha filha me contou que ele a mandou dormir nua.
–          Prossiga, minha filha, vá em frente. Animou-a o pároco.
–          A menina é pequena, mas é sabida, graças a Deus… O senhor acredita que a danadinha contou na escola e a polícia bateu lá no barraco de tarde?
O vigário ignorou a pergunta e fez outra:
–          Vocês usavam drogas?
–          Sim. Confirmou ela sem receio.
O vigário refletiu por um momento e dirigiu-lhe a pergunta, peremptório:
–          Por que você o matou?
–          Eu não aguentava mais ser agredida; minha filha fugiu de casa duas vezes; nós estamos sem luz faz uma semana, ninguém merece!
–          Isso é motivo para você ter matado o seu marido, cometer um crime, pecar? Censurou-a com rispidez, o religioso.
A mulher deu um suspiro profundo e continuou:
–          Ontem nós fomos ao rodeio.
O bondoso pároco não compreendia como as pessoas frequentavam aquele tipo de festa, em que se maltratavam os animais e se ouvia uma música tão alta, de má qualidade, cuja letra não traz uma mensagem sequer!
–          Ele sumiu na festa inteira; voltou pra buscar as crianças e eu, de carro.
–          De carro? Assustou-se o sacerdote.
–          É, padre, ele disse que tinha feito um negócio, mas eu não acreditei.
–          Como assim? Quis entender o vigário.
–          Ele andava muito esquisito, tinha outra mulher o desgra… o safado.
–          Calma, minha filha! Aconselhou-a o sacerdote.
–          Eu vim embora com as crianças no banco de trás; ele e o amigo vieram na frente contando caso, rindo, bulindo com as putas na beira da estrada…
O religioso franziu a testa ante a descompostura da confessa.
–          Em cima do banco do carro, eu achei essa bolsa. Lá no barraco, eu olhei os documentos… Avagabunda que andava com ele, é médica.
No rosto enrugado do religioso estampava-se o cansaço. Cansaço dos setenta anos de vida, dos quais grande  parte  dedicada  ao  sacerdócio;  cansaço  do mundo de hoje, onde imperam a droga e a violência; e, sobretudo, cansaço do descompromisso das autoridades que dão os maiores maus exemplos!
–          Você  o  assassinou  na  presença  das crianças?
Preocupou-se o vigário.
–          Não, padre, Deus me livre! Respondeu ela, benzendo-se.
–          Foi de madrugada; dei muitas facadas nele… eu vivia com muita raiva!
–          Você está arrependida?
–          Sim. Balbuciou ela.
–          E as crianças, minha filha, quem vai criá-las?
–          Deus ajuda! Disse ela desolada.
–          E Ele há de perdoá-la, minha filha!
Dizendo isto, o religioso levantou-se com dificul- dade, arrastou-se até a porta e saiu para o pátio.     Ao final deste, dois policiais o interceptaram com reverência.
Três anos se passaram. A mulher se achava sentada no banco dos réus.
Sob o lenço azul-marinho despontavam, precoce- mente, fios de cabelos brancos.
Ela permanecia impassível. Porém, não compre- endia por que um homem alto e de barbas negras, além de chamá-la de assassina, acusava-a de ladra e traficante.

VIAGEM DE TREM
A viagem durava cerca de três horas, quando o trem parou numa estação; esta se encontrava vazia,  e dela entrou no vagão apenas uma passageira. Era uma moça trajando calça jeans, blusa de gola rulê vinho, além da bagagem de mão. Ela olhou em  torno e foi sentar-se ao lado de uma mulher que lia, concentrada, um livro. Antes de ajeitar a bolsa entre os pés, consultou o relógio de pulso.
–          Puxa, o trem está bastante atrasado! Falou a jovem em voz alta.
A mulher fechou o livro abruptamente e olhou-a sobressaltada, pois nem percebera a sua chegada.
–          Desculpe-me, assustei a senhora! Pediu a moça, constrangida.
Amulher guardou os óculos de leitura num estojo prateado, sorrindo-lhe afetuosamente.
–          Não se preocupe, querida! Disse ela. Depois, olhando pela janela, concluiu:
–          Leio para passar o tempo.
A moça examinou-lhe o semblante sereno, a tez morena, os cabelos curtos  e  grisalhos,  mas  foram os olhos grandes e pretos que mais lhe chamaram a atenção.
–          Também gosto muito de ler, principalmente romance. Comentou a moça, puxando assunto.
–          Mas… uma agradável conversa é bem melhor!
Falou a mulher, gentil.
A jovem, sentindo-se à vontade, perguntou:
–          A senhora vai à capital?
A mulher recostou-se na poltrona, suspirou e respondeu:
–          Sim, ficarei lá por alguns dias.
A moça notou-lhe um fulgor nos olhos e prosseguiu:
–          É a primeira vez que a senhora vai à capital?
A mulher sacou de uma sacola um lenço amarelo e pôs-se a enxugar o suor da testa. Por fim, mirou a interlocutora de frente e disse:
–          Para falar a verdade, eu nunca tinha saído da minha cidade.
E, ao ver o espanto no rosto da jovem, continuou:
–          Eu estou viúva há oito meses, e só agora poderei cumprir a promessa que fiz à minha mãe.
O serviço de alto-falante anunciou  a  chegada da próxima estação. Seis pessoas desceram: duas meninas de tranças, um homem carregando caixinhas de papelão, outro gordo e calvo seguido pela esposa com o filho nos braços.
–          Perdoe-me, senhora, esqueci-me de perguntar- lhe o nome.
–          Virgínia; e você, como se chama?
–          Celeste.
Virgínia permaneceu em silêncio por alguns segundos, enquanto observava as crianças correrem pela plataforma; e, assim que o trem se pôs em movimento, revelou saudosa:
–          Celeste é o nome da minha falecida mãe!
A moça arrepiou-se ao lembrar-se de sua mãe contar que lhe pusera o nome da avó.
O trem percorria velozmente os trilhos por entre montanhas…
–          Mamãe sofreu muito até  morrer,  ela  nunca  se conformou com a fuga da minha irmã. Contou Virgínia.
Celeste balançou a cabeça levemente.
–          Atitudes de moça sem juízo. Rematou Virgínia.
–          Ela conheceu alguém? Indagou Celeste.
–          Apaixonou-se por um forasteiro e…
Virgínia fez um gesto amplo com os braços; por fim, colocou a mão no queixo, pensativa.
–          Queira Deus que eu a encontre um dia… sei que é uma missão difícil. Encerrou a mulher, consciente.
O trem cortava as verdes colinas banhadas por um rio de águas abundantes e cristalinas.
–          A sua irmã não voltou mais para casa, nem deu notícias? Interrogou a jovem.
–          Há vinte e cinco anos que não a vejo. Principiou Virgínia, fitando-a. Depois disse:
–          Porém, tivemos notícias muito tristes a seu respeito.
Celeste escutava apreensiva.
–          Soubemos, por exemplo, que o homem a abandonou com dois filhos pequenos.
Celeste ficou confusa nesse momento, pois se recordava de sua mãe dizer que o papai morava no céu, junto de Nosso Senhor! O irmão mais novo, entretanto, manifestava certa revolta, não aceitando  a explicação.
–          Como obtiveram as informações, dona Virgínia?
Quis saber a moça, curiosa.
O vento frio que penetrava pela janela obrigou Virgínia a vestir uma blusa de lã cinza.
–          O homem apareceu lá na cidade novamente, e até nos forneceu o endereço, mas, infelizmente, ela já havia mudado.
Celeste guardava claramente na memória os tempos difíceis que passaram, quando chegaram à capital: a mãe desesperada à procura de emprego;    o irmão, febril, a tossir à noite inteira… Todavia, o que mais a magoava, era ver sua mãe debulhada em lágrimas, tendo diante de si um maço de cartas.
–          Meu Deus, já anoiteceu! Exclamou Virgínia. Celeste sentia a cabeça um pouco dolorida.
–          Não sei como irei me arranjar, à noite tudo é mais complicado. Lamentou a mulher, contemplando o céu carregado de estrelas!
Celeste apanhou um comprimido na bolsa e engoliu-o a seco.
–          Eu não vou deixá-la procurar hotel a esta hora, amanhã…


–          Não quero incomodar ninguém. Atalhou Virgínia.
–          A senhora dorme lá em casa hoje. Decidiu a jovem, esboçando um sorriso.
Enfim, o trem parou na estação final, e os passageiros precipitaram-se para a saída. Celeste inspecionou com os olhos a multidão espalhada pela plataforma, mas não encontrou o irmão que sempre fora buscá-la.
–          Você mora longe daqui? Perguntou Virgínia, caminhando atrás da moça.
Celeste nem a escutava; avançou mais uns passos e, para sua surpresa, avistou a mãe sentada distraidamente num banco de madeira.
Ao se aproximarem, Virgínia a reconheceu instantaneamente; e, antes de qualquer apresentação, chamou-a:
–          Madalena!
Madalena desviou os olhos da filha e pousou-os na mulher.
E, num impulso recíproco, elas se envolveram num forte abraço cheio de uma intensa saudade que se rebentou num pranto sem fim!
–          Minha irmã, minha querida irmã… Balbuciavam ambas, devoradas pela emoção.
Celeste assistia à cena, comovida e feliz!



Nenhum comentário:

Postar um comentário