O Convento Esculpido
Henrique Anders
Obrigado Pai.
~~~~~
Agradeço à minha querida filha que perdeu tempo
de brincadeiras para que eu pudesse escrever este conto.
Agradeço ao amigo Ruben Silva por me acompanhar
nesta jornada.
Copyright 2015 Henrique Anders Ilustrações por
Patrik Caetano
Distribuído pelo Smashwords
Este eBook está licenciado para
fins não comerciais. O seu conteúdo pode ser copiado e distribuído parcial ou
integralmente desde que o mesmo mantenha a sua forma original. Este conto não
segue as normas do novo Acordo Ortográfico.
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Desejo-vos uma agradável leitura.
Foi invadido subitamente pelo receio, já não tinha tanta convicção de
que aquela seria a melhor decisão. Adornada
com espigões de ferro enegrecido, a velha porta de madeira encarava-o sem
qualquer pudor ou misericórdia, como se o mandasse embora. Parecia observá-lo
de alto-a-baixo, desde os pés descalços até ao cabelo negro e esgrouviado,
passando por aquilo a que se atrevia chamar de vestes, não mais que uns trapos
velhos e sujos. Porém, os maus-tratos que a vida lhe fora oferecendo ao longo
dos seus doze anos estavam bem vivos na memória. Os pontapés soavam-lhe a
carícias e eram tudo o que conhecia. Estava decidido a não mais aceitar aquele
tipo de tratamento. Pelo menos aqui terás
comida, acalentou-se o pequeno Barto. O
que fazes aqui? Este lugar não é para ti. Contra as hesitações, levantou o punho.
Antes que os nós dos dedos
encontrassem a madeira, como se possuísse vida própria, a pesada porta abriu-se
e as dobradiças gritaram num ranger de ferrugem. Foi recebido por não mais que
um mero sussurro do vento.
— Alguém? — Perguntou Barto à escuridão
escondida para lá da ombreira. Ninguém respondeu.
Um arrepio percorreu-lhe a nuca e
espalhou-se por todo o corpo. Foi o suficiente para que não repetisse a
pergunta. Apesar de sentir que a coragem estava prestes a abandoná-lo,
limitou-se a empurrar o pé direito na direcção do interior escuro, o esquerdo
acabou por segui-lo. O arfar da própria respiração era o único som presente e
os olhos ainda tentavam ver alguma coisa quando a claridade da rua atrás de si,
num ápice, encolheu. Virou-se de um salto e ainda pôde ver o último rasto de
luz do entardecer antes da velha porta se fechar.
Daquela vez as dobradiças permaneceram caladas.
Não via um palmo à frente e o arrepio insistia
em permanecer-lhe no corpo.
Estava prestes a bradar por alguém quando se
lembrou daquilo que o velho monge lhe dissera na estalagem.
— Depois de entrardes, durante
trinta anos não podereis falar. A menos que vos perguntem algo, o silêncio será
o vosso companheiro. Faz parte do aprendizado. Podereis ouvir, se vos aprouver.
— Ainda conseguia ver a redonda e corada cara de deboche do velho quando,
depois de esvaziar a cerveja num bom
gole, concluíra por entre os risos. — Trinta anos, meu pequeno… passam num
instante e… o Convento nunca dorme. — Não chegara a perceber porque aquele
monge lhe viera falar.
Ouvira as histórias do Convento
desde sempre e apesar de serem todas diferentes, tinham algo em comum, no Convento não se pratica o mal. Era uma verdade reconfortante, pelo menos acreditar nela era. Os olhos começaram a distinguir algumas
silhuetas nas paredes. Arrastou os pés pela pedra fria e aproximou-se
lentamente. Tapeçarias! Descobriu ao
tocá-las.
O coração quase lhe saltou boca
fora quando um clarão repentino nasceu ao fundo da sala, junto a um corredor
escavado na rocha. Uma criança pálida segurava um castiçal. A chama da vela
oscilava, mas era o suficiente para agora poder vislumbrar toda a sala, que
mais parecia uma gruta. Uma explosão de figuras e cores nas tapeçarias que
cobriam as paredes davam-lhe alguma vida.
Regressou o olhar à criança e ela sorriu-lhe.
Não teria mais de cinco anos e usava uma túnica que se estendia quase até ao
chão. Quer a vestimenta, quer o cordão que a apertava a cintura, eram de um
branco mais puro que uma alma sem pecados. Não conseguiu compreender como
alguém em tão tenra idade, podia ostentar aquelas fartas suíças grisalhas. Nada
fazia sentido, mas mesmo assim não encontrou motivos para ficar ali parado
quando a criança rodou sobre os calcanhares. Seguiu-a pelo corredor afora. Segue a luz, pensou.
Aquele corredor desdobrou-se em
muitas esquinas e a cada nova viragem a luminosidade aumentava. Por fim, o
corredor cedeu lugar a uma capela rústica de aspecto milenar. A cúpula estava
totalmente enegrecida pelo fumo do archote e a humidade escorria pelas paredes
de pedra. Nada mais a decorava além do altar e uma pequena mesa onde a criança,
após apagar a vela com os dedos, pousou o castiçal. Sobre o altar repousava uma
imagem desconhecida, uma loba de olhos cerrados a segurar um feixe de trigo
entre os caninos.
O silêncio acompanhou-os e
passaram por muitas outras salas, algumas tão pequenas e enfadonhas onde
dificilmente caberiam quatro pessoas, outras autênticos salões de baile
adornados a ouro, dignos de um palácio real. Tantos contrastes, pensou. Cruzaram-se com homens de todas as
idades, desde crianças nos primeiros passos a velhos próximos dos passos
finais. Todos vestiam a mesma túnica alva, só os cordões nas cinturas é que
diferiam na cor. Reparara no branco, vermelho, verde, lilás e amarelo, por
certo haveriam outras.
Por fora parece muito menor. Barto olhava para todos os lados, não conseguia compreender como é que o
interior do Convento poderia ter aquelas dimensões. A enorme rocha onde fora
escavado tinha o tamanho de dez, talvez quinze casas, não mais. Os seus pés
diziam o contrário. Apeteceu-lhe perguntar, não só aquilo mas também sobre tudo
o que vira e outras coisas mais. Não se atreveu. Teria de guardar as dúvidas
para intermináveis trinta anos mais tarde.
Onde me fui meter, talvez as ruas de Laec fossem
o meu destino. Começou a duvidar da escolha, mas não sabia se
poderia desistir. Voltou a lembrar-se do
velho monge, chamava-se Pelim.
— Tereis
uma vida digna e sereis respeitado, a nobreza certamente virá em busca do vosso auxílio. A própria realeza
também poderá fazê-lo.
Lembrava-se do sorriso que
aquelas palavras lhe puseram no rosto e da sensação de poder vir a ser mais do
que uma pulga num pardieiro.
—
Nascestes para serdes um pagador, consigo ver nos vossos olhos, mas tendes a escolha
final. Depois de se entrar, só há dois caminhos possíveis, o caminho da pureza,
onde devereis cumprir o vosso propósito e só então sair para encontrar um sucessor ou o caminho fácil da
autocomiseração, onde podereis renegar a vida e abandoná-la abruptamente. Já houve quem o fizesse.
—
Por ventura, serei eu o vosso sucessor? —
Perguntara Barto ao velho que o
confirmara com um simples aceno sério.
Sou um pagador, pois sou. Orgulhoso,
encheu o peito e endireitou a postura enquanto seguia a criança. O que quis ele dizer com aquilo? O que é um
pagador afinal? Malditos trinta anos… Arrependeu-se de não ter feito mais
perguntas ao
velho monge e ficou irritado consigo próprio
por ter deixado aquilo passar sem resposta.
O pequeno e pálido agarrou-se a
outro castiçal antes de entrarem para um novo corredor estreito e sinuoso que
parecia não ter fim. Depois de algumas bifurcações chegaram a uma pequena
abertura, aparentemente a única naquele corredor infindável. A criança parou,
virou-se e ainda a sorrir indicou-lhe com um gesto que entrasse. Barto entrou e
viu uma pequena cama encastrada entre duas paredes de rocha bem como uma
mesa-de-cabeceira de madeira onde repousava apenas uma vela acesa, já bem
derretida. Compreendeu que aquele seria o seu quarto, virou-se para agradecer e
encontrou apenas a parede oposta daquele corredor escavado na rocha. Foi até a
porta, espreitou para os dois lados e sentiu-se sozinho no mundo. Não era
possível ver mais do que breu.
O quarto era pequeno, abriu os braços e
encostou uma mão em cada parede.
Não havia uma porta para fechar, nem sequer uma
janela, não passava de uma pequena cavidade. Passou os dedos na cama e soube de
imediato que o colchão de palha trar-lhe-ia boas noites, sentou-se na cama e os
dedos deslizaram até a mesa-de-cabeceira. Passou-os lentamente na chama da
vela, cerrou os olhos e sorriu. Um lar.
Abriu os olhos e reparou na
gaveta semi-aberta da mesa-de-cabeceira. Abriu- a e retirou uma carta. A tinta ainda está fresca, apercebeu-se.
“Pequeno Barto, desde aquele dia
na cidade baixa, soube de imediato que viríeis. Ao ver-vos hesitante na entrada
do Convento, lembrei do dia no qual fui
eu a entrar por aquela velha porta de madeira. Tantos
anos, e passaram tão depressa.
Desejo que encontreis todas as respostas e que
saibais escolher o caminho certo.
Segui a luz.
Não vos preocupeis pois aqui as crianças não
andam todas com suíças daquelas, deixei-as ficar na esperança que me
reconhecêsseis, mas admito que exagerei.
Espero que não vos zangueis com esta pequena
partida.
Sei que tendes muitas dúvidas, e muitas mais
tereis, o tempo será o vosso irmão e encontrareis as vossas próprias respostas.
Do vosso antecessor, Pelim.
Ah, quase esquecia, dentro da gaveta estão mais
velas.
Aquela está a apagar-se.”
O olhar escorreu-lhe para a luz
da vela que agonizava, próxima do último suspiro. Arregalou os olhos, largou a
carta na cama e num movimento súbito atirou-se de joelhos ao chão. Puxou
bruscamente a gaveta para o colo e em meio ao desespero encontrou uma das
velas. Sem sequer respirar, conseguiu acendê-la no último momento. Passar a
primeira noite no Convento banhado pela cegueira não seria, por certo, o melhor
dos começos e sair a tactear pela escuridão daqueles corredores seria uma
experiência, no mínimo, incómoda. Quase,
essa foi por pouco… Voltou a sorrir quando a chama ganhou força. Como é que não reparei? Claro! Eram as
suíças do velho monge.
Permaneceu no chão e começou a
vasculhar calmamente a gaveta. Encontrou uma túnica igual a todas as outras que
vira desde que entrara no Convento.
Contou as velas e sentiu-se aliviado quando
constatou que, pelo menos naquela noite, não ficaria no escuro. Os seus olhos
cintilaram quando encontrou o anel de ouro, forjado na forma de um dragão e
trabalhado ao mais ínfimo pormenor.
Jamais fora dono de qualquer adorno e agora
tinha um, esplendoroso e em ouro reluzente. Teve a certeza que se tratava de um
presente quando reparou no nome gravado no interior, Barto! Foram as moedas de cobre que lhe deram um nó cego nos pensamentos,
para que precisarei eu de moedas cá
dentro? Também teve direito a um cordão, diferente de todos os outros que
vira, aquele era preto.
Sentou-se novamente na cama e
tacteou à procura da carta. Levantou-se e voltou a procurá-la. Não a encontrou.
Adeus Pelim. Compreendeu. A partir
daquele momento, o primeiro passo da sua nova vida estava dado, o primeiro de
uma caminhada onde não se espreitava com desconfiança por sobre os ombros.
Deitou-se e só então se apercebeu que estava
cansado. Fitou o lume por alguns momentos, enquanto tentava assimilar tudo
aquilo. Olhou para o anel, o dragão parecia ganhar vida com o reflexo do fogo,
sorriu e deixou-se adormecer.
O dia seguinte esteve longe de
ser vazio de novidades e de estranhezas. Barto deixou os seus trapos velhos no
quarto e partiu com a nova vestimenta, pronto para encarar os seus desígnios.
Perdeu-se vezes sem conta nos serpenteantes corredores e nas salas esquisitas,
todos escavados na mesma rocha maciça. Terão
demorado mais de cinco vidas para escavar todo o Convento. O mistério
estava presente em tudo, começava a questionar se os trinta anos de silêncio
seriam tempo suficiente. Passou por uma sala octogonal cuja abóbada se erguia
na altura de dez homens e o relevo das esculturas estava revestido a ouro.
Apenas duas cadeiras de costas voltadas decoravam o centro da sala, uma preta e
outra branca. Cada passo se transformou em oito quando o eco percorreu todas as paredes. Em cada nova divisória,
encontrava novos rostos, alguns sorriam-lhe outros passavam sem levantar os
olhos do chão. Viu apenas dois ou três rostos que vira no dia anterior, mas
algo lhe atraiu o olhar, um homem a caminhar na direcção oposta e a olhar para
todos os cantos, como se procurasse algo. Este
também está perdido. Era visível no seu semblante e na desorientação. Estarei também eu com aquela expressão? Espreitou
por sobre o ombro para vê-lo a afastar-se e reparou no cordão preto que o homem
trazia à cintura. Lembrou-se imediatamente do branco que a criança Pelim carregara na cintura. Do preto ao branco. Do desconhecido ao entendimento. O cordão está
ligado ao caminho!
Compreendeu. Mas como? Não importava. Algo fizera sentido, por pouco que fosse e
mesmo sem estar completamente claro, aquilo deixou-o radiante. Teve vontade de
correr atrás daquele homem e dar-lhe a novidade, mas não podia. Seguiu em
frente. Entrou em outra sala e contou mais de vinte anciões apoiados nos
joelhos, todos com os olhos fixos na mesma parede lisa e despida de qualquer
imagem. Se em tempos recebera alguma tinta, não passava agora de um mero sopro
de memória esbatida. Cada um rezava a sua reza e aquele burburinho
incompreensível incomodava os ouvidos, mas eles pareciam não se importar.
Ainda passou por mais alguns corredores e
outras salas até encontrar aquilo que o
seu estômago procurava. Escolheu sentar-se na
ponta de uma das mesas corridas, onde conseguia ver a sala toda e também ficar
distante o suficiente dos outros silenciosos. A comida estava posta, espalhada
um pouco por todas as mesas, sem hesitar agarrou-se ao primeiro pedaço de pão
que a mão alcançou. Um ancião mal-humorado atravessou a sala a coxear e parou à
sua frente. Enfiou a mão no velho saco de pano que trazia a tiracolo e retirou
uma caneca de barro. Não esboçou qualquer expressão, pousou a caneca e afastou-se
pelo mesmo caminho. Jamais bebera leite de cabra tão delicioso como aquele que
repousava nos jarros sobre a mesa.
Os martírios da vida
esmagaram-lhe as crenças e não fora certamente a fé que o fizera caminhar na
direcção do Convento Esculpido. Ouvira muitas vezes que o Convento fora
esculpido pelo toque dos próprios deuses. Barto ria-se sempre daquilo.
— Se existe algum deus, o que eu
duvido, iria ele dar-se ao trabalho de escavar uma rocha? — Dera aquela
resposta de todas as vezes.
Não
sabia responder o que o movera até ali. Não importava, queria respostas e se
elas não chegassem depressa, partiria. No seu íntimo, parecia não acreditar nas
palavras do velho monge. Algumas
coincidências, outros tantos truques e alguma imaginação minha certamente, pensou.
Com o estômago silenciado, abandonou a mesa, aquela sala e o velho
mal-humorado.
Descobriu ainda duas mãos cheias
de novos recantos e outras tantas imagens de deuses que nunca vira ou ouvira
falar, antes de reencontrar o seu quarto. A luz do dia penetrava por minúsculos
rasgos desordenados no tecto do corredor e soube logo onde estava quando
vislumbrou o desenho esculpido na rocha, por cima da entrada, um círculo dentro
de um triângulo. Azazel, leu entre as
duas figuras. Cada porta trazia uma figura diferente, aquilo certamente teria
algum mistério. Não havia razão para duvidar daquilo, afinal tudo o que vira
até agora era estranho. Caso decidisse ficar, teria muito tempo pela frente
para se debruçar sobre o assunto.
A
longa caminhada, a barriga cheia e a cama a gritar o seu nome eram um convite
que não podia recusar. Mais logo vou
descobrir mais qualquer coisa.
Como estava, deitou-se. Pensou que adormeceria
mesmo antes de a cabeça encostar no colchão, mas enganou-se. Foi assolado por
muitos pensamentos que julgara esquecidos. Veio-lhe à memória o olhar da sua
mãe e as lágrimas que lhe escorriam pelas bochechas rosadas quando ela, depois
de esmagá-lo em um longo abraço, o mandou partir.
— Vai! Vai e não voltes! —
Dissera ela. O pequeno Barto não recebera qualquer explicação além daquele
abraço doce e daquelas palavras amargas. Partira assim, sem saber o que pensar.
O que esperar da vida, para onde ir, onde arranjar comida, onde dormir foram
questões as quais fora obrigado a encontrar as próprias respostas.
Não se conseguia lembrar das suas
feições, a memória das lágrimas e daquele olhar apavorado foi a única a
persistir. A razão teve de ser muito
forte. Foi a primeira vez que viu tudo de outra forma e após aqueles longos
anos, compadeceu-se da mãe. Onde quer que
estejas… mãe, eu perdoo-te. Sentiu o calor de uma lágrima a dançar na sua
face, virou-se contra a parede e puxou os joelhos contra o peito. Adormeceu a
tentar recordar o apelido que outrora carregara e a imagem da casa onde
nascera.
Um
guincho estridente acordou-o. Estava completamente encharcado em suor e a
respiração ofegante galgava-lhe o peito. Aquela
sombra… a claridade… parecia chamar-me. Apenas um pesadelo! Apenas um pesadelo.
Compreendeu e sentiu-se aliviado. A escuridão era tal que se sentiu a
flutuar no vazio. Dormi demasiado tempo,
a noite chegou e não tenho nenhuma vela acesa. Mais calmo, apercebeu-se de
outro ruído, um que não lhe fizera companhia na noite anterior. Escutou-o
durante algum tempo até perceber que se tratava de um turbilhão de ressonares.
Conseguiu identificar treze diferentes entre os outros que o seu ouvido não
conseguiu separar. Como é possível? O meu
quarto está completamente isolado e longe de tudo. Com a cegueira nocturna
permaneceu onde estava, seria pedir demasiado a si próprio abandonar o quarto
naquelas circunstâncias.
A aurora chegou e com ela as
primeiras claridades irromperam pelos rasgos no tecto do corredor. Não passava
de uma luz fraca, mas Barto passara metade da
noite no breu. Saltou da cama e cautelosamente
aproximou-se do corredor. O queixo caiu-lhe quando viu que o seu quarto era
agora apenas mais um no meio de dezenas. Olhou para a figura, o círculo dentro
do triângulo lá estava. Procurou fissuras no corredor mas encontrou apenas
rocha sólida. Os pelos da nuca eriçaram-se. Como
vieram cá parar? Não perdeu tempo e partiu pelo corredor afora com passos
silenciosos. Chegou ao fim do corredor e reconheceu as primeiras duas salas. Na
terceira, sobre o altar encontrou uma loba a segurar um feixe de trigo entre os
caninos. A capela! Apercebeu-se
enquanto reconhecia também a cúpula enegrecida pelo fumo do archote. Nada fazia
sentido, não conseguira decorar bem a disposição de cada corredor, quarto,
saleta e salão, mas sabia que aqueles não pertenciam àquele sítio. Parecia que
todo o Convento tinha sido baralhado.
… o Convento nunca dorme. Lembrou das palavras de Pelim. Não compreendeu, e duvidou que alguma vez
viesse a compreender, mas teve a certeza de que aquele dia seria novamente um
novo recomeço, mais um marco em outra página virada.
Continuou a vaguear. Cada porta
que atravessava, arrancava um pedaço da lógica que tentava construir. Quando
encontrou a sala onde comera a última refeição, entrou. À semelhança de todas
as outras que percorrera, aquela também estava vazia, apesar de as mesas
estarem postas e carregadas de comida. Nem mesmo o ancião mal-humorado com o
saco de pano a tiracolo lá se encontrava para distribuir as canecas de barro.
Sentou-se e esperou, decidiu que não iria tocar na comida até entrar alguém.
Observou demoradamente cada pedaço de comida,
cada canto da sala.
Imaginou-a cheia de amigos a beberem cerveja e
a dançarem uns com os outros numa festa que durasse uma noite. Aquela visão
entristeceu-o, os amigos que outrora tivera não encheriam sequer um canto
daquele recinto. Sem incitar qualquer pensamento, voltou a ver o olhar da sua
mãe. Baixou a cabeça para deixar a lágrima cair e reparou que o seu cordão era
agora vermelho, como se alguém o tivesse tingido durante a noite. Soltou-o da
cintura e intrigado observou-o mais ao perto. É isso! O cordão… O olhar da mãe cruzou-se com o
seu e lembrou daquilo que tinha feito no dia
anterior. Os seus olhos arregalaram- se. Tudo parecia tão claro. O cordão, a
mãe, as palavras de Pelim… Sou um pagador… Sou um pagador de pecados! Pagador de pecados era um belo título, decidiu
assim Barto. Soube de imediato o que faria depois de calar o estômago. Deixou
escapar um sorriso ao ver o ancião a entrar. Não se importou com a indiferença
do velhote. O coxo atravessou a sala e saiu por outra porta, no instante
seguinte regressou a remexer no velho saco de pano enquanto caminhava na sua direcção. Retirou uma
caneca e pousou-a na mesa, fitou de perto o sorriso do jovem e não reagiu,
virou as costas e afastou-se. O resmungar do estômago trouxe o pensamento
novamente à comida e então deliciou-se. Ao fundo da sala, os olhos amarelados,
envelhecidos e indiferentes do outro fizeram-lhe companhia.
A configuração que o Convento
assumira naquela noite transformou-o em um novo e totalmente desconhecido
labirinto. Após uma longa caminhada e muitos equívocos conseguiu chegar
novamente ao quarto.
Sentado na cama e com o anel em
forma de dragão apertado na palma da mão e contra o peito, fechou os olhos e
começou por pagar aqueles pecados os
quais conseguiu lembrar. Perdoou aquele taberneiro por tê-lo espancado quando
apenas mendigava um prato de sopa; perdoou o Terpino, seu amigo de rua, que
traíra a sua confiança por um par de mamas; sem saber como, sentiu-se invadido
de arrependimento quando lembrou da velhota a qual roubara o único pão que
tinha em casa.
Olhou para o cordão, ainda estava adornado pelo
vermelho.
Cada pecado que lembrava, pelo
menos no seu entendimento de pecado,
fazia-o reviver o seu passado. Uma lembrança puxava a outra, inclusive algumas
que julgava esquecidas. Questionou-se se seriam lembranças ou mero fruto da sua
imaginação. Perdoou Pelim por não lhe ter contado mais acerca do Convento
Esculpido, aquilo certamente teria de ser considerado um pecado; Perdoou-se a si próprio ao lembrar-se daquela vez em
que se escondera com medo ao invés de tentar ajudar um comerciante de
hortaliças que estava a ser apunhalado por não querer entregar tudo o que
tinha, três moedas de cobre.
Voltou a espreitar o cordão e
suspirou desapontado. Começava a ter dificuldades em lembrar de mais pecados. O
desconforto e a irritação aconchegaram-se-lhe no corpo, sabia que tinha
vivenciado incontáveis pecados que esperavam pelo perdão mas não estava a ser
capaz de lembrar.
Não deu conta do tempo a passar.
* * *
Lembrar daquilo, de quando
compreendera uma parte do seu propósito, fazia-o rir sozinho. Estivera apenas a
um pecado de alcançar a cor-de-laranja naquele dia, há trinta anos atrás.
Acabara por adormecer quando o turbilhão de ressonar dos quartos vizinhos já se
fazia ouvir e quando a frustração não tinha mais espaço para crescer. Na manhã
seguinte acabara por lembrar de mais um pecado qualquer e pôde finalmente
apreciar a sua nova conquista, vislumbrara o seu cordão a mudar de cor, como se
de um camaleão se tratasse. Continuara sem o compreender totalmente, mas fora
sem dúvida uma conquista.
Estava agora próximo de alcançar
o violeta, a última cor do arco-celeste e também a mais difícil de ultrapassar,
precisaria de mais de meia-vida para tal, cada nova cor precisava de muitos
mais pecados que a cor anterior. Passara pelo vermelho, cor-de-laranja,
amarelo, verde, azul e agora ostentava o lilás. O arco- celeste deveria ser
abraçado pelo alfa e pelo ómega, pelo princípio e pelo fim, pelo preto e pelo branco. Sabia que, quando completasse o ciclo e alcançasse o
branco, teria cumprido o seu propósito.
Por vezes era-lhe difícil
acreditar em tudo o que aprendera naqueles anos. Pelim não lhe mentira quando
dissera que trinta anos passariam num instante. Cada novo entendimento abria um
leque de outros caminhos. Sentira um grande alívio quando compreendera que nem
tudo era para ser compreendido. Aquele dia foi o ponto de viragem, tudo passou
a ser mais fácil e as epifanias sobrepuseram-se.
Perdeu as contas aos pecados
pagos após descobrir que conseguia fazê-lo mesmo sem conhecer os pecadores.
Barto estava absorto nos seus
pensamentos quando um homem com uma barba farfalhuda, ruiva como o fogo, saiu
do corredor e lhe acenou. Chegou a minha
vez, pensou. Levantou-se, passou pelo homem e apenas lhe devolveu o aceno.
Poderia ter utilizado a voz, mas aprendera a gostar do silêncio. Entrou na sala
octogonal, mobilada apenas por duas cadeiras de costas voltadas, uma preta e
outra branca.
—
Sentai-vos. — O velho Catite apontou-lhe a
cadeira preta. Não sabia o nome verdadeiro do velho, mas fora o nome que lhe
dera algures nos últimos trinta anos. Não precisaria do nome real, Catite
serviria. Inventara nomes a muitos outros. Conhecia alguns poucos nomes reais,
poderia contá-los nos dedos.
Ouvira-os pelos corredores, da boca daqueles que estavam no Convento há mais
tempo.
—
Obrigado. — Respondeu Barto enquanto sentava.
Não lembrava do som da própria voz e sentiu-se como se estivesse a reencontrar
um velho amigo.
Esperou durante aqueles anos que lhe fizessem
perguntas, como Pelim sugeriu que poderiam fazer, mas elas nunca vieram. O
único exercício que podiam fazer para que a voz não secasse era uma espécie de
cantoria em vibração.
— Sabeis onde estais?
— Eu
chamo-lhe Catedral dos Oito Ecos. — Disse Barto e ouviu o eco das suas palavras
a tamborilar pelas oito paredes.
O velho Catite soltou um risinho.
— Não é, por certo, dos piores nomes que já ouvi. — Sentou-se na outra cadeira,
nas suas costas. — Chama-se Sala das Confissões. Enquanto estiverdes ai
sentado, não conseguireis dizer nada além da verdade e tampouco conseguireis
ocultá-la.
Barto foi dono do seu silêncio,
não soube o que dizer. Na sua meninice teria disparado um enxame de perguntas,
mas naquele momento não lhe ocorreu nada
que necessitasse de ser dito.
— Se
vos aprouver questionar algo, tendes aqui uma boa oportunidade.
Também eu não poderei mentir. — A voz do velho
era rouca e suave ao mesmo tempo, ele sabia que Barto não tinha questões. —
Tendes um nome?
— Barto.
— Barto o quê?
Pensou em inventar um nome de
família qualquer mas a boca abriu-se contra a sua vontade e disse — Apenas
Barto. — Admirou-se com aquilo que dissera, foi involuntário. Aqui só se diz a verdade… lembrou-se.
— Barto,
os anos de silêncio foram suficientes?
— Foram
os necessários. — Olhou para o alto da abóbada e para as esculturas revestidas
a ouro que a decoravam.
— Por
ventura, sentis vós o desejo de voltar a viver lá fora?
Aquilo fê-lo pensar por um
momento e com a velocidade de um relâmpago viu flashes da sua infância, outros das ruas, viu Pelim na estalagem a
esvaziar a cerveja e também viu a porta do Convento a abrir-se sozinha. Não
encontrou uma resposta clara para aquela pergunta, mas soube que obteria a
resposta quando deixasse as palavras saírem da sua boca, não se podia mentir
ali. — Não. — Disse.
— Compreendeis
todos os propósitos?
—
Conheço aquilo que os meus olhos viram, aquilo
que ouvi, o que as minhas mãos tocaram e ainda os diversos odores. — Olhou para
o anel em forma de dragão. — Conheço
aquilo que me foi dado a conhecer, conheço o que me é lícito. Poderei conhecer
mais ou poderei conhecer menos, mas por certo, assim como vós, não conheço todos os propósitos.
Ouviu um quase imperceptível risinho, preso entre
os lábios do velho Catite.
— O
que tendes vós no dedo? — Disse Catite.
Barto olhou novamente para o
anel. Desconfiou da pergunta, mas disse aquilo que sabia. — Um anel forjado em
ouro, um presente de Pelim.
—
Ah sim, o velho Pelim. Foi sempre muito dado às
travessuras mas foi sem dúvida um dos melhores. Parece que foi ainda ontem que
o vi. — O velho suspirou. — Barto, ele não vos deixou uma prenda. Deixou-vos uma tarefa.
Barto não compreendeu.
— O
que tendes no dedo é mais do que ouro, é mais do que um adorno, é muito mais do que uma prenda… Tendes um dragão
dos sonhos.
—
Dragão dos sonhos? — Estava admirado, os seus
olhos arregalados denunciavam-no às paredes. As sombras! A luz… Segue a luz. Os guinchos que me acordavam… afinal
eram mais que apenas sonhos. Lembrou-se das tantas noites que acordara
aterrorizado com um guinchar estridente, atribuíra aquilo sempre ao mesmo
pesadelo onde nunca chegava a ver a criatura que gritava, não mais que uma sombra que passava por
ele. Jamais
teria associado ao seu dragão.
— Para
que serve um dragão dos sonhos?
—
Ora, para montar é claro. — O velho riu-se. —
Deveis montar o dragão enquanto a vossa carne dorme, vaguear pelo mundo nas
sombras da noite e… caçar.
—
Caçar? Não compreendo. Caçar o quê? — Teve
receio da resposta, mas tinha de saber.
— Aquilo
a que um dragão dos sonhos gosta de dar caça.
Demónios.
Barto arregalou os olhos, não soube julgar aquilo, apenas soube que era
verdade. Ele não pode mentir, não
aqui…
— Mas como…
—
Krugo, é como o devereis chamar nos vossos
sonhos. Mas tende cuidado, se
cairdes da montada durante o voo, não regressareis.
— Quais demónios?
— Sabereis quando
os virdes.
— O dragão mata-os?
O velho voltou a rir. — Os
demónios não podem ser mortos. Aqueles que conseguirdes caçar devem ser
aprisionados… no vosso quarto.
— No
meu quarto? — Novamente teve receio de saber a resposta. — Isto quer dizer que
tenho lá…
—
Sim. Tendes incontáveis demónios no vosso
quarto, demónios dos quatro cantos
do mundo, de todas as raças que podeis imaginar e mais outras tantas.
Demónios que foram caçados pelos vossos
antecessores, desde o princípio dos
tempos, mas não vos preocupeis que eles não vos
podem fazer mal. Estais protegido pelos desígnios.
Azazel. Pensou involuntariamente e viu o desenho na
porta do seu quarto.
Não soube como arranjaria coragem para entrar
novamente naquele quarto, mas sabia que teria de fazê-lo. Olhou para o anel, o brilho pareceu ondular.
—
Credes nos deuses que aqui habitam? — A voz do
velho era uma voz que necessitava
de um gole de água.
— Creio
que há verdades que fogem ao nosso entendimento. — Os anos de meditação e observação mostraram-lhe
que estivera errado.
— Quereis conhecer
as verdades?
— De
que teriam servido os últimos trinta anos se agora precisasse de descobrir novas verdades?
Uma brisa invadiu a sala e rodopiou pelas oito
paredes.
— Levantai-vos.
Estais novamente preparado.
Novamente? O que o velho quis dizer com
novamente?
Ao levantar-se, Barto reparou que
a sua cadeira preta, agora era branca. Olhou para trás e viu o velho Catite a
desaparecer por um corredor no lado oposto da sala. Não ouvira os seus passos
nem o arrastar dos chinelos na rocha do chão. Levantou a mão e quis chamá-lo, mas
arrependeu-se e as palavras não chegaram a abandonar a sua boca. Foi então
invadido subitamente por um desejo de estar com a sua mãe. Soube naquele
momento para onde iria.
Chegou àquilo a que dera o nome
de Quarto Memento, uma sala sem portas nem janelas, onde o mais próximo que se
conseguia estar do seu interior, era espreitar por um orifício minúsculo na
parede. Para alcançá-lo teve de ficar na ponta dos pés. Espreitou com o melhor
olho e lá estava ela a segurá-lo ao colo. Cantava-lhe uma canção de embalar e
sorria-lhe o sorriso mais lindo do mundo por entre palavras doces. Naquele
momento Barto viajou para longe, para fora do Convento, para o sítio onde
nascera e não mais sabia onde ficava, viajou para o colo da sua mãe.
Naquela noite, enquanto o seu
corpo descansava, os seus sonhos levaram-no a conhecer o seu dragão, o dragão
que fora dos seus antecessores. Ou seria ele
próprio a pertencer ao dragão? Era algo para o
qual talvez não houvesse resposta, como tantas outras coisas. Não sentiu medo
quando abriu os olhos. Estava no meio do nada e envolto em nuvens escuras que
bailavam loucamente ao seu redor, como se estivesse no olho de um furação, onde
tudo é calmo. Gritou o nome da criatura — KRUGOOOOOoooo! —, mas ouviu apenas a
sua própria voz a ecoar ao longe, como se colidisse contra montanhas. Por
momentos, obteve não mais que
silêncio quando então ouviu um guincho distante, violento e estridente.
Virou-se na direcção do som. Um novo guincho. Mesmo sem conseguir ver, soube
que ele era veloz e aproximava-se
depressa. O coração cavalgou o seu peito quando o viu. Irrompeu por entre o
breu e as nuvens negras rodopiaram num turbilhão. Era um dragão feito de
chamas, um dragão ardente, um dragão iluminado… um dragão de luz. Segue a luz… Compreendeu. Sorriu ao
vê-lo pousar. Soube de imediato que o conhecia desde há muito. Aproximou- se
sem hesitar, tocou-lhe o peito em chamas e o dragão voltou a rugir, tão forte e
estridente que até as nuvens negras temeram, deixaram de rodopiar e dissiparam-
se.
Desde então, passava os dias a
pagar pecados e a esperar ansiosamente pela chegada das noites. De todas as
vezes tinha de o chamar e em muitas delas, Krugo pregara-lhe partidas. Aparecia
sorrateiramente pelas costas e guinchava- lhe ao ouvido. Não fossem sonhos,
teria certamente morrido em cada um dos sustos. Percorrera todas as terras e
nas noites iluminadas pelas luas, vira paisagens de cortar a respiração, mas
nada que se igualasse às capturas. Perdera a conta aos demónios caçados, mas a
adrenalina ainda lhe percorria as artérias de cada vez que voltava a sentar-se
no dorso ardente de Krugo. A vida no Convento passara sem que desse conta, a
velhice arrancara-lhe quase todos os cabelos e os poucos que ficaram, agora
tinham a cor da neve.
— Pronto, já só falta o cordão
para que fique totalmente branco. — Dissera quando vira ao espelho o último fio
de cabelo escuro cair. Ainda hoje se ria daquela situação.
Não tardou.
* * *
Acordou. As dores no corpo
incomodaram-no, mas não o suficiente para evitar que se levantasse como
habitualmente fazia. Vestiu a sua vestimenta alva e prendeu-a com o cordão
violeta, desgastado pelo tempo.
Seguiu a sua rotina matutina e
não se importou com ela, sabia que a noite o compensaria. Ainda no próprio
quarto começou a pagar alguns pecadores. Nunca
irão acabar. Aquela verdade não o esmorecia, apenas levantava um pequeno
véu de tristeza. Espreitara para o cordão cada vez que um pecado fora pago. O
cordão não mudara de cor há mais de meia vida e Barto já fazia aquele gesto
instintivamente, pagava um pecado e o olhar procurava a cintura. Quando chegou
ao violeta soube que iria demorar, mas não imaginava que aquela cor o
acompanharia por tanto tempo, demasiado
tempo.
Bastou mais um pecado, um mero
pecado, pago em nome de um desconhecido qualquer, provavelmente não merecedor
de perdão. Lá estava ele, novamente
como um camaleão, a dançar entre a angústia do violeta e a paz do branco. Como é lindo. Barto saboreou cada
instante daquele bailado. Passara tanto tempo desde a última vez que mal
conseguia lembrar de como era belo aquele truque. Orquestrado por quem, não
interessava saber, mas um belo truque
certamente.
Sem pedir permissão para entrar,
abateu-se-lhe uma profunda tristeza quando
sentiu o anel a ficar tão gelado que foi obrigado a tirá-lo. Aguentou o máximo
que pôde mas a dor aguda saiu vencedora. Soube que não voltaria a tocar o seu monstro alado, a sua época de caça
tinha chegado ao fim. Pousou o anel na gaveta da mesa-de-cabeceira e enxugou as
lágrimas que lhe escorriam pela face coberta de pêlos brancos. Não podia
imaginar que doesse tanto abandonar o melhor amigo, uma criatura existente
apenas nos seus sonhos mas aprisionada numa vida de pesadelos bem reais.
Retirou as moedas de cobre da gaveta, enegrecidas pelos anos, levantou-se e
cabisbaixo abandonou o quarto. Se
dependesse da própria vontade, viveria no
Convento Esculpido para todo o sempre, mas havia um ciclo a ser encerrado e a
última missão o esperava fora do convento.
Acenou respeitosamente à
estalageira quando entrou e dirigiu-se para uma mesa livre ao fundo da sala. A
rapariga aproximou-se e pousou-lhe uma caneca
de cerveja a frente.
— Ireis
comer algo, meu senhor? — Tinha uma voz delicada, por certo deveras inapropriada para aquele local.
—
Obrigado menina.
Espero por alguém. — As curvas da mulher denunciavam que de menina pouco tinha,
mas para a idade de Barto aquela palavra estava bem empregue. A estalageira
anuiu e regressou para atrás do balcão, não sem antes ser apalpada pelo
caminho. Pelos risinhos, seria certamente
algum conhecido seu. Barto não se prendeu aos detalhes daquilo.
Ah, o doce amargo da vida. Pensou
depois de dar um bom gole na cerveja.
A caneca bateu na mesa com mais
força do que era suposto e alguns rostos desconhecidos voltaram-se para ele.
Sentiu o rubor a inundar-lhe a face, mas felizmente os curiosos depressa
perderam o interesse.
O que faço eu aqui? Olhou
em volta, procurou algo em cada um dos presentes. Como saberei quem espero? Nada lhe saltava à vista. Tantos anos de aprendizagem e afinal ainda
me escapa tanta coisa. Sem saber o porquê, escolheu a mesma estalagem que o
velho Pelim escolhera. Talvez não a tenha
escolhido, talvez tenha vindo tratar de outro assunto qualquer, talvez tenha
parado aqui apenas para beber uma doce-amarga cerveja. Deu outro bom gole. Talvez não se deva procurar, talvez apenas
deixar-se encontrar. Será? Quando pousou a caneca os seus olhos
arregalaram-se, os seus pés não encontraram o chão e os seus ouvidos não
queriam acreditar naquela voz pequena que agora ouvia.
— Olá
Salema, a minha mãe pediu um jarro de vinho para fazer mais doces. Disse que hoje os vai vender
todos. — O rapaz era de fraca envergadura, mas a doçura na sua voz era única.
—
Oh meu pequenino, desta vez o vinho acabou-se
mais depressa, foi? É bom sinal. Só um momento que vamos já tratar disto. —
Respondeu a estalageira que agora já
tinha um nome.
O pequeno rapaz concordou com um
gesto e um sorriso. Pousou o jarro no balcão e enquanto esperava o regresso da
Salema pôs-se a olhar em volta, a procura de caras conhecidas.
Ele viu-me! Disfarça Barto, disfarça! Teve
medo e sem pensar afundou o nariz e os olhos na caneca, a procura de um
esconderijo por detrás do último gole da doce-amarga. Deu um salto no banco
quando baixou a caneca e viu que o jovem estava especado mesmo à sua frente. Como é possível? É ele!
—
Senhor monge, se me permitis a ousadia, é
verdade que o Convento foi
esculpido pelo toque dos deuses? — O jovem deveria ter não mais do que dez
anos, vestia roupas simples mas bem tratadas, provavelmente por uma mãe amorosa,
e trazia o olhar carregado de sonhos.
— Sim…
é verdade. — Disse a gaguejar.
— Sempre
tive esta curiosidade, mas a coragem para vir falar aos monges quando andam cá fora abandonou-me de todas as vezes. — O
pequeno sorriu.
—
Mas eu também sou um monge. — Barto mostrou a
sua vestimenta branca.
— Não
sou mais uma criança, já era altura de perder os medos. — A convicção não o deixou fraquejar.
Barto riu-se.
— Pois,
é verdade. Há alturas em que temos de enfrentar os medos. — O monge continuou a
sorrir. — Tendes um nome, meu pequeno?
— Barto.
— Respondeu o jovem. — A minha mãe costuma chamar-me de Nocas, mas não gosto. Barto é o meu
nome. E vós?
O velho monge olhou para as suas
mãos, enrugadas pelos anos. A marca no dedo onde repousara o anel estava bem
vincada e a pele enfraquecida. Levantou
os olhos lentamente e disse — Pelim. Chamo-me
Pelim.
— Gostais
de dragões, pequeno Barto? — Disse Pelim, ainda a sorrir.
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Henrique Anders nasceu em 1978, na longínqua cidade de Tuparendi no
Brasil. Com 20 anos mudou-se para Portugal com parte da família, onde permanece
e pretende ser sepultado.
Tem por hábito perder-se nos mais variados mundos, de onde sempre regressa
carregado das coisas mais estranhas.
Na vida real, é pai da Cinderela mais linda e mora onde termina o
arco-íris. Ganha o pão como programador informático e escreve apaixonadamente
sobre borboletas e amoras.
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