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sábado, 5 de março de 2016

O Convento Esculpido

 O Convento Esculpido


Henrique Anders

Obrigado Pai.
~~~~~
Agradeço à minha querida filha que perdeu tempo de brincadeiras para que eu pudesse escrever este conto.
Agradeço ao amigo Ruben Silva por me acompanhar nesta jornada.

Copyright 2015 Henrique Anders Ilustrações por Patrik Caetano

Distribuído pelo Smashwords
Este eBook está licenciado para fins não comerciais. O seu conteúdo pode ser copiado e distribuído parcial ou integralmente desde que o mesmo mantenha a sua forma original. Este conto não segue as normas do novo Acordo Ortográfico.

Para se manter a par dos últimos acontecimentos de Henrique Anders, ter acesso em primeira mão a novos lançamentos ou ainda simplesmente para dizer um olá, visite e faça Gosto na página oficial do autor no Facebook.

Desejo-vos uma agradável leitura.



O Convento Esculpido

Foi invadido subitamente pelo receio, já não tinha tanta convicção de que aquela seria a melhor decisão. Adornada com espigões de ferro enegrecido, a velha porta de madeira encarava-o sem qualquer pudor ou misericórdia, como se o mandasse embora. Parecia observá-lo de alto-a-baixo, desde os pés descalços até ao cabelo negro e esgrouviado, passando por aquilo a que se atrevia chamar de vestes, não mais que uns trapos velhos e sujos. Porém, os maus-tratos que a vida lhe fora oferecendo ao longo dos seus doze anos estavam bem vivos na memória. Os pontapés soavam-lhe a carícias e eram tudo o que conhecia. Estava decidido a não mais aceitar aquele tipo de tratamento. Pelo menos aqui terás comida, acalentou-se o pequeno Barto. O que fazes aqui? Este lugar não é para ti. Contra as hesitações, levantou o punho.


Antes que os nós dos dedos encontrassem a madeira, como se possuísse vida própria, a pesada porta abriu-se e as dobradiças gritaram num ranger de ferrugem. Foi recebido por não mais que um mero sussurro do vento.
— Alguém? — Perguntou Barto à escuridão escondida para lá da ombreira. Ninguém respondeu.
Um arrepio percorreu-lhe a nuca e espalhou-se por todo o corpo. Foi o suficiente para que não repetisse a pergunta. Apesar de sentir que a coragem estava prestes a abandoná-lo, limitou-se a empurrar o pé direito na direcção do interior escuro, o esquerdo acabou por segui-lo. O arfar da própria respiração era o único som presente e os olhos ainda tentavam ver alguma coisa quando a claridade da rua atrás de si, num ápice, encolheu. Virou-se de um salto e ainda pôde ver o último rasto de luz do entardecer antes da velha porta se fechar.
Daquela vez as dobradiças permaneceram caladas.
Não via um palmo à frente e o arrepio insistia em permanecer-lhe no corpo.
Estava prestes a bradar por alguém quando se lembrou daquilo que o velho monge lhe dissera na estalagem.

— Depois de entrardes, durante trinta anos não podereis falar. A menos que vos perguntem algo, o silêncio será o vosso companheiro. Faz parte do aprendizado. Podereis ouvir, se vos aprouver. — Ainda conseguia ver a redonda e corada cara de deboche do velho quando, depois de esvaziar a cerveja num bom gole, concluíra por entre os risos. — Trinta anos, meu pequeno… passam num instante e… o Convento nunca dorme. — Não chegara a perceber porque aquele monge lhe viera falar.
Ouvira as histórias do Convento desde sempre e apesar de serem todas diferentes, tinham algo em comum, no Convento não se pratica o mal. Era uma verdade reconfortante, pelo menos acreditar nela era. Os olhos começaram a distinguir algumas silhuetas nas paredes. Arrastou os pés pela pedra fria e aproximou-se lentamente. Tapeçarias! Descobriu ao tocá-las.
O coração quase lhe saltou boca fora quando um clarão repentino nasceu ao fundo da sala, junto a um corredor escavado na rocha. Uma criança pálida segurava um castiçal. A chama da vela oscilava, mas era o suficiente para agora poder vislumbrar toda a sala, que mais parecia uma gruta. Uma explosão de figuras e cores nas tapeçarias que cobriam as paredes davam-lhe alguma vida.
Regressou o olhar à criança e ela sorriu-lhe. Não teria mais de cinco anos e usava uma túnica que se estendia quase até ao chão. Quer a vestimenta, quer o cordão que a apertava a cintura, eram de um branco mais puro que uma alma sem pecados. Não conseguiu compreender como alguém em tão tenra idade, podia ostentar aquelas fartas suíças grisalhas. Nada fazia sentido, mas mesmo assim não encontrou motivos para ficar ali parado quando a criança rodou sobre os calcanhares. Seguiu-a pelo corredor afora. Segue a luz, pensou.
Aquele corredor desdobrou-se em muitas esquinas e a cada nova viragem a luminosidade aumentava. Por fim, o corredor cedeu lugar a uma capela rústica de aspecto milenar. A cúpula estava totalmente enegrecida pelo fumo do archote e a humidade escorria pelas paredes de pedra. Nada mais a decorava além do altar e uma pequena mesa onde a criança, após apagar a vela com os dedos, pousou o castiçal. Sobre o altar repousava uma imagem desconhecida, uma loba de olhos cerrados a segurar um feixe de trigo entre os caninos.

O silêncio acompanhou-os e passaram por muitas outras salas, algumas tão pequenas e enfadonhas onde dificilmente caberiam quatro pessoas, outras autênticos salões de baile adornados a ouro, dignos de um palácio real. Tantos contrastes, pensou. Cruzaram-se com homens de todas as idades, desde crianças nos primeiros passos a velhos próximos dos passos finais. Todos vestiam a mesma túnica alva, só os cordões nas cinturas é que diferiam na cor. Reparara no branco, vermelho, verde, lilás e amarelo, por certo haveriam outras.
Por fora parece muito menor. Barto olhava para todos os lados, não conseguia compreender como é que o interior do Convento poderia ter aquelas dimensões. A enorme rocha onde fora escavado tinha o tamanho de dez, talvez quinze casas, não mais. Os seus pés diziam o contrário. Apeteceu-lhe perguntar, não só aquilo mas também sobre tudo o que vira e outras coisas mais. Não se atreveu. Teria de guardar as dúvidas para intermináveis trinta anos mais tarde.
Onde me fui meter, talvez as ruas de Laec fossem o meu destino. Começou a duvidar da escolha, mas não sabia se poderia desistir. Voltou a lembrar-se do velho monge, chamava-se Pelim.
   Tereis uma vida digna e sereis respeitado, a nobreza certamente virá em busca do vosso auxílio. A própria realeza também poderá fazê-lo.
Lembrava-se do sorriso que aquelas palavras lhe puseram no rosto e da sensação de poder vir a ser mais do que uma pulga num pardieiro.
   Nascestes para serdes um pagador, consigo ver nos vossos olhos, mas tendes a escolha final. Depois de se entrar, só há dois caminhos possíveis, o caminho da pureza, onde devereis cumprir o vosso propósito e só então sair para encontrar um sucessor ou o caminho fácil da autocomiseração, onde podereis renegar a vida e abandoná-la abruptamente. Já houve quem o fizesse.
   Por ventura, serei eu o vosso sucessor? — Perguntara Barto ao velho que o confirmara com um simples aceno sério.
Sou um pagador, pois sou. Orgulhoso, encheu o peito e endireitou a postura enquanto seguia a criança. O que quis ele dizer com aquilo? O que é um pagador afinal? Malditos trinta anos… Arrependeu-se de não ter feito mais perguntas ao

velho monge e ficou irritado consigo próprio por ter deixado aquilo passar sem resposta.
O pequeno e pálido agarrou-se a outro castiçal antes de entrarem para um novo corredor estreito e sinuoso que parecia não ter fim. Depois de algumas bifurcações chegaram a uma pequena abertura, aparentemente a única naquele corredor infindável. A criança parou, virou-se e ainda a sorrir indicou-lhe com um gesto que entrasse. Barto entrou e viu uma pequena cama encastrada entre duas paredes de rocha bem como uma mesa-de-cabeceira de madeira onde repousava apenas uma vela acesa, já bem derretida. Compreendeu que aquele seria o seu quarto, virou-se para agradecer e encontrou apenas a parede oposta daquele corredor escavado na rocha. Foi até a porta, espreitou para os dois lados e sentiu-se sozinho no mundo. Não era possível ver mais do que breu.
O quarto era pequeno, abriu os braços e encostou uma mão em cada parede.
Não havia uma porta para fechar, nem sequer uma janela, não passava de uma pequena cavidade. Passou os dedos na cama e soube de imediato que o colchão de palha trar-lhe-ia boas noites, sentou-se na cama e os dedos deslizaram até a mesa-de-cabeceira. Passou-os lentamente na chama da vela, cerrou os olhos e sorriu. Um lar.
Abriu os olhos e reparou na gaveta semi-aberta da mesa-de-cabeceira. Abriu- a e retirou uma carta. A tinta ainda está fresca, apercebeu-se.

Pequeno Barto, desde aquele dia na cidade baixa, soube de imediato que viríeis. Ao ver-vos hesitante na entrada do Convento, lembrei do dia no qual fui eu a entrar por aquela velha porta de madeira. Tantos anos, e passaram tão depressa.
Desejo que encontreis todas as respostas e que saibais escolher o caminho certo.
Segui a luz.
Não vos preocupeis pois aqui as crianças não andam todas com suíças daquelas, deixei-as ficar na esperança que me reconhecêsseis, mas admito que exagerei.
Espero que não vos zangueis com esta pequena partida.

Sei que tendes muitas dúvidas, e muitas mais tereis, o tempo será o vosso irmão e encontrareis as vossas próprias respostas.
Do vosso antecessor, Pelim.

Ah, quase esquecia, dentro da gaveta estão mais velas.
Aquela está a apagar-se.


O olhar escorreu-lhe para a luz da vela que agonizava, próxima do último suspiro. Arregalou os olhos, largou a carta na cama e num movimento súbito atirou-se de joelhos ao chão. Puxou bruscamente a gaveta para o colo e em meio ao desespero encontrou uma das velas. Sem sequer respirar, conseguiu acendê-la no último momento. Passar a primeira noite no Convento banhado pela cegueira não seria, por certo, o melhor dos começos e sair a tactear pela escuridão daqueles corredores seria uma experiência, no mínimo, incómoda. Quase, essa foi por pouco… Voltou a sorrir quando a chama ganhou força. Como é que não reparei? Claro! Eram as suíças do velho monge.
Permaneceu no chão e começou a vasculhar calmamente a gaveta. Encontrou uma túnica igual a todas as outras que vira desde que entrara no Convento.
Contou as velas e sentiu-se aliviado quando constatou que, pelo menos naquela noite, não ficaria no escuro. Os seus olhos cintilaram quando encontrou o anel de ouro, forjado na forma de um dragão e trabalhado ao mais ínfimo pormenor.
Jamais fora dono de qualquer adorno e agora tinha um, esplendoroso e em ouro reluzente. Teve a certeza que se tratava de um presente quando reparou no nome gravado no interior, Barto! Foram as moedas de cobre que lhe deram um nó cego nos pensamentos, para que precisarei eu de moedas cá dentro? Também teve direito a um cordão, diferente de todos os outros que vira, aquele era preto.
Sentou-se novamente na cama e tacteou à procura da carta. Levantou-se e voltou a procurá-la. Não a encontrou. Adeus Pelim. Compreendeu. A partir daquele momento, o primeiro passo da sua nova vida estava dado, o primeiro de uma caminhada onde não se espreitava com desconfiança por sobre os ombros.

Deitou-se e só então se apercebeu que estava cansado. Fitou o lume por alguns momentos, enquanto tentava assimilar tudo aquilo. Olhou para o anel, o dragão parecia ganhar vida com o reflexo do fogo, sorriu e deixou-se adormecer.
O dia seguinte esteve longe de ser vazio de novidades e de estranhezas. Barto deixou os seus trapos velhos no quarto e partiu com a nova vestimenta, pronto para encarar os seus desígnios. Perdeu-se vezes sem conta nos serpenteantes corredores e nas salas esquisitas, todos escavados na mesma rocha maciça. Terão demorado mais de cinco vidas para escavar todo o Convento. O mistério estava presente em tudo, começava a questionar se os trinta anos de silêncio seriam tempo suficiente. Passou por uma sala octogonal cuja abóbada se erguia na altura de dez homens e o relevo das esculturas estava revestido a ouro. Apenas duas cadeiras de costas voltadas decoravam o centro da sala, uma preta e outra branca. Cada passo se transformou em oito quando o eco percorreu todas as paredes. Em cada nova divisória, encontrava novos rostos, alguns sorriam-lhe outros passavam sem levantar os olhos do chão. Viu apenas dois ou três rostos que vira no dia anterior, mas algo lhe atraiu o olhar, um homem a caminhar na direcção oposta e a olhar para todos os cantos, como se procurasse algo. Este também está perdido. Era visível no seu semblante e na desorientação. Estarei também eu com aquela expressão? Espreitou por sobre o ombro para vê-lo a afastar-se e reparou no cordão preto que o homem trazia à cintura. Lembrou-se imediatamente do branco que a criança Pelim carregara na cintura. Do preto ao branco. Do desconhecido ao entendimento. O cordão está ligado ao caminho!
Compreendeu. Mas como? Não importava. Algo fizera sentido, por pouco que fosse e mesmo sem estar completamente claro, aquilo deixou-o radiante. Teve vontade de correr atrás daquele homem e dar-lhe a novidade, mas não podia. Seguiu em frente. Entrou em outra sala e contou mais de vinte anciões apoiados nos joelhos, todos com os olhos fixos na mesma parede lisa e despida de qualquer imagem. Se em tempos recebera alguma tinta, não passava agora de um mero sopro de memória esbatida. Cada um rezava a sua reza e aquele burburinho incompreensível incomodava os ouvidos, mas eles pareciam não se importar.
Ainda passou por mais alguns corredores e outras salas até encontrar aquilo que o

seu estômago procurava. Escolheu sentar-se na ponta de uma das mesas corridas, onde conseguia ver a sala toda e também ficar distante o suficiente dos outros silenciosos. A comida estava posta, espalhada um pouco por todas as mesas, sem hesitar agarrou-se ao primeiro pedaço de pão que a mão alcançou. Um ancião mal-humorado atravessou a sala a coxear e parou à sua frente. Enfiou a mão no velho saco de pano que trazia a tiracolo e retirou uma caneca de barro. Não esboçou qualquer expressão, pousou a caneca e afastou-se pelo mesmo caminho. Jamais bebera leite de cabra tão delicioso como aquele que repousava nos jarros sobre a mesa.
Os martírios da vida esmagaram-lhe as crenças e não fora certamente a fé que o fizera caminhar na direcção do Convento Esculpido. Ouvira muitas vezes que o Convento fora esculpido pelo toque dos próprios deuses. Barto ria-se sempre daquilo.
— Se existe algum deus, o que eu duvido, iria ele dar-se ao trabalho de escavar uma rocha? — Dera aquela resposta de todas as vezes.
Não sabia responder o que o movera até ali. Não importava, queria respostas e se elas não chegassem depressa, partiria. No seu íntimo, parecia não acreditar nas palavras do velho monge. Algumas coincidências, outros tantos truques e alguma imaginação minha certamente, pensou. Com o estômago silenciado, abandonou a mesa, aquela sala e o velho mal-humorado.
Descobriu ainda duas mãos cheias de novos recantos e outras tantas imagens de deuses que nunca vira ou ouvira falar, antes de reencontrar o seu quarto. A luz do dia penetrava por minúsculos rasgos desordenados no tecto do corredor e soube logo onde estava quando vislumbrou o desenho esculpido na rocha, por cima da entrada, um círculo dentro de um triângulo. Azazel, leu entre as duas figuras. Cada porta trazia uma figura diferente, aquilo certamente teria algum mistério. Não havia razão para duvidar daquilo, afinal tudo o que vira até agora era estranho. Caso decidisse ficar, teria muito tempo pela frente para se debruçar sobre o assunto.
A longa caminhada, a barriga cheia e a cama a gritar o seu nome eram um convite que não podia recusar. Mais logo vou descobrir mais qualquer coisa.

Como estava, deitou-se. Pensou que adormeceria mesmo antes de a cabeça encostar no colchão, mas enganou-se. Foi assolado por muitos pensamentos que julgara esquecidos. Veio-lhe à memória o olhar da sua mãe e as lágrimas que lhe escorriam pelas bochechas rosadas quando ela, depois de esmagá-lo em um longo abraço, o mandou partir.
— Vai! Vai e não voltes! — Dissera ela. O pequeno Barto não recebera qualquer explicação além daquele abraço doce e daquelas palavras amargas. Partira assim, sem saber o que pensar. O que esperar da vida, para onde ir, onde arranjar comida, onde dormir foram questões as quais fora obrigado a encontrar as próprias respostas.
Não se conseguia lembrar das suas feições, a memória das lágrimas e daquele olhar apavorado foi a única a persistir. A razão teve de ser muito forte. Foi a primeira vez que viu tudo de outra forma e após aqueles longos anos, compadeceu-se da mãe. Onde quer que estejas… mãe, eu perdoo-te. Sentiu o calor de uma lágrima a dançar na sua face, virou-se contra a parede e puxou os joelhos contra o peito. Adormeceu a tentar recordar o apelido que outrora carregara e a imagem da casa onde nascera.
Um guincho estridente acordou-o. Estava completamente encharcado em suor e a respiração ofegante galgava-lhe o peito. Aquela sombra… a claridade… parecia chamar-me. Apenas um pesadelo! Apenas um pesadelo. Compreendeu e sentiu-se aliviado. A escuridão era tal que se sentiu a flutuar no vazio. Dormi demasiado tempo, a noite chegou e não tenho nenhuma vela acesa. Mais calmo, apercebeu-se de outro ruído, um que não lhe fizera companhia na noite anterior. Escutou-o durante algum tempo até perceber que se tratava de um turbilhão de ressonares. Conseguiu identificar treze diferentes entre os outros que o seu ouvido não conseguiu separar. Como é possível? O meu quarto está completamente isolado e longe de tudo. Com a cegueira nocturna permaneceu onde estava, seria pedir demasiado a si próprio abandonar o quarto naquelas circunstâncias.
A aurora chegou e com ela as primeiras claridades irromperam pelos rasgos no tecto do corredor. Não passava de uma luz fraca, mas Barto passara metade da

noite no breu. Saltou da cama e cautelosamente aproximou-se do corredor. O queixo caiu-lhe quando viu que o seu quarto era agora apenas mais um no meio de dezenas. Olhou para a figura, o círculo dentro do triângulo lá estava. Procurou fissuras no corredor mas encontrou apenas rocha sólida. Os pelos da nuca eriçaram-se. Como vieram cá parar? Não perdeu tempo e partiu pelo corredor afora com passos silenciosos. Chegou ao fim do corredor e reconheceu as primeiras duas salas. Na terceira, sobre o altar encontrou uma loba a segurar um feixe de trigo entre os caninos. A capela! Apercebeu-se enquanto reconhecia também a cúpula enegrecida pelo fumo do archote. Nada fazia sentido, não conseguira decorar bem a disposição de cada corredor, quarto, saleta e salão, mas sabia que aqueles não pertenciam àquele sítio. Parecia que todo o Convento tinha sido baralhado.
… o Convento nunca dorme. Lembrou das palavras de Pelim. Não compreendeu, e duvidou que alguma vez viesse a compreender, mas teve a certeza de que aquele dia seria novamente um novo recomeço, mais um marco em outra página virada.
Continuou a vaguear. Cada porta que atravessava, arrancava um pedaço da lógica que tentava construir. Quando encontrou a sala onde comera a última refeição, entrou. À semelhança de todas as outras que percorrera, aquela também estava vazia, apesar de as mesas estarem postas e carregadas de comida. Nem mesmo o ancião mal-humorado com o saco de pano a tiracolo lá se encontrava para distribuir as canecas de barro. Sentou-se e esperou, decidiu que não iria tocar na comida até entrar alguém.
Observou demoradamente cada pedaço de comida, cada canto da sala.
Imaginou-a cheia de amigos a beberem cerveja e a dançarem uns com os outros numa festa que durasse uma noite. Aquela visão entristeceu-o, os amigos que outrora tivera não encheriam sequer um canto daquele recinto. Sem incitar qualquer pensamento, voltou a ver o olhar da sua mãe. Baixou a cabeça para deixar a lágrima cair e reparou que o seu cordão era agora vermelho, como se alguém o tivesse tingido durante a noite. Soltou-o da cintura e intrigado observou-o mais ao perto. É isso! O cordão… O olhar da mãe cruzou-se com o

seu e lembrou daquilo que tinha feito no dia anterior. Os seus olhos arregalaram- se. Tudo parecia tão claro. O cordão, a mãe, as palavras de Pelim… Sou um pagador… Sou um pagador de pecados! Pagador de pecados era um belo título, decidiu assim Barto. Soube de imediato o que faria depois de calar o estômago. Deixou escapar um sorriso ao ver o ancião a entrar. Não se importou com a indiferença do velhote. O coxo atravessou a sala e saiu por outra porta, no instante seguinte regressou a remexer no velho saco de pano enquanto caminhava na sua direcção. Retirou uma caneca e pousou-a na mesa, fitou de perto o sorriso do jovem e não reagiu, virou as costas e afastou-se. O resmungar do estômago trouxe o pensamento novamente à comida e então deliciou-se. Ao fundo da sala, os olhos amarelados, envelhecidos e indiferentes do outro fizeram-lhe companhia.
A configuração que o Convento assumira naquela noite transformou-o em um novo e totalmente desconhecido labirinto. Após uma longa caminhada e muitos equívocos conseguiu chegar novamente ao quarto.
Sentado na cama e com o anel em forma de dragão apertado na palma da mão e contra o peito, fechou os olhos e começou por pagar aqueles pecados os quais conseguiu lembrar. Perdoou aquele taberneiro por tê-lo espancado quando apenas mendigava um prato de sopa; perdoou o Terpino, seu amigo de rua, que traíra a sua confiança por um par de mamas; sem saber como, sentiu-se invadido de arrependimento quando lembrou da velhota a qual roubara o único pão que tinha em casa.
Olhou para o cordão, ainda estava adornado pelo vermelho.
Cada pecado que lembrava, pelo menos no seu entendimento de pecado, fazia-o reviver o seu passado. Uma lembrança puxava a outra, inclusive algumas que julgava esquecidas. Questionou-se se seriam lembranças ou mero fruto da sua imaginação. Perdoou Pelim por não lhe ter contado mais acerca do Convento Esculpido, aquilo certamente teria de ser considerado um pecado; Perdoou-se a si próprio ao lembrar-se daquela vez em que se escondera com medo ao invés de tentar ajudar um comerciante de hortaliças que estava a ser apunhalado por não querer entregar tudo o que tinha, três moedas de cobre.

Voltou a espreitar o cordão e suspirou desapontado. Começava a ter dificuldades em lembrar de mais pecados. O desconforto e a irritação aconchegaram-se-lhe no corpo, sabia que tinha vivenciado incontáveis pecados que esperavam pelo perdão mas não estava a ser capaz de lembrar.
Não deu conta do tempo a passar.



* * *



Lembrar daquilo, de quando compreendera uma parte do seu propósito, fazia-o rir sozinho. Estivera apenas a um pecado de alcançar a cor-de-laranja naquele dia, há trinta anos atrás. Acabara por adormecer quando o turbilhão de ressonar dos quartos vizinhos já se fazia ouvir e quando a frustração não tinha mais espaço para crescer. Na manhã seguinte acabara por lembrar de mais um pecado qualquer e pôde finalmente apreciar a sua nova conquista, vislumbrara o seu cordão a mudar de cor, como se de um camaleão se tratasse. Continuara sem o compreender totalmente, mas fora sem dúvida uma conquista.
Estava agora próximo de alcançar o violeta, a última cor do arco-celeste e também a mais difícil de ultrapassar, precisaria de mais de meia-vida para tal, cada nova cor precisava de muitos mais pecados que a cor anterior. Passara pelo vermelho, cor-de-laranja, amarelo, verde, azul e agora ostentava o lilás. O arco- celeste deveria ser abraçado pelo alfa e pelo ómega, pelo princípio e pelo fim, pelo preto e pelo branco. Sabia que, quando completasse o ciclo e alcançasse o branco, teria cumprido o seu propósito.
Por vezes era-lhe difícil acreditar em tudo o que aprendera naqueles anos. Pelim não lhe mentira quando dissera que trinta anos passariam num instante. Cada novo entendimento abria um leque de outros caminhos. Sentira um grande alívio quando compreendera que nem tudo era para ser compreendido. Aquele dia foi o ponto de viragem, tudo passou a ser mais fácil e as epifanias sobrepuseram-se.

Perdeu as contas aos pecados pagos após descobrir que conseguia fazê-lo mesmo sem conhecer os pecadores.
Barto estava absorto nos seus pensamentos quando um homem com uma barba farfalhuda, ruiva como o fogo, saiu do corredor e lhe acenou. Chegou a minha vez, pensou. Levantou-se, passou pelo homem e apenas lhe devolveu o aceno. Poderia ter utilizado a voz, mas aprendera a gostar do silêncio. Entrou na sala octogonal, mobilada apenas por duas cadeiras de costas voltadas, uma preta e outra branca.
   Sentai-vos. — O velho Catite apontou-lhe a cadeira preta. Não sabia o nome verdadeiro do velho, mas fora o nome que lhe dera algures nos últimos trinta anos. Não precisaria do nome real, Catite serviria. Inventara nomes a muitos outros. Conhecia alguns poucos nomes reais, poderia contá-los nos dedos. Ouvira-os pelos corredores, da boca daqueles que estavam no Convento há mais tempo.
   Obrigado. — Respondeu Barto enquanto sentava. Não lembrava do som da própria voz e sentiu-se como se estivesse a reencontrar um velho amigo.
Esperou durante aqueles anos que lhe fizessem perguntas, como Pelim sugeriu que poderiam fazer, mas elas nunca vieram. O único exercício que podiam fazer para que a voz não secasse era uma espécie de cantoria em vibração.
   Sabeis onde estais?
   Eu chamo-lhe Catedral dos Oito Ecos. — Disse Barto e ouviu o eco das suas palavras a tamborilar pelas oito paredes.
O velho Catite soltou um risinho. — Não é, por certo, dos piores nomes que já ouvi. — Sentou-se na outra cadeira, nas suas costas. — Chama-se Sala das Confissões. Enquanto estiverdes ai sentado, não conseguireis dizer nada além da verdade e tampouco conseguireis ocultá-la.
Barto foi dono do seu silêncio, não soube o que dizer. Na sua meninice teria disparado um enxame de perguntas, mas naquele momento não lhe ocorreu nada que necessitasse de ser dito.

   Se vos aprouver questionar algo, tendes aqui uma boa oportunidade.
Também eu não poderei mentir. — A voz do velho era rouca e suave ao mesmo tempo, ele sabia que Barto não tinha questões. — Tendes um nome?
   Barto.
   Barto o quê?
Pensou em inventar um nome de família qualquer mas a boca abriu-se contra a sua vontade e disse — Apenas Barto. — Admirou-se com aquilo que dissera, foi involuntário. Aqui só se diz a verdade… lembrou-se.
   Barto, os anos de silêncio foram suficientes?
   Foram os necessários. — Olhou para o alto da abóbada e para as esculturas revestidas a ouro que a decoravam.
   Por ventura, sentis vós o desejo de voltar a viver lá fora?
Aquilo fê-lo pensar por um momento e com a velocidade de um relâmpago viu flashes da sua infância, outros das ruas, viu Pelim na estalagem a esvaziar a cerveja e também viu a porta do Convento a abrir-se sozinha. Não encontrou uma resposta clara para aquela pergunta, mas soube que obteria a resposta quando deixasse as palavras saírem da sua boca, não se podia mentir ali. — Não. — Disse.
   Compreendeis todos os propósitos?
   Conheço aquilo que os meus olhos viram, aquilo que ouvi, o que as minhas mãos tocaram e ainda os diversos odores. — Olhou para o anel em forma de dragão. — Conheço aquilo que me foi dado a conhecer, conheço o que me é lícito. Poderei conhecer mais ou poderei conhecer menos, mas por certo, assim como vós, não conheço todos os propósitos.
Ouviu um quase imperceptível risinho, preso entre os lábios do velho Catite.
   O que tendes vós no dedo? — Disse Catite.
Barto olhou novamente para o anel. Desconfiou da pergunta, mas disse aquilo que sabia. — Um anel forjado em ouro, um presente de Pelim.
   Ah sim, o velho Pelim. Foi sempre muito dado às travessuras mas foi sem dúvida um dos melhores. Parece que foi ainda ontem que o vi. — O velho suspirou. — Barto, ele não vos deixou uma prenda. Deixou-vos uma tarefa.

Barto não compreendeu.
   O que tendes no dedo é mais do que ouro, é mais do que um adorno, é muito mais do que uma prenda… Tendes um dragão dos sonhos.
   Dragão dos sonhos? — Estava admirado, os seus olhos arregalados denunciavam-no às paredes. As sombras! A luz… Segue a luz. Os guinchos que me acordavam… afinal eram mais que apenas sonhos. Lembrou-se das tantas noites que acordara aterrorizado com um guinchar estridente, atribuíra aquilo sempre ao mesmo pesadelo onde nunca chegava a ver a criatura que gritava, não mais que uma sombra que passava por ele. Jamais teria associado ao seu dragão.
  Para que serve um dragão dos sonhos?
   Ora, para montar é claro. — O velho riu-se. — Deveis montar o dragão enquanto a vossa carne dorme, vaguear pelo mundo nas sombras da noite e… caçar.
   Caçar? Não compreendo. Caçar o quê? — Teve receio da resposta, mas tinha de saber.
   Aquilo a que um dragão dos sonhos gosta de dar caça. Demónios.
Barto arregalou os olhos, não soube julgar aquilo, apenas soube que era verdade. Ele não pode mentir, não aqui…
   Mas como…
   Krugo, é como o devereis chamar nos vossos sonhos. Mas tende cuidado, se cairdes da montada durante o voo, não regressareis.
   Quais demónios?
   Sabereis quando os virdes.
   O dragão mata-os?
O velho voltou a rir. — Os demónios não podem ser mortos. Aqueles que conseguirdes caçar devem ser aprisionados… no vosso quarto.
   No meu quarto? — Novamente teve receio de saber a resposta. — Isto quer dizer que tenho lá…
   Sim. Tendes incontáveis demónios no vosso quarto, demónios dos quatro cantos do mundo, de todas as raças que podeis imaginar e mais outras tantas.
Demónios que foram caçados pelos vossos antecessores, desde o princípio dos

tempos, mas não vos preocupeis que eles não vos podem fazer mal. Estais protegido pelos desígnios.
Azazel. Pensou involuntariamente e viu o desenho na porta do seu quarto.
Não soube como arranjaria coragem para entrar novamente naquele quarto, mas sabia que teria de fazê-lo. Olhou para o anel, o brilho pareceu ondular.
   Credes nos deuses que aqui habitam? — A voz do velho era uma voz que necessitava de um gole de água.
   Creio que há verdades que fogem ao nosso entendimento. — Os anos de meditação e observação mostraram-lhe que estivera errado.
   Quereis conhecer as verdades?
   De que teriam servido os últimos trinta anos se agora precisasse de descobrir novas verdades?
Uma brisa invadiu a sala e rodopiou pelas oito paredes.
   Levantai-vos. Estais novamente preparado.
Novamente? O que o velho quis dizer com novamente?
Ao levantar-se, Barto reparou que a sua cadeira preta, agora era branca. Olhou para trás e viu o velho Catite a desaparecer por um corredor no lado oposto da sala. Não ouvira os seus passos nem o arrastar dos chinelos na rocha do chão. Levantou a mão e quis chamá-lo, mas arrependeu-se e as palavras não chegaram a abandonar a sua boca. Foi então invadido subitamente por um desejo de estar com a sua mãe. Soube naquele momento para onde iria.
Chegou àquilo a que dera o nome de Quarto Memento, uma sala sem portas nem janelas, onde o mais próximo que se conseguia estar do seu interior, era espreitar por um orifício minúsculo na parede. Para alcançá-lo teve de ficar na ponta dos pés. Espreitou com o melhor olho e lá estava ela a segurá-lo ao colo. Cantava-lhe uma canção de embalar e sorria-lhe o sorriso mais lindo do mundo por entre palavras doces. Naquele momento Barto viajou para longe, para fora do Convento, para o sítio onde nascera e não mais sabia onde ficava, viajou para o colo da sua mãe.
Naquela noite, enquanto o seu corpo descansava, os seus sonhos levaram-no a conhecer o seu dragão, o dragão que fora dos seus antecessores. Ou seria ele

próprio a pertencer ao dragão? Era algo para o qual talvez não houvesse resposta, como tantas outras coisas. Não sentiu medo quando abriu os olhos. Estava no meio do nada e envolto em nuvens escuras que bailavam loucamente ao seu redor, como se estivesse no olho de um furação, onde tudo é calmo. Gritou o nome da criatura — KRUGOOOOOoooo! —, mas ouviu apenas a sua própria voz a ecoar ao longe, como se colidisse contra montanhas. Por momentos, obteve não mais que silêncio quando então ouviu um guincho distante, violento e estridente. Virou-se na direcção do som. Um novo guincho. Mesmo sem conseguir ver, soube que ele era veloz e aproximava-se depressa. O coração cavalgou o seu peito quando o viu. Irrompeu por entre o breu e as nuvens negras rodopiaram num turbilhão. Era um dragão feito de chamas, um dragão ardente, um dragão iluminado… um dragão de luz. Segue a luz… Compreendeu. Sorriu ao vê-lo pousar. Soube de imediato que o conhecia desde há muito. Aproximou- se sem hesitar, tocou-lhe o peito em chamas e o dragão voltou a rugir, tão forte e estridente que até as nuvens negras temeram, deixaram de rodopiar e dissiparam- se.
Desde então, passava os dias a pagar pecados e a esperar ansiosamente pela chegada das noites. De todas as vezes tinha de o chamar e em muitas delas, Krugo pregara-lhe partidas. Aparecia sorrateiramente pelas costas e guinchava- lhe ao ouvido. Não fossem sonhos, teria certamente morrido em cada um dos sustos. Percorrera todas as terras e nas noites iluminadas pelas luas, vira paisagens de cortar a respiração, mas nada que se igualasse às capturas. Perdera a conta aos demónios caçados, mas a adrenalina ainda lhe percorria as artérias de cada vez que voltava a sentar-se no dorso ardente de Krugo. A vida no Convento passara sem que desse conta, a velhice arrancara-lhe quase todos os cabelos e os poucos que ficaram, agora tinham a cor da neve.
— Pronto, já só falta o cordão para que fique totalmente branco. — Dissera quando vira ao espelho o último fio de cabelo escuro cair. Ainda hoje se ria daquela situação.
Não tardou.


* * *



Acordou. As dores no corpo incomodaram-no, mas não o suficiente para evitar que se levantasse como habitualmente fazia. Vestiu a sua vestimenta alva e prendeu-a com o cordão violeta, desgastado pelo tempo.
Seguiu a sua rotina matutina e não se importou com ela, sabia que a noite o compensaria. Ainda no próprio quarto começou a pagar alguns pecadores. Nunca irão acabar. Aquela verdade não o esmorecia, apenas levantava um pequeno véu de tristeza. Espreitara para o cordão cada vez que um pecado fora pago. O cordão não mudara de cor há mais de meia vida e Barto já fazia aquele gesto instintivamente, pagava um pecado e o olhar procurava a cintura. Quando chegou ao violeta soube que iria demorar, mas não imaginava que aquela cor o acompanharia por tanto tempo, demasiado tempo.
Bastou mais um pecado, um mero pecado, pago em nome de um desconhecido qualquer, provavelmente não merecedor de perdão. Lá estava ele, novamente como um camaleão, a dançar entre a angústia do violeta e a paz do branco. Como é lindo. Barto saboreou cada instante daquele bailado. Passara tanto tempo desde a última vez que mal conseguia lembrar de como era belo aquele truque. Orquestrado por quem, não interessava saber, mas um belo truque certamente.
Sem pedir permissão para entrar, abateu-se-lhe uma profunda tristeza quando sentiu o anel a ficar tão gelado que foi obrigado a tirá-lo. Aguentou o máximo que pôde mas a dor aguda saiu vencedora. Soube que não voltaria a tocar o seu monstro alado, a sua época de caça tinha chegado ao fim. Pousou o anel na gaveta da mesa-de-cabeceira e enxugou as lágrimas que lhe escorriam pela face coberta de pêlos brancos. Não podia imaginar que doesse tanto abandonar o melhor amigo, uma criatura existente apenas nos seus sonhos mas aprisionada numa vida de pesadelos bem reais. Retirou as moedas de cobre da gaveta, enegrecidas pelos anos, levantou-se e cabisbaixo abandonou o quarto. Se

dependesse da própria vontade, viveria no Convento Esculpido para todo o sempre, mas havia um ciclo a ser encerrado e a última missão o esperava fora do convento.
Acenou respeitosamente à estalageira quando entrou e dirigiu-se para uma mesa livre ao fundo da sala. A rapariga aproximou-se e pousou-lhe uma caneca de cerveja a frente.
   Ireis comer algo, meu senhor? — Tinha uma voz delicada, por certo deveras inapropriada para aquele local.
   Obrigado menina. Espero por alguém. — As curvas da mulher denunciavam que de menina pouco tinha, mas para a idade de Barto aquela palavra estava bem empregue. A estalageira anuiu e regressou para atrás do balcão, não sem antes ser apalpada pelo caminho. Pelos risinhos, seria certamente algum conhecido seu. Barto não se prendeu aos detalhes daquilo.
Ah, o doce amargo da vida. Pensou depois de dar um bom gole na cerveja.
A caneca bateu na mesa com mais força do que era suposto e alguns rostos desconhecidos voltaram-se para ele. Sentiu o rubor a inundar-lhe a face, mas felizmente os curiosos depressa perderam o interesse.
O que faço eu aqui? Olhou em volta, procurou algo em cada um dos presentes. Como saberei quem espero? Nada lhe saltava à vista. Tantos anos de aprendizagem e afinal ainda me escapa tanta coisa. Sem saber o porquê, escolheu a mesma estalagem que o velho Pelim escolhera. Talvez não a tenha escolhido, talvez tenha vindo tratar de outro assunto qualquer, talvez tenha parado aqui apenas para beber uma doce-amarga cerveja. Deu outro bom gole. Talvez não se deva procurar, talvez apenas deixar-se encontrar. Será? Quando pousou a caneca os seus olhos arregalaram-se, os seus pés não encontraram o chão e os seus ouvidos não queriam acreditar naquela voz pequena que agora ouvia.
   Olá Salema, a minha mãe pediu um jarro de vinho para fazer mais doces. Disse que hoje os vai vender todos. — O rapaz era de fraca envergadura, mas a doçura na sua voz era única.

   Oh meu pequenino, desta vez o vinho acabou-se mais depressa, foi? É bom sinal. Só um momento que vamos já tratar disto. — Respondeu a estalageira que agora já tinha um nome.
O pequeno rapaz concordou com um gesto e um sorriso. Pousou o jarro no balcão e enquanto esperava o regresso da Salema pôs-se a olhar em volta, a procura de caras conhecidas.
Ele viu-me! Disfarça Barto, disfarça! Teve medo e sem pensar afundou o nariz e os olhos na caneca, a procura de um esconderijo por detrás do último gole da doce-amarga. Deu um salto no banco quando baixou a caneca e viu que o jovem estava especado mesmo à sua frente. Como é possível? É ele!
   Senhor monge, se me permitis a ousadia, é verdade que o Convento foi esculpido pelo toque dos deuses? — O jovem deveria ter não mais do que dez anos, vestia roupas simples mas bem tratadas, provavelmente por uma mãe amorosa, e trazia o olhar carregado de sonhos.
   Sim… é verdade. — Disse a gaguejar.
   Sempre tive esta curiosidade, mas a coragem para vir falar aos monges quando andam cá fora abandonou-me de todas as vezes. — O pequeno sorriu.
   Mas eu também sou um monge. — Barto mostrou a sua vestimenta branca.
   Não sou mais uma criança, já era altura de perder os medos. — A convicção não o deixou fraquejar.
Barto riu-se.
   Pois, é verdade. Há alturas em que temos de enfrentar os medos. — O monge continuou a sorrir. — Tendes um nome, meu pequeno?
   Barto. — Respondeu o jovem. — A minha mãe costuma chamar-me de Nocas, mas não gosto. Barto é o meu nome. E vós?
O velho monge olhou para as suas mãos, enrugadas pelos anos. A marca no dedo onde repousara o anel estava bem vincada e a pele enfraquecida. Levantou os olhos lentamente e disse — Pelim. Chamo-me Pelim.
   Gostais de dragões, pequeno Barto? — Disse Pelim, ainda a sorrir.


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Olá.
Obrigado por ler o meu conto. Deixe os outros leitores saberem o que achou de O Convento Esculpido, o seu comentário no site onde o adquiriu é muito importante para mim.
Obrigado e até breve. Henrique Anders




Sobre o autor


Henrique Anders nasceu em 1978, na longínqua cidade de Tuparendi no Brasil. Com 20 anos mudou-se para Portugal com parte da família, onde permanece e pretende ser sepultado.
Tem por hábito perder-se nos mais variados mundos, de onde sempre regressa carregado das coisas mais estranhas.
Na vida real, é pai da Cinderela mais linda e mora onde termina o arco-íris. Ganha o pão como programador informático e escreve apaixonadamente sobre borboletas e amoras.



Outros títulos do autor


Títulos já lançados, ou a serem lançados brevemente:
As Trevas de Baltar - Livro um da Saga Desígnios. Um mundo de fantasia espera por si.
Os Risos de Ema - Um conto que aborda a morte, a vida e o amor.
O Cruz - Ensaio de uma crónica narrativa.
Forasteiros - Ensaio de um conto de suspense.
O Nectar - Um conto onde a sanidade mental não tem lugar.


Lançamentos futuros:
Os Dragões estão a Cantar - Livro dois da Saga Desígnios.
pelo meu anjo - Drama. Até onde um pai consegue ir pelo seu filho.



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