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sábado, 15 de novembro de 2014

A Outra Noite


A Outra Noite
Maldita Herança

Livro Grátis "A Outra Noite" de Reginaldo B. Ribeiro.

Amber Knight sente-se solitária, impotente e nutri um desejo ardente em seu ser. Um desejo comum de adolescente, aquele desejo de sentir o máximo da vida, ou de ir ao extremo duma condenada paixão e o ímpeto do amor, mas o que ela está prestes a conhecer não tem nada de simples e muito menos compreensível a seu círculo de amizades. Seu pai tenta lhe dar uma vida familiar e social de forma normal: carinho, afeto, amizade, compreensão e dedicação. A atenção que qualquer garota adolescente deveria receber de seus pais. Porém, uma força sinistra quer apossar do poder descomunal que pertence a sua família. Então, o desespero e a obscuridade cercam-na ambicionando tal poder.


Autor  Reginaldo B. Ribeiro.

Prefácio
Nunca se está pronto para as grandes descobertas da vida. Desafios.
Ainda que estudadas meticulosamente e treinando com exaustão para superá-las debaixo de uma sombra que permeia as situações mais estranhas e alucinantes em sua volta.
Período cinza e opaco da vida - diz sobre a falta de alegria e acúmulo de energia - em atribuir a nobre missão de proteger os seus das mais adversas armadilhas do tenebroso acaso.
Amber Knight sente-se solitária, impotente e nutri um desejo ardente em seu ser.
Um desejo comum de adolescente, aquele desejo de sentir o máximo da vida, ou de ir ao extremo duma condenada paixão e o ímpeto do amor, mas o que ela está prestes a conhecer não tem nada de simples e muito menos compreensível a seu círculo de amizade.
Seu pai tenta lhe dar uma vida familiar e social de forma normal: carinho, afeto, amizade, compreensão e dedicação. A atenção que qualquer garota adolescente deveria receber de seus pais.
Porém, uma força sinistra quer apossar do poder descomunal que pertence a sua família. Então, o desespero e a obscuridade cercam-na ambicionando tal poder.
O passado de qualquer mortal esconde segredos de vida ou de morte e o dela desperta uma terrível maldição.
Poderá a jovem Amber conviver com tudo que descobrirá e ainda suportar as investidas dos muitos seres sombrios que a sombria penumbra noturna por toda a sua volta?


I - Túmulo Sob Sangue e Neve
Cemitério frio e tranquilo com penumbras perturbadoras causadas pelas luminárias preguiçosas que despontam sobre os postes de ferro fundido. O branco estonteante cobre uma relva rasteira e queimada pelo gelo. No vem e vai do vento range portinholas de jazigos jactanciosos. Um ambiente sossegado e fantasmagórico cercado por monumentos pomposos e muitas cruzes de bronze e latão.


Gotas de sangue caem sobre o túmulo gelado. Deve ser o pior dia desde que começou este inverno. O frio está cortando os lábios e prejudicando a pele de qualquer mortal. A inscrição na lápide diz: “jaz Anna Smith Knight, amada esposa e mãe”. Parece que foi ontem que tomamos um chocolate quente, pensou a não tão franzina menina deitada sobre o concreto gelado. Flocos de neve começaram a dançar em volta dela. As árvores sussurravam ao sabor do vento preguiçoso e junto às gotas de sangue que caíam dos pulsos sobre a pedra, de seus olhos grandes e vibrantes gotejavam lágrimas cintilantes ao ponto de se cristalizarem entes de tocar a superfície do túmulo.
Amber era seu nome. Mais uma vez passava a navalha nos pulsos. O sangue era tão preguiçoso e aparentemente seus cortes se fechavam rápido demais. Banhada pelas luzes pálidas do cemitério sentia o ar entrar em seus pulmões com gentileza e num instante algumas lâmpadas piscavam. Fazia algumas horas que estava ali e seu pai deveria já estar louco à sua procura. Pois naturalmente é o que ela achava. As sombras das grades levemente enferrujadas se projetavam sobre alguns túmulos os tornando como listras de zebras. Montes de neve já ocupavam algumas covas, jardins e jazigos daquele lugar silencioso e um tanto assombroso. A maquiagem pesada da menina se desmanchava nas lágrimas ininterruptas que caíam. Se estivesse em sua casa estaria na cama bem confortável e quente navegando na rede com seu laptop e ouvindo um Death Metal de uma banda não muito conhecida. Talvez seu blackberry tocasse a chamada com um hit de sua banda preferida e amigos, os poucos que tinha, a chamariam para um cinema e depois um lanche muito gorduroso. Essa era sua vida, dizia ela: vidinha boa. Trouxe para ali seu Music Player com mais de trezentas músicas, mas acabara de lançar na cruz de pedra sobre um túmulo rústico. Deveria jazer ali alguém que viveu uma vida longa e simples, deveria ser importante, notado pela inscrição com detalhes romanos, um sacerdote cristão presumia a menina que tinha olhos curiosos.
Soluçava muito. Havia completado dezoito, mas desde os quatorze anos não via mudança nenhuma em sua medíocre vida, na estrutura, no seu corpo para ser mais concreto. Seus seios eram firmes, mas não grandes como ela desejava... seu pai dizia que nem tudo que queremos podemos conseguir. A lápide diante dela não identificava o ano da morte de sua mãe e isso a enfureceu mais ainda. O aparelho Music Player que o diga!
A nevasca aumentou depois da meia noite e meia. Veio de suéter, seu preferido, rosa-choque, porém o frio exigia no mínimo uma jaqueta de couro sobre o suéter. Tinha uma, mas não quis trazer consigo. Morrerei hoje mesmo – opinara antes de sair de casa, - de frio ou de hemorragia. Um pio de coruja veio da parte mais arborizada do parque sepulcral. Sorriu. Pensou que estivesse sozinha. O pio assustaria qualquer um, menos ela. Temer as sombras noturnas e seus agentes sonoros nunca fizera parte de seus verdadeiros temores.
- Desculpe-me, dona coruja. Mas não estou me sentindo desse mundo. E, você vai ficar aí me encarando? Sai fora daqui. Vai-te embora! Suma como eu quero sumir! – seus braços estavam dormentes. Seu rosto mais pálido do que o de costume, ela era muito clara mesmo, mas agora estava horrivelmente translúcida sua pele clara. Seus lábios debaixo daquele batom rosado deveriam estar mais alvo que aquela neve absurda
de fria que caía. Seus lábios se contraíam e sua pele parecia não se importar com a temperatura. Nunca tremia. Não sentia o frio como uma pessoa normal. De fato ela não se sentia normal. Como outras meninas. Meninas normais eram exibidas, oferecidas, faladeiras, fofoqueiras, insinuantes e outros adjetivos que se pareçam com esses. Ela nunca fora assim ou nunca se sentira assim. Amor? Que é isso? Calor e paixão eram palavras impossíveis dentro de um coração que palpitava lentamente e debaixo daquele semblante frio corria apenas o desapego a qualquer coisa que não fosse sua mãe. Por isso escolhera aquele local, onde jazia sua amada mãe. Não lembrava muito sobre ela. Mas tudo parecia vago em sua mente juvenil. O ontem parecia ter ocorrido há mais de cem anos. O hoje só interessava estar ali. O amanhã que se dane! Então a mente da menina se perdia no profundo lago gelado da memória e toda a falta de importância dela e de sua vida se deparava com o fôlego desesperado do único fio que fazia sentido, disse: - Adeus pai, adeus amiga Brigite. – Tentou falar mais alto com a ave: - Coruja tola!
Os flocos silenciosos pareciam soar como notas musicais aos ouvidos da menina. Imaginem um farfalhar de flocos pousando em toda extensão do parque, da cidade, da região e assim por diante. O som do vento assoviava mais forte que algum instrumento de sopro. Dormente. O corpo todo dormente. Seriam seus últimos instantes. O pio da coruja pareceu tenebroso. O corpo esticado sobre o túmulo não reclamava mais do frio. Seus olhos viam nuvens espectrais passando sob um céu negro sem as cintilantes estrelas. Flocos pousavam em sua boca e derretiam. Sua língua lambera vários deles. Seus cabelos louros e levemente cacheados aninhavam uma porção de flocos alvos e lindos. Sentiria a calça toda molhada se o corpo não estivesse dormente. O suéter maravilhoso demorou um pouco mais para ficar encharcado. Seus tênis jeans haviam sido lançados a três metros dali.
Sua meia com desenhos de uma gata branca recebia os flocos singelos e constantes.
Silêncio total. A coruja não piou mais. O vento parou.
Os flocos desapareceram. O céu imenso foi engolido pelo nada. O nada era maior que tudo e se fez presente como nunca. O frio amedrontador sumiu. A noite escafedeu-se. Tudo tragado pelo sono. Um sono. Que sono! Mortal. Desmaio. Somente dela? O sono dela.


II – Sobrevida
O sol apareceu de manhã sem qualquer diferença dos outros dias de inverno. Um astro flamejante distante e preguiçoso permitiria o dia continuar gelado. A manhã possuía um tom azulado sob um céu cinzento onde a bola de fogo parecia com tal timidez. O cheiro de torradas e waffle enchiam a casa. Tropel se ouvia no andar de baixo. As escadas de madeira foram subidas indescritivelmente rápidas, a pensar pelo som específico das passadas pesadas, e sem demora dois toques na porta foram efetuados.
- Coraçãozinho! – falou uma voz potente do lado de fora da porta. - É o último dia de escola da semana e não vai se atrasar meu bem. Vamos lá! Levante-se! Estou terminando seu café. Venha logo – e desceu com menos pressa, ao reparar pelo som descompassado e pelo barulho com que sua bengala golpeava a madeira da escada.
- Já acordei, pai. Logo eu desço! – coçava os olhos.
A menina eliminou o cobertor magnífico e lentamente foi se despindo do pijama abarrotado de desenhos daquela gata branca. Bocejou sonoramente e mirou o banheiro. Antes, passou pelo grande espelho em seu closet e se deteve. Seu rosto angelical era clarinho; olhos cinza-esverdeados; seus cabelos loiros e levemente cacheados; seu corpo era digno de passarela e moda; pernas longas e bem torneadas; seu piercing no umbigo trazia uma pequena cruz incrustada de diamantes diminutos. Seguiu para o boxe e ligou o chuveiro abençoado com água quente. O vapor foi enchendo o ambiente e ela se ensaboava como se aquilo fosse um ritual. A fragrância de seu sabonete lembrava da loja onde o comprou perto do natal no ano que passou a menos de um mês.
Saiu do banheiro e parou novamente sob seu reflexo no espelho. Correu as mãos sobre seus mamilos e massageou despercebidamente seu aparelho virginal. E, como num pensamento relâmpago perdeu seu olhar nos pulsos. Perfeitos. Intactos. Sem cicatriz alguma. Teria sido um sonho bem maluco aquele. Teria sido sim se ela não tivesse corrido para sua escrivaninha e notado o que havia escrito na superfície de lisa do móvel na noite passada.
“Eu quero morrer!” – escrito em garranchos horríveis. Escrito com sua caneta de tinta-gel prateada.
Ignorou o relance de pensamento. Correu para pegar suas roupas de colégio. Seu suéter rosa-choque estava lá no closet, limpo e cheiroso. Seu par de tênis preferido estava ali também. Porém, não encontrou suas meias de gatinha. Ignorou novamente o que pensara. Deveria ter sido um sonho bem maluco àquele.
Respirava com satisfação o ar gelado da manhã. Como poderia ter pensado em não existir mais? Até passar pelo retrato da mãe sobre a mesinha da cabeceira da cama. Seu blackberry se agitou. Mensagem de sua amiga Brigite. Olhou a mensagem e sorriu. Seus dentes lindos eram branquíssimos. Olhou para porta e correu numa disparada ajeitando sua jaqueta depois de passar uma escova ligeira e precisa sobre seus cachos luzentes às luzes do cômodo.
Desceu como uma criança desesperada pelo cereal matinal.
- Bom dia para o melhor pai do mundo! – correu e pulou sobre os braços do seu velho.
O homem tinha o cabelo quase todo grisalho; aparentava uns cinquenta e todos anos; era robusto; rosto austero; mancava de uma perna, por isso a necessidade de uma bengala – sua filha achava que aquilo era charme dele, pois seu pai era forte e corria, manquitolando, mas corria até mais do que ela. A bengala era trabalhada em marfim e no seu topo havia uma cabeça de elefante esculpida magnificamente. A história da bengala teria sido conjunta com o seu acidente quando era fotógrafo de uma revista que
se tratava de viagens selvagens pela África e seus safáris extraordinários. Desde então havia se aposentado, mas ora ou outra pegava sua câmera, filha e mochilas e iam pra lugares estupendos.
- Meu coraçãozinho acordou. Hoje você está mais bonita do que ontem minha querida – e estalou beijocas na bochecha pálida da menina.
- Pai... – fez charminho ao se sentar à mesa, - o senhor se lembra do meu pedido de segunda-feira?
- Já faz quatro dias e não devo estar me lembrando bem – sorriu para ela trazendo um imenso copo.
- O festival de rock que eu te falei – emburrou a menina franzindo a testa. – Em Paris. No mês que vem.
- Ah! Tá.Vai ter show daqueles caras que arrancam cabeças de morcegos com os dentes e estrangulam frangos em cima do palco por pura diversão? – parou e fitou-a com o semblante firme.
- Pode ser que sim. Não posso garantir coisa alguma dessas. Mas, que vai ser demais, isso vai e eu quero muito.
- Sozinha você sabe...
- Vou com minha turma de escola, pai. É nosso último ano antes da faculdade e queria torná-lo memorável.
- Tudo já está sendo memorável, coraçãozinho! No natal estivemos por lá, no verão na Espanha... isso não foi...
- Paizinho lindo. Viajar contigo é sempre maravilhoso, mas eu estarei com os amigos e isso é extremamente diferente.
- Minha pequena cresceu e eu tenho que concordar – fez cara de coitado e pousou sobre a mesa aquele copo enorme.
- Essa coisa nojenta e pegajosa de novo?
- Filha o doutor Charles receitou para curarmos sua anemia. É aquele líquido nojento sim: suco de beterraba roxa com fígado de boi. Bem nutritivo – sorriu ele. – Para mim, isso está ótimo apesar da aparência gosmenta – riu encarando a menina que obediente levava o copo à boca e sem demora começou a engolir.
O olhar do pai ganhou o tom de ternura enquanto a adolescente comprimia os olhos e sorvia aquela nutritiva bebida.
Sonoramente a menina bateu o copo na mesa de mármore – Pronto! É o que o senhor queria? – lambeu os lábios como se tivesse o interesse em não perder uma gota daquilo.
- Boa menina! – sorriu e foi buscar os demais alimentos. – Agora, sim, você pode desfrutar do meu melhor waffle e das minhas torradas com pasta de amendoim.
- Entendi! Primeiro o purgatório e depois o céu, né?
- Onde viu isso? Seu colégio não é católico.
- Amigos, pai. Amigos.
- Minha princesa – chegou depositando as maravilhas da manhã perto dela e afagou os cabelos antes de beijar o alto de sua cabeça.
- Acho que devemos trocar de médico.
- Por que diz isso?
- É que faz tempo que a gente passa nesse doutor Charles e ele parece... como o senhor dizia: disco arranhado; e repete a mesma coisa e a mesma ladainha. Bla, bla, bla.
- Filha, ele cuida da nossa família há anos. É um ótimo médico, mas talvez eu te leve em outro na próxima consulta – coçou o queixo vendo a menina comer com ferocidade.
- Mas... – engoliu, - e o show? O senhor não vai se esquivar, não. Tenta me seduzir com essas gostosuras e vai ficar sem me dizer? – e mordiscou novamente o waffle.
- Vão somente os adolescentes? – encarou-a com sorriso singelo e seus penetrantes olhos cinza.
- Ann vai com a gente. Feliz agora? Quero dizer... melhor agora?
- Uma pessoa com mais de trinta já é um bom começo para fiscalizar suas atividades... acho bem melhor... agora.
- Fisca... o quê meu pai?
- Desculpe-me, filha, mas você sabe que somos apenas nós dois e... eu fico preocupado.
- Parou! Entendi. Não fique triste e eu sei me cuidar muito bem – fitou o velho e, - ainda levo na minha bolsinha o spray de pimenta que o senhor me deu ano passado.
- Então verifique se ele está dentro da data de validade.
- Pai! – aumentou a voz, a menina, com um olhar terno para o seu velho. – Eu irei verificar isso. Não se preocupe.
- A propósito. A Ann Bertozzi ainda continua solteira?
- Pai! – berrou a menina, e respondeu com os olhos alegres – continua sim.
- Qualquer dia eu a convidarei para um chá... será que posso fazer isso?
- Ela é italiana e não sei se gosta de chá como a gente, mas sem problemas. Por que pergunta? O senhor sabe que eu quero te ver feliz meu paizão.
Pouco tempo depois.
- Deixa “eu” voar porque o ônibus deve estar aqui em instantes. Um beijo meu velho – ficou na ponta dos pés e beijou o rosto barbeado do seu pai e ele sorriu. – quando eu sair da escola, irei com a Brigite comprar uns CDs numa loja no centro... eu pego um táxi para voltar. Ok?
- Leva um casaco para chuva minha princesa. Você conhece muito bem nossa Londres – o sol que era tímido no céu havia se escondido de vez. – Traz algum rock clássico pra mim.
- “Podexar”!! Eu trago. Eu te amo, pai – e se metia pelo portão afora lançando a mochila nos ombros.
O pai ficou olhando a menina se perder por entre pedestres que circulavam no bairro indo e vindo. E no ponto não tão perto de sua casa o ônibus parava para meia dúzia de alunos adentrarem. Seus olhos se perdiam no infinito e sua mente nos pensamentos longínquos. Ela se parecia com sua esposa. Tal mãe, tal filha. Lindas, como eram lindas. Por minutos intermináveis lembrou-se de Anna no tempo da faculdade. Faculdade bem diferente das de hoje em dia. Tudo muda com o tempo. Ainda que para sua garotinha parecesse que não!


III - Algo Familiar
Num bairro próximo uma criança chorava até o momento em que sua mãe lhe trouxe uma mamadeira com um leite em boa temperatura. Uma mulher de cabelos ruivos e olhos muito verdes como esmeralda acariciava um bebê chamado Donovan. Seu único filho nesses dez anos de casada. Pela aparência ela não tinha mais do que trinta e cinco anos e seu marido de quarenta acabara de sair para o trabalho. Ele era contador de uma grande indústria farmacêutica e cobria a esposa de perfumes, hidratantes, cremes, entre outras novidades da fábrica de cosméticos.
A mulher deitou o bebê após ter dado o leite da criança e foi para a sala mexer em alguns papéis, aqueles que vão se aglomerando até ao ponto de serem eliminados de nossas gavetas. Seus ouvidos se aguçaram de repente e ela saltou para trás do sofá cor de vinho.
- Alguém está aí? – voltou-se para a porta que dava para os fundos da casa.
O silêncio engoliu seu ouvido afinado num instante e pareceu ouvir dentro de sua imensa casa até onde uma classe média podia conseguir; ponteiros trabalhando nos relógios da sala e dos quartos; o congelador; o aquecedor; e o ressonar do bebê. Nada demais. Deve ter sido um pássaro que teria pousado no peitoril da varanda dos fundos. Nada além do normal. Pensava e se dirigia aos seus papéis mofos e desbotados. Havia a casa para ser arrumada e isso seria coisa rápida, mais rápida que mexer com papéis vencidos. Seu marido iria chegar somente depois das seis da tarde e teria tempo de sobra para ir ao mercado e comprar algo diferente para o jantar.
Robert era muito compreensivo e a amava muito. Admirava a dedicação da esposa desde que tiveram o pequeno Donovan. Robert tivera uma promoção há alguns dias e foram celebrar com os poucos amigos que tinham: Juliet, uma mulher de negócios duma empresa própria de papel cartão e decorações em geral; Sandra, uma mãe solteira, dedicada no ramo de joias e relógios, e seu filho de oito anos se chamava Patrick; Arnold, solteiro e dono de uma livraria e antiquário; Pierre, motorista de táxi e casado com Brenda que era uma ótima estilista.
Um ruído diferente do quarto da criança surgiu quase que imperceptível. Talvez para um ouvido comum o fosse, mas não para aquela mãe tão dedicada. Correu com todo ímpeto e explosão para o quarto do filho e urrou ao ver o menino nos braços de um homem, um ser, que reconheceu de imediato.
- Barak? – vociferou a mulher. – Que faz aqui? Largue meu filho agora mesmo!!
- Como vai a vidinha de mortal, minha doce rainha? – falou com um desdém e falseou uma reverência inclinando sobre o berço. – Durma bem querido... alteza: príncipe Donovan – um descarado desdém.
- Você sabe que não sou mortal e posso arrancar sua cabeça antes de você piscar seus olhos, monarca – vociferou encarando o ser depositando o bebê no berço.
- Não é, mas tem vivido como tal. Como disfarçou estar grávida pelos oito meses...
- Nove!
- Não interessa as coisas de mortal para mim. Você sabe disso! – pausou e se aproximou da mulher. – Mas como enganou o seu círculo de amizade com a falsa gravidez, se todo útero de vampira é seco, e não pode engravidar... vocês, fêmeas nem menstruam – abriu um sorriso sarcástico.
- Nem todas nós somos assim, seu idiota... – foi até a criança.
- Ah! Você quer dizer que ainda há matusaléns no nosso meio. Porque até onde eu sei apenas o útero de uma matusalém pôde ovular.
- Não sei se ainda há, matusaléns, mas isso não me interessa. Essa é a vida que eu escolhi... entre os mortais e sendo visualmente um deles.
- Isso que eu chamo de se rebaixar.
- Cale sua maldita boca! – ergueu a voz e o garotinho choramingou.
- Que belezinha! É a cara da mãe – riu largamente e caminhou para a janela. – Mas, como se disfarçou de grávida?
- Conheço um bruxo e ele me ajudou com uma poção que estufou minha barriga pelo tempo necessário...
- Boa... daí em secreto foi a algum lugar e adotou o bebê. Maneira bem humana e age como tal – demonstrou o mesmo desdém.
- Mas isso não te interessa em nada, não é? Então, por que está aqui me importunando?
- Viva como quiser, majestade. Eu quero apenas uma coisa...
Um toque na campainha soou em desespero.
- Não se mexa... eu vou atender.
- O cheiro dela é bem agradável – ficou anelando o ar voltando o rosto para o lado da porta.
- Minha amiga... nunca se meta com os meus amigos! Fui clara?
- Vai lá querida e atenda logo. Humanos para mim só servem para uma coisa... – deu uma pausa e terminou assim que ela foi até a porta, - prazer.
O vampiro sentou-se perto de algumas caixas com brinquedos e bolas. E analisava um chocalho bem diferente. Ele não conseguiu pegar sentindo uma misteriosa força que o impelia.
- A rainha pensou em tudo mesmo. E eu tenho que conhecer esse tal bruxo. Deve ser algum trabalho dele neste chocalho. Com toda a certeza.
Neste ínterim a mulher entra e o adverte num olhar.
- Nem toquei!
- Como se pudesse – deu de ombros e depositou o menino de volta ao berço e colocou o chocalho na mãozinha dele.
- Mas Tânia... minha visita é em prol da nossa vida perpétua... nosso império esquecido e nossos castelos eternos...
- Cala a boca. Século novo. Milênio novo. Então, tente viver!!
- Sabe que o que temos não é vida e sim uma semi-vida porque somos semi-mortos... seu sangue não reproduz o que um sangue de um mortal reproduz, por isso vampiras não menstruam minha rainha... você sabe melhor do que eu disso. E a única forma de possuirmos filhos é mordendo alguém e dar a ele um pouco do nosso sangue maldito. E nem poderíamos andar de dia se não fosse as obras mágicas que alguns bruxos antigos nos presentearam...
Tânia fitou o colar que Barak escondia atrás de sua jaqueta jeans.
- ... objetos como o do seu filho que nos afastam são obras de bruxos, não são?
- Exato. Conheço um que vive como um humano normal, aqui, também.
- Preciso conhecê-lo.
- Por que, seu amuleto para andar de dia está falhando?
- Digamos que sim. Mas, seu dote feiticeiro pode descobrir uma coisa para mim.
- Posso saber? Eu exijo saber!
- Exigia. Quando você era a nossa rainha você podia exigir qualquer coisa, e antes de se juntar a eles eu te falaria com prazer.
- Então descubra por si só. Eu não falarei mais nada. Saia de minha casa, por favor!
- Ficou educada com as etiquetas humanas... isso é pra rir minha cara. Responda-me somente mais uma perguntinha ou duas?
- Se prometer sair depois delas.
- Juro.
- Manda.
- Como disfarçará perante o envelhecimento de seu marido e de seu filho, e você – analisou o corpo escultural da mulher, - e você sempre a mesma bonitona de trinta e poucos anos?
- Tenho uns segredinhos guardados para o tempo necessário. Poções e amuletos.
- Quantos maridos você já teve, querida...?
- Não é da sua conta. Eu amo o Robert e você vai dando o fora daqui.
- Já não está mais aqui quem falou – e saiu dando risada alta e olhava de viés para o rosto firme da vampira e notou que os olhos dela mudaram do verde esmeralda para brasas vermelhas incandescentes.
Tânia pegou o bebê e embalou numa cantiga antiga numa língua desconhecida e o menino sorria sacudindo o chocalho cheio de areia. Os olhos esmeraldas da mulher foram assumindo um ar meigo e terno enquanto cantava um refrão comprido e cheio de pausas.
A vampira deitou a criança depois de minutos e foi para a sala remexer os papéis. Não ficara sabendo corretamente do que se tratava a visita do vampiro. Mas a obsessão por um bruxo levantou algumas perguntas que passaria a tarde toda a refletir. Queria apenas uma poção? Descobrira algum artefato antigo que só os bruxos conheceriam a funcionalidade e o poder? Queria ele dominar alguma arte bruxa? Queria alguma orientação sobre o saber milenar dos bruxos ou de outros seres antigos?
Rasgou muitos papéis e amassou a outros com uma destreza digna de vampiro e foi para a cozinha analisar o que tinha para o almoço e o que estava precisava para fazer o jantar de logo mais à noite. Olhou dentro da geladeira e pegou um imenso bife. Pegou uma taça e encheu de um líquido vermelhíssimo.
Sem usar tempero algum, fatiava o bife e comia com muita apreciação. Bebeu aquela bebida espessa e fitou por um instante a garrafa. Depois de almoçar, escondeu a garrafa debaixo de uma pedra solta no chão da cozinha debaixo da pia. E ocultou com outras vasilhas aquela pedra.
Lembrou-se do tempo das crueldades que praticara contra aldeões e a devastação contra vilarejos. Sacudiu a cabeça, pois não queria pensar mais aquelas coisas horríveis que praticava outrora num passado remoto.
E naquele tempo ela era conhecida como a Treva em pessoa e a chamavam de Rainha SaTânia.


IV – Loja de Discos
O sinal que anuncia o fim da aula soou e o pandemônio se armou enquanto os alunos se agitavam para sair de suas sofríveis aulas. Mais horríveis ainda para quem odeia algum tipo de matéria em que tem de prestar atenção por mais de quatro horas um professor falando e mostrando. A correria se iniciava na boca do corredor e saiam disparados para seus ônibus. Os primeiros escolheriam o melhor lugar para se sentarem. Coordenadores e inspetores tentavam organizar a multidão de crianças que escapavam por todos os lados do pátio. Era mais de meio dia e o sol ainda cultivava aquela timidez típica de inverno. Se esfriasse mais um pouco iria nevar e isso era certo. Se aumentasse a brisa úmida poderia chover. Alguns alunos estavam preparados para o que viesse. Capas e guarda-chuvas passavam esfregando-se nos narizes dos adultos que esperavam os alunos do lado de fora da escola.
Foi uma loucura conseguirem escapar da torrente de alunos que desciam para o portão por quatro escadarias situadas de frente para o portão que despejaria a multidão nas ruas geladas de Londres. Mas conseguiram. Amber e Brigite abriram um sorriso quando se dirigiram para o lado esquerdo até que atravessaram para a outra calçada. As duas não paravam por um instante de falarem coisas peculiares à escola, amigos, professores e garotos... Brigite insistia em dizer que Freddy era mais bonito que Dyllan. E nisso foram caminho afora até quando entraram na rua da loja das músicas. As luzes do painel piscavam descompassadas e um velho de barbas compridas e cinza segurou a porta para as meninas entrarem. Elas agradeceram e o senhor sorriu amistosamente.
- Amiga! Eu não me lembrava que a loja era enorme – disse Amber ao se deparar com um mega-poster de uma banda muito popular. Seu pai queria disco desses senhores do rock. Imaginou que o pedido do pai seria a coisa mais fácil de conseguir de toda sua vida... isto é, se você está no lugar certo. Sorriu disfarçadamente.
- Eles devem ter ampliado isso tudo. Não estou identificando a prateleira de Heavy Metal, Death, Thrash, Gothic...
- Eles jogam nosso som pelos cantos como as locadoras de filmes fazem com os pornôs – concluiu a fala da amiga.
- Você ainda ouve os sons góticos?
- Não muito. Estou procurando alguma coisa que sove os instrumentos sem piedade – falou Amber.
- Essa é minha garota! – olhou para um canto e, - acho que é por ali, Amb.
Algo fez os pensamentos de Amber sobrevoar a loja e pousar o olhar num homem no fim do corredor. O homem de barba mal feita analisava o encarte do CD de uma banda pop e elevou a sobrancelha ao ser notado pela menina e deu de disfarçar pigarreando e se virando para o lado das trilhas sonoras de filmes românticos. O homem trajava um sobretudo esfarrapado de velho e tinha uma boina de cor crua.
Amber voltou para a amiga que falava algo que ela não conseguiu pegar a ideia.
- ... eles deram de parar, mas o pouco de grana que entrou fez a diferença e só assim resolveram voltar com a banda e prosseguir. Quando a gente vê que tá perdendo algo, aí, encaramos a realidade.
- Hm! Desculpe-me a distração.
- Besteira. É sobre uma banda idiota. Nem dado eu levo essa bosta pra casa.
- Realidade... você disse?
- Parece que sim – e vasculhava outra fileira de discos.
- Pareceu – ficou muda por segundos.
- Ah! Amiga eu tenho que te contar...
Quebrou o silêncio e fitou os olhos cinza de Amber.
- Conta então e não enrola.
- Lembra da nossa conversa sobre a primeira vez?
- Acho que sim... – acanhou-se encolhendo os ombros como se não lembrasse realmente.
- Pois é. Eu pensei que seria na faculdade e não esperei por tal...
- Daí?
- Billy.
- O cara mais pilantra da escola. Você sabe que ele deu fora em muitas meninas gatas e patricinhas da escola?
- Claro que ele é um idiota. Mas aquela festa que você não quis me acompanhar eu bebi umas batidas com vodka e fiquei muito louca. Ele me acompanhou até minha casa, mas meus pais nunca estão quando eu preciso deles e o chamei para entre e a merda foi feita.
- Que vaca?!
- Eu sei, mas tem o pior.
- O que poderia ser? – segurava um Thrash Metal.
- Achei que tinha ficado grávida porque minha menstruação atrasou.
- Puta merda Brigite, - derrubou o CD e o barulho ecoou menos alto que seu espanto, - gravidez?
- Suspeitei... mas graças aos céus foi um alarme falso. Imagina ficar grávida de um idiota como aquele.
- Nem sonhe! – a palavra menstruação tentou se firmar em sua mente e não quis perguntar o que era para não parecer uma idiota. Pois, se sua amiga mencionou é porque é um assunto normal de meninas. E, talvez fosse uma boa pergunta a fazer para o seu médico, o doutor Charles.
- Ainda bem que vou continuar usando meus absorventes – sorriu Brigite recolhendo os cacos do plástico do CD, - o interno. – Levantou-se e sorriu entregando os pedaços para a amiga que derrubara. – Se você não trouxe grana para pagar pode deixar comigo.
- Não. Eu trouxe sim. E, já ia levá-lo mesmo – tentou sorrir, mas torceu o nariz para identificar o odor que se aproximava delas.
- Ainda bem que quebrou apenas a capa – Brigite ressaltou e voltou a escolher os seus na fileira dos Thrash.
O cheiro foi ficando próximo e não parecia vir de nenhum canto, mas do lado delas. Alguém deixara um cão entrar na loja? Amber vasculhou os pés da prateleira. Nada e ergueu os olhos e deu um pulo para trás.
- Senhorita Knight?
- S-s-s-sim. Ela mesma. Eu te conheço? Ou, como me conhece?
Brigite retesou o corpo e ajeitou as alças da mochila. Parecia se preparar para pegar alguma coisa pontiaguda de uma bolsinha externa.
- Na verdade eu conheço seu pai, o velho bruxo Caleb – ameaçou um riso sob a barba mal feita.
- Do que você chamou meu pai?
- Desculpe-me senhorita... tempos de colégio e faculdade... você sabe... os hábitos – fitou a menina e se afastou das duas que nutriam uma cara de assustadas e pouco amistosas.
- Velhos hábitos... creio que sim – Amber fixou os olhos no homem e não afastou um centímetro sequer.
- Diga a meu velho amigo que eu preciso vê-lo o mais rápido possível, porque... – ia dar a falar, mas resolveu se calar. Talvez falaria coisas que iam alem da compreensão
das garotas. Sorte que meu faro é aguçado e alguma coisa na mochila da menina identifica as velhas poções de Caleb.
- Onde e quem eu digo que o procura? ... – encarou com simpatia os olhos tristes do homem e teve pena de vê-lo usar aquelas roupas esfarrapadas. Suas luvas de lã estavam muito desfiadas e exibiam alguns dedos com unhas grandes e sujas.
- Diga que o velho Lobo quer se encontrar com ele...
- Lobo? – Brigite interveio.
- Faculdade... meninas... velhos apelidos – ensaiou uma risada que terminou num pigarreado horrível.
- Mas onde?
- Na Livraria e Antiquário da rua detrás – apontou com o indicador o lado, - lá tem um bom café. Cinco horas da tarde. Ótimo café, mesmo! Com certeza não é coado em meias – abriu um sorriso e foi saindo.
As meninas viram o homem desaparecer pela porta e o cheiro sumiu com ele.
- Confia nele?
- Não, mas ele conhece meu pai.
- Vamos logo porque eu estou com uma puta fome – Brigite agarrou dois CDs.
- Vai pagando os seus que eu pegarei o “clássico” para o meu pai.
O lugar foi enchendo de gente quando as garotas chegaram a pagar e davam de sair pela porta e deram de cara outra vez com o frio absurdo que fazia. A brisa era proporcional a mais uma noite de neve e bem fria por sinal. As ruas tinham poucos veículos e além das duas em algumas ruas não passava ninguém.
Vira uma lanchonete e entraram urrando de fome. Sem demora foi trazido o pedido das duas. Lanches com dois hambúrgueres, muito queijo derretido e batatas fritas. Um copo de meio litro de refrigerante de cola para acompanhar.
Pagaram cada uma com seu cartão. Saíram. Estenderam a mão e um táxi que passava devagar parou de imediato. A casa de Brigite seria a primeira parada e depois que ela desceu, Amber pensava em duas palavras: menstruação e lobo.


V - O Som Doce das Notas
A noite entrava com um assovio terrivelmente agudo por entre as árvores e nas frestas de algumas casas e portões de tábua. O céu fechado dava indício de neve. Poucos carros circulavam mesmo na parte mais movimentada da cidade onde ficava um teatro de arquitetura medieval, embora tenha sofrido reformas alguns detalhes ainda eram conservados de maneira íntegra.
As portas imensas do Castelo, como era chamado, estavam trancadas com uma enorme tranca e cadeado. Cartazes se desfaziam na parede. O último evento ali teria sido um concerto clássico com cordas há mais de dez meses.
Nesse momento um som fluía de dentro da nave de pedras. Um som doce melodiado em piano de cauda. Era magnífico... o piano mecânico com suas cordas afinadíssimas fazia qualquer um chorar numa melodia triste e ora ou outra mudava para acordes tensos que atacavam os ouvidos. Pouca gente transitava do lado de fora da imensa parede gelada e o ar úmido em extremo trouxe os primeiros flocos de neve da noite que adentrava depois de um dia claro e acinzentado.
O Castelo fora palco de inúmeros shows de rock na década de oitenta e os nostálgicos vinham beber conhaque e tocara violões em frente à porta em dias que faziam menos frio. Na torre do Castelo uma janela entreaberta deixava adentrar os alvos flocos e soar o vento gelado e comprido até cair escadarias abaixo.
Freneticamente o som do piano foi mudando de músicas reflexivas para mais complexas e exageradas em notas agudas. Algo que irritaria o ouvido mais apurado ou sensível como de um cão.
- Dá pra você parar com esse som! – gritou sob a penumbra de colunas que se alinhavam no interior da nave.
- Quem está aí? – disse a mulher que tocava o piano e se pusera de pé fantasticamente lançando a banqueta a três jardas dali. Seu semblante austero, porém pálido, ganhou um ar tenebroso e seus olhos se abrasaram focando o lado mais escuro do interior do grande teatro.
O eco repetiu os aplausos que de forma fantasma se espalhava por todos os cantos do lugar e os dentes caninos da mulher se ouriçaram.
- Não brinque comigo... seu „sei-lá-quem.
- Calminha aí minha flor. Você me conhece de muito tempo – tentou deixar a voz com mais imponência – e como pode ter se esquecido da minha voz.
Relances de memórias ganharam a mente da pianista e ela sentou sobre as teclas fazendo-as ecoarem como um acorde espectral dentro de uma tumba.
- Não pertenço mais ao mundo ensanguentado! – gritou e curvou a cabeça deixando as presas recuar sob os magníficos lábios contornados por brilho rubi que cintilava.
- O que tem acontecido com os de nossa raça, irmã?
- Não pode ser você? Rômulo? Rômulo Crow?
- O Primeiro Sangue voltou minha querida irmã. Para retomar a rédeas da Sociedade Noturna que tem se desfeita com o passar do tempo...
- Hoje os tempos são outros... não há motivos para sairmos por aí fazendo as mesmas barbáries que costumavam há mais de cem anos.
- Engana-se! – a voz surgia de vários lados obscuros da câmara teatral.
- Nunca teve um porquê exato para as atrocidades que nossa raça cometia. Éramos simplesmente movido pela fome e irracionais para administrar nossa fúria emboscando mortais e sugando-lhes o líquido vital. Por que não nos contentávamos com o sangue de gazelas e veados, são ótimos... e...
- Não sei quem mudou a porcaria de mente de vocês, mas não estou gostando nada do que estou presenciando – veio caminhando lentamente desde o fundo do teatro. Era um homem alto; semblante saudável e jovial; presas protuberantes; olhos abrasados; cabelo longo e esvoaçante ao vento espectral que o rodeava.
- Estamos muito bem e muitos vampiros que têm recaídas se contentam em roubar os bancos de sangue de hospitais. Não há necessidade em matar pessoas.
- Não se trata de matar... querida – aproximou-se velozmente do pescoço da mulher, - Trata-se de vingarmos o nosso primeiro Pai.
- Sophia não está mais entre nós para nos orientar nesta investida, Rômulo.
- Quem precisa dela. Você e eu somos do Primeiro Sangue e temos tanto poder como ela...
- Mas a sabedoria dela...
- Cale-se Desdemona!
- Sei que você sofreu demais e que nada que eu diga vai surtir efeito para uma reflexão... mas temo uma nova Era das Trevas...
- Seu irmão Simon morreu e isso não deve te fazer parar ou desistir do futuro brilhante que temos neste novo milênio, minha querida... – beijou e raspou suas presas sobre o pescoço de Desdemona fazendo escoriações minarem sangue.
- Sophia se foi... eu já te disse – ela foi se entregando aos braços do vampiro como uma marionete que desaba quando se corta os fios condutores de seus movimentos.
- Ela era uma Matusalém e sei que era o único útero fértil...
- Mas vocês... - (vampiros) olhou por um instante nos olhos profundos e mórbidos de Rômulo, - vocês machos são estéreis, sendo Matusalém ou do Primeiro Sangue.
Ele rosnou e mordicou o queixo da mulher.
- Sim. Claro que não possuímos sementes. Mas aquela vadia deve ter tido um coito com algum bruxo, homem ou quem sabe um desprezível lobisomem.
- Vampiro e lobisomem seria uma coisa horrível de aturar... nem quero pensar nesta besteira que acabou de me dizer.
- A filha de Sophia deve morrer – alterou a voz o vampiro depois de recolher a imensa língua bifurcada que passeava pelo pescoço de Desdemona.
- Que perigo uma garotinha pode nos oferecer?
- Fora entregar ao mundo nossos pontos de fraquezas?
- Muitos deles as pessoas já conhecem: luz do dia; objetos pontiagudos de madeira no coração; detestamos alho; e bla, bla, bla.
- E, muitos ainda pensam que corremos de crucifixos – sorriu Rômulo puxando do pescoço da vampira um cordão que trazia uma cruz de cobre com cinco pedras de diamante: uma no centro e uma em cada extremidade da cruz.
- É verdade que dessa lenda muitos de nossa raça foram tão supersticiosos ao ponto de sentirem-se mal ao se deparar com uma – ria belamente com os lábios cintilando à pouca luz do ambiente. Avançou aos lábios do vampiro e lhe beijou com fúria.
Os dois se entrelaçaram como serpentes pelo palco aos pés do piano. As peças de roupa de Desdemona pareciam flutuar ao redor deles devido ao vento espectral que circulava por ali. Escoriações faziam gotículas de sangue saírem de seu corpo escultural. Devido ao poder de regeneração logo os arranhões e riscos se fechavam e as listas que se desenhavam em vermelho era do sangue que escorria ora ou outra. Os corpos sentiam uma sede aterrorizadora e parecia que a fome não cessaria nem se um devorasse o outro. Rômulo urrava e Desdemona respondia com guinchos agudos.
Começava a noite e as trevas tomavam conta de tudo acompanhada pela nevasca incessante que espreitava todos os lares. Assombros noturnos eram seguidos de uivos de vento, ladrar de cães, pio de corujas e motor de automóveis.
- Você precisa conhecer a nossa Plêiade – jogou os cabelos castanhos claros e sedosos para trás e encarou o vampiro.
- Duvido que ela seja tão boa quanto ao grupo de fuzileiros que quero formar – em tom de desdém tomou o braço da vampira e mordeu com muito prazer. – Desculpe-me? Sei que está fraca porque abandonara o néctar da vida humana por plasmas de animais quadrúpedes – acariciou a mão da mulher e beijou cada um de seus dedos. – Anorexia vampírica?! Essa é boa. De fato esse é um novo milênio. Depressão. Estresse. Que mais eu perdi?
- Quem sabe o cavalheirismo de outrora!? – a vampira se levantou e num piscar de olhos vestiu suas roupas de baixo e se enfiou no vestido azul-bebê que havia lançado de lado. Esbravejando foi até a parede e pegou a banqueta, trazendo-a para perto do piano. Seus pés pareciam nem tocar o assoalho de madeira encerada. Parecia um fantasma deslizando sobre o piso.
- Perdoe-me querida. É que fiquei muito tempo fora e perdi muitas coisas. Você bem que podia ter me procurado e me trazido de volta a respiração – encarou a mulher que se sentara na banqueta e dobrara a cabeça fazendo seus cabelos cobrirem seus olhos faiscantes.
- Digamos que você não merecia minha clemência, meu carisma, que os mortais chamam de amor.
- Agora pouco você se entregou de maneira bem diferente das atitudes de suas palavras.
- Nostalgia, talvez nostalgia. Temos muita coisa guardada em nossa cabeça e lembrança é uma de nossas maldições. Lembranças boas, ruins e outras desprezíveis.
- Claro que temos coisas demais na cabeça: são séculos, milênios de ódio, caçadas, fome, perseguição, terror, amor, paixão, histórias que não tiveram um fim e nem terão.
- Foi bom te ver, mas como eu disse, minha vida está diferente e não me alimentarei de sangue de pessoas novamente. Não importa se viverei tão fraca como uma velha carcomida. Muitos normais não chegam aos cem anos e devo me entregar ao capricho da idade igualando-me aos mortais – apesar da minha aparência estar pouco próximo dos quarenta anos, tenho mais de dois milênios.
- Essa é nova para mim e uma grande anedota para eu contar para as criancinhas: uma vampira velha cheia de rugas. Bruxas tem rugas e até verrugas, mas uma vampira com rugas seria coisa nova para mim. Daqui a pouco estaremos comprando bolsas de sangue pela internet ou até encomendando uma boneca de silicone que venha com sangue humano dentro para nossos vampiros mais tímidos praticarem a mordedura. Essa foi boa, você deve admitir que eu deva correr para patentear essa grande ideia que tive, – abriu um sorriso sarcástico e mirou os olhos obtusos da vampira.
- Você é um grande imbecil!
- Essa era está demais. Muita informação querida. E, por isso eu vou encontrar o fruto do ventre de nossa primeira Matusalém. A vampira que envelhece... isso mesmo! Como eu sou genial. Se nasceu uma criança do ventre de Sophia,... não existe vampiros crianças, ou melhor, pode até haver, mas serão crianças eternamente... agora, uma criança vampira que vai se tornando adolescente e adulta posteriormente vai ser a primeira vez que acontece – ficou conversando com os botões do paletó e abotoava lentamente dando as costas para a mulher que começava a dedilhar um folclore francês.
- O que sua maldita mente está raciocinando? – sem parar com a música.
- Dedique-se a sua musica querida. Preciso de um cyber-café aberto agora e a internet me levará a essa criança notável que: deve ter se destacado em várias escolas; repetindo séries por séculos mesmo sendo a melhor da turma; a mais dedicada, atlética e forte nas competições e esportes escolares; e...
- Idiota – parou a música e se pôs na frente do vampiro de maneira assustadora, - a pessoa que procura deve ter mudado de endereço e nome por muitas gerações...
- Sei que você esta querendo mais um pouco disso... – cravou os dentes no pescoço dela e ela desabou em seus braços, - Séculos sem isso... e sem a Verdadeira Bebida te fizeram uma fraca minha querida. Um dos modos de nos matar – devo ou não devo, - é eliminar até a última gota de sangue de um ser como nós. Talvez é o que você procura minha adorável Desdemona. Eu te farei esse favor. Sugarei você até o final – abocanhou novamente o pescoço da vampira.
O salão enorme ficou apertado de repente e o vampiro largou a mulher no chão. Seu coração acelerava e descompassava. Seus olhos viam sombras se mexendo e algumas lâmpadas se apagando. O piano começou a voar de maneira fantástica e as cortinas ganhavam o formato de pessoas e repetiam nomes de vítimas antigas. Um castiçal se acendeu na frente do vampiro e ele atordoado cambaleava de um lado para o outro. As cortinas se aproximaram dele e o vampiro socava cada uma delas com ferocidade. Segundos que nunca terminavam e minutos que preenchiam o âmbito gelado do teatro. Uma bruma branca e fantasmagórica surgiu por toda extensão da nave de pedra. Uivos de lobos encheram os ouvidos do vampiro que se ajoelhava ao lado do corpo desmaiado de Desdemona.
De repente da coxia saiu uma figura alta, levemente arcada: um homem de semblante frio; queixo fino e nariz pontudo; olhos ausentes de alegria; lábios finos; orelhas pequenas; cabelos ensebados e juntados para trás, não muito longos, amarrados com uma fita roxa; olhos amarelos como fogueiras; muitíssimo magro.
O sujeito chegou perto e recolheu a mulher lançando-a em seu ombro esquerdo e pulou para as escadas que levavam à torre mais alta, e desapareceram.
A bruma aos poucos foi se dissipando e o vampiro atormentado voltava ao juízo normal livrando-se das visões de fantasmas e sons de lobos. Ajeitou o paletó e começou a gargalhar como uma hiena. Risada irritante e levava a mão ao rosto.
- Babel! Babel, seu desgraçado! – totalmente dissipado as brumas ele se pôs de pé e caminhou lentamente para a escadaria.
De cima da torre ele analisou as possibilidades de encontrar a criança gerada pela Matusalém e riu da sua própria capa que momentos atrás havia se transformado num imenso morcego. Os flocos brancos pousavam em sua face cinzenta e ele se satisfazia com a brisa gelada que lhe acariciava o rosto e pensava – isso é melhor que as mãos de Desdemona me acariciando a face.


VI - Médico da Família
O dia amanhecia depois de uma noite absurdamente gelada. Um nevoeiro sinistro teimava em não se dispersar de imediato.
Amber pulou da cama e arrumava a banheira enchendo-a com água e lançando sais de banho perfumado. Seu corpo frio sentiu um arrepio ao tocar a superfície quente da água e o vapor inundou o lugar embaçando vidros e espelhos. Amarrara uma toalha roxa no cabelo e deitava sobre a banheira e pensava nas coisas da vida e no que tinha conversado com a amiga no dia anterior. O vapor passeava desenhando figuras no ar e ela os soprava como um ato encantado. Seus dezessete anos estava para dar lugar a sua maioridade e não via a hora de seu dia chegar. Ouviu passos mancos pela escada.
- Filha! O café está na mesa – deu apenas uma batida na porta e se virou para descer.
- Eu saio em dois minutos – foi se levantando lentamente, relutando a deixar o líquido quente longe de sua derme. A fragrância era espetacular. Seu próprio pai era quem comprava os elementos e misturava no sabão. Pensava ela, que ele daria um ótimo químico ou farmacêutico.
Seus pequenos pés encontraram o chão frio e ela deu um gritinho e depois um salto. Seu salto foi coisa de atleta. Ela foi parar perto da cama onde um par de pantufas de lebre a esperava para ser calçada. Seus olhos fugiram das órbitas e ela tombou no travesseiro de pena de ganso e deu de cochilar subitamente. Palavras eram sussurradas em seu ouvido neste devaneio.
“Cuidado com eles querida. Eles querem aquilo que sua mãe lhe proporcionou.”
Minutos depois, vestida e arrumada para sair estava a menina tomando seu café da manhã e bebendo aquela vitamina de gosto horrível que seu pai lhe preparava toda manhã.
- Filha... você não se lembra de mais nenhuma palavra? – olhos cuidadosos de seu pai a fitavam.
- Foram apenas estas que eu te contei, papai.
Um silêncio cresceu entre os dois e ele coçava a pequena barbicha grisalha pensando nas palavras que sua filha ouvira de alguém. Voz masculina, afirmara ela. Assentou-se numa banqueta distante da mesa e alisava sua bengala de marfim matutando coisas estranhas e que não deveriam ser pronunciadas na presença da menina.
- O que é que tá te preocupando meu pai? – ela se levantou e tomou o agasalho que estava enroscado num prego no batente da porta e vestiu.
- Coisas malucas filha. Não é nada que você se preocupe. Apenas coisas de velho.
- O senhor está doente?
- Não. Não é isso não – antes fosse, guardou na cabeça.
- Quer ouvir uma coisa maluca...
- Hã!?
- Um cara de roupas surradas disse te conhecer e queria encontrar o senhor na Livraria e Antiquários do centro pelas cinco da tarde.
- Disse quem era?
- Ele te chamou de bruxo... e disse que era o velho lobo quem o procura...
O semblante de Caleb tornou-se estranho como nunca Amber tinha visto.
- É algum conhecido do senhor e da mamãe lá da América?
- Sim. Cammo. Era um... velho conhecido nosso da Nova Inglaterra, filho de pai inglês e mãe romena, e, deve ter voltado para cá assim como sua mãe e eu o fizemos – falava com o tom de quem fala de algo muitíssimo distante.
- Outra coisa...
- Sobre o velho lobo?
- Não. Sobre mim.
- Diga linda.
- Por que eu não mênstruo como as outras garotas da mesma idade ou até mais novas que eu?
Os olhos de Caleb se ejetaram no nada ao final daquela pergunta. Ele coçou freneticamente o queixo e pulou da banqueta como se tivesse rejuvenescido uns trinta anos.
- Justamente por isso que eu marco o doutor Charles para você... e hoje a gente pode passar por lá antes de qualquer coisa.
- Tudo bem. Vou pegar meu celular e te vejo no carro em menos de um minuto.
Caleb andou de um lado para o outro observando os ponteiros de seu relógio de pulso como se estivesse dentro de uma redoma onde não houvesse escapatória.
A menina desceu graciosamente as escadas e notou que seu pai havia deixado a bengala perto da banqueta. Ela a tomou e saiu para a garagem com ela. O carro roncava na garagem e a menina se apressou. No meio do trajeto foi mandando mensagens de texto para sua amiga. Seu dedo ligeiro acabou uma frase de cinquenta caracteres usando-se de várias abreviações e símbolos para uma comunicação rápida.
Entrou no carro e jogou a bengala no banco traseiro e seu pai sorriu. O carro disparou pela avenida até ganhar um pavimento melhor e uma rua mais fluente. Bueiros expeliam vapores e traços de pneus desenhavam o caminho nas ruas menos trafegadas.
Pararam em frente a um prédio velho com placas comerciais. Havia de tudo um pouco naquele prédio: boliche; bares; lojas de conveniências; consultórios odontológicos; clínicas médicas; e salão de beleza.
Na parte onde havia clínicas, uma das salas dizia pertencer ao Doutor Charles Babel. Caleb tocou a campainha e a porta nada.
- Ele nunca demorou pra atender, papai.
- Um dia teríamos que esperar um pouco mais – riu-se da situação, - e esse dia chegou.
A porta destravou-se depois de alguns minutos.
- Olha se não é minha adorável princesa Amber – o doutor magricela veio ajeitando os óculos no nariz fino e abrindo um sorriso na cara chupada que tinha. Ele era alto e um pouco curvado. Deu a mão para a menina e ela se sentou na cadeira dele, era muito confortável. O médico perguntou encarando o pai: - Como andam as coisas com nossa pequena?
- Sabe como é adolescentes... ela está preocupada com o ciclo dela... – fingiu um acanhamento para falar, - menstruação.
- Querida... – olhou para a menina, - posso levar um particular com o seu pai antes de te atender... você sabe? Burocracia? Novo valor de consultas? Somos amigos a tanto tempo e acho chato falar disso, mas é necessário diante de tantos impostos e coisas do tipo.
- Fiquem a vontade enquanto eu ouço um som no meu aparelho – a menina embutiu um fone de ouvido e espichou os pés para cima da mesa do doutor. – Esse papo de grana é só com ele mesmo – e sorriu.
Entraram numa saleta e fecharam a porta. A saleta tinha uma luz fraca e vários livros pendiam para fora das prateleiras ao ponto de caírem a qualquer sopro. Ainda se via ali: uma mesinha com duas gavetas; um telefone antigo; um abajur vermelho-sangue; garrafas de vodka; e objetos cirúrgicos dentro de uma câmara de esterilização.
- Você sabe que está sendo mais do que difícil. Deveras arriscado o que temos feito à mente de sua filha. Ela está ficando forte cada vez mais e ficar apagando coisas a cada instante que ela lembra ou questiona uma situação pode surtir efeitos colaterais irreparáveis. Efeitos que seus remédios e minhas ações psicológicas não darão conta de reparar.
- Você quer dizer que devo trabalhar com a verdade sobre ela ser diferente das amigas de colégio e de tudo o mais.
- Sinto dizer que sim meu velho amigo. Sua filha deve saber que é uma híbrida. Parte vampira e parte bruxa.
- Venho aqui buscar ajuda e você quer acabar com nossa vida normal – elevou o tom da voz e do outro lado da parede a menina ouvia um Death Metal muito alto no seu mídia player do celular.
- Que vida normal, Caleb? – Pausou e, - ficar mudando de cidade em cidade, país e estados a cada cinco ou dez anos não é a solução e nunca foi uma vida normal. Você apenas imita a vida dos meros mortais...
- Mas somos mortais – berrou e lágrimas partiram dos cantos dos olhos.
- Você é um bruxo... eu vampiro, claro que minha raça vive quase que eterno, digo a você que nunca vi um vampiro morrer de velho – produziu um sorriso para o amigo.
- Vocês vampiros, sim, são eternos, mas eu queria curtir minha filha como um homem mortal faz... vendo ela crescer, se alimentar, ir para escola, namorar, menos casar-se – limpou uma pequena torrente de lágrima que descia. Eu não sou imortal como vocês... nem minha raça e nem meus amigos lobisomens.
- Viu!? Essa é a razão pela qual você deveria abrir-se com sua filha. Em vez de apagarmos sempre sua memória, poderíamos ajudá-la a conviver entre os mortais mesmo ela sendo uma imortal.
- Tem toda a razão meu caro amigo. Quanto mais tempo terei de vida, eu não sei... mas devo prepará-la para o mundo que é muito mais cruel que nós todos juntos – tentou sorrir. Lembrou-se dos velhos companheiros de magia que se foram e de velhos cães da noite que pararam de respirar um dia.
- Não se prejudique com pensamentos infelizes meu amigo – Babel sabia o que ocorria na mente de seu amigo bruxo: era o medo de partir e deixar a menina assustada no meio de um mundo que nunca a compreenderia e sempre a caçaria como um diabo cruel que arrasa as plantações na Tasmânia.
- Tenho apenas um pouco mais de quinhentos anos – sorriu, - como sub-capitão do MayFlower deixei muita gente perecer de doenças sem saber o que fazer com minhas habilidades mágicas e agora que sou velho na magia estou temendo o que fazer para minha garotinha encarar sua real situação neste mundo...
- Não desista meu velho... você sabe que muitos antes de perecer por lá se entregaram aos vampiros para não morrerem de pestes perante o oceano... trabalhe com sua filha para que ela não escolha morrer pela peste a viver como uma descendente imortal de uma Matusalém. Corta-me o coração ter de buscá-la outra vez no cemitério com os pulsos cortados a cada depressão que ela sentia. Meu coração gelado não aguenta aquela situação outra vez e sei que o seu também não.
- Quantas vezes ela quis se matar... por quê?
- Ela tem vivido uma mentira de vida. É por isso que ela tem querido se sentir viva, se cortando, sentindo dor, e por fim, se matando em quase todos os invernos quando a frieza do corpo encontra a frieza da vida nos pensamentos insatisfeitos e sem motivos para existir.
Caleb sentou-se num sofá cheirando a formol.
- Tome este frasco.
- Posso saber o que é?
- Acho melhor não. Apenas dê a menina antes que vá dormir... depois do jantar melhor dizendo. É um restaurador de mente.
- Você não poderia...
- Subtrair os embaralhos mentais que tenho provocado nela todos esses longos anos?! Poderia, mas isso seria colocar uma bagagem contrária a outra que eu já havia colocado. Seria uma espécie de acúmulo ou, para dizer melhor, sobrecarga. Este antídoto irá aos poucos eliminando a camada de camuflagem mental com que temos feito na cabeça de sua filha ao longo desses duzentos anos.
- Parece que foi ontem que Ann e eu fugimos das garras de Simon para termos nosso bebê.
- O tempo voa até para nós – sorriu o vampiro entregando o frasquinho com um líquido azul.
- Atenda minha filha e logo vamos embora, doutor – iam saindo da salinha e a menina balançava a cabeça ao estilo Heavy Metal e mascava um chiclete insanamente, como se quisesse destroçá-lo, morder parecia um prazer e lançava à boca a quarta goma de mascar em forma de bola. – Depois eu deposito o dinheiro da consulta – disfarçou.
- Como posso ver sua garganta com toda essa borracha doce em sua boca, minha princesa?
- Eu tiro – pegou a gosmenta crosta e o doutor a examinou, - viu! Agora eu posso voltar...
- Que nojento isso aí, filha! – disse o bruxo.
- Não tem nenhum menino por perto... por isso não tô nem aí!!
Os dois velhos amigos se entreolharam e sorriram com a humanidade e ingenuidade da menina.
Charles, mesmo de pé, encurvou-se sobre a mesa e lavrou uma receita médica e um atestado para escola indicando o porquê do atraso.
- Mas doutor? Só isso? E minha menstruação quando virá? – ela encarou o doutor que coçou a orelha esquerda.
- Bem... Huhum! Hum! – limpou a garganta. – Com a sua idade já era para isso acontecer, por isso estou prescrevendo um remedinho e um suprimento hormonal e não deixe de tomar as vitaminas que seu pai prepara com carinho.
- Aquilo sim é mais nojento que minha bola de chiclete salivada – sorriu com graciosos olhos e saiu antes do pai e se deteve no corredor encarando uma linda mulher com uma criança nos braços. – Que filho lindo o seu!
- Obrigada! – a mulher de olhos esmeraldados a encarou e fitou profundamente os olhos da menina de voz magnífica. – Que voz angelical a sua, menina! Tem tudo para ser cantora.
- Obrigada. Eu amo cantar... rock é meu som favorito.
- Já sou sua fã – deu um sorriso magnífico e seguiu para a porta do doutor Charles
Caleb segurou o braço da menina e meneou a cabeça num cumprimento tímido à mulher que segurava a criança. E saíram rapidamente. Ele cumprimentava quase todos que via pelo corredor.
- O senhor conhece muita gente... e está mais rápido do que nunca... e sem sua bengala.
- Esqueci a porcaria da bengala lá no consultório. Não se preocupe... depois de te deixar na escola eu passo aqui pego a porcaria da bengala.
A menina sorriu da cara que o pai fazia e ele deu a puxar a perna como antes. Entraram no carro e se enfiaram na pista expressa, uma pressa que podia ser de grande valia para não se atrasarem mais do que já estavam. Caleb abriu o porta-luvas e puxou
uma lancheira e abocanhou um sanduíche de presunto e bacon, sua filha pegou algumas batatas crocantes de uma lata e comia com muita fúria depois de cuspir o chiclete num saco de lixo dentro do carro. O prédio Saint Peters Building foi ficando para trás velozmente. A escola não ficava muito longe e por isso o maior tempo que levaram foi para destroçar seus almoços.


VII - Velho Amigo
O dia avançou em sua normalidade na escola. Mas Caleb em sua casa matutava sobre o poder que estava em suas mãos, o de tornar sua filha uma excelente e poderosa vampira sem fazê-la com que revoltasse com ele pelos tantos anos sendo enganada. Ligou para um velho amigo bruxo e pediu uns conselhos e o velho do outro lado com a voz fraca e terna disse palavras confortáveis entre algumas confrontantes sobre a educação da menina. A conversa durou uma hora e acabou com uma intimada a Caleb em participar do próximo encontro da Plêiade do Sangue. Onde sangue puro e híbrido se reuniam mensalmente para comungarem expondo suas lutas, fraquezas e vitórias sobre o mundo deveras cruel. Caleb disse que estaria na próxima oportunidade, que não seria nesse próximo encontro.
A tarde chegou tão rápida que Caleb mal pôde adiantar o jantar para logo mais quando sua filha chegasse do colégio. Fitando o relógio cuco na parede da sala viu que era quase a hora de se encontrar com o velho lobo no lugar determinado. Tentava imaginar o que Cammo iria querer depois de cinquenta anos sem dar aparecer pela Inglaterra. Correu até seu quarto e no fundo do closet pegou uma bolsa de couro muito antiga e lanço-a sobre o ombro esquerdo e saiu numa velocidade incrível, descendo escadas e ganhando as ruas em mais uma tarde gelada. Dentro de um casaco de pele de foca ignorou o carro e iniciou uma caminhada alucinante até o local do encontro. Pensamentos viajavam por sua cabeça chocando-se com as mentiras que dissera todos os anos para sua filha. E a mentira maior seria sobre a mãe da garota. Como poderia contar sobre a mãe da menina sem que a menina o odiasse por toda a eternidade.
- Agora, sim, eu precisava um pouquinho da sabedoria de Ann – sussurrou pra si mesmo ao dobrar a última esquina antes de avistar a Livraria e Antiquários.
O ambiente estava agradável e o ar leve dentro da livraria. Caleb passeou por dois corredores de prateleiras de livros antigos até avistar a figura conhecida. O lobo estava sentado a uma mesa tomando chá amargo e lendo jornais antigos, o mais recente era de meio século.
- Como está a bolsa nesse jornal?
- Ferrada, meu amigo, ferrada. Eu tinha perdido uma nota preta naquele tempo.
- Quanto tempo meu velho – Caleb jogou sua bolsa na cadeira e deu um abraço no homem de roupas esfarrapadas que se levantou para cumprimentá-lo.
- Pois é. Quem é vivo... já disse o ditado.
- Para quem é imortal então, nem se fala!
- Quem tem esse privilégio maldito é só os caras da noite... você me entende?!
- Ô se entendo – foram se sentando e um garçom veio com uma bandeja de bronze. Uma chaleira de barro fumegava e uma vasilha de cerâmica trazia uma porção de biscoitos.
- Esse lugar é fantástico desde que fundaram há quase duzentos anos. – o garçom depositou a bandeja na mesa e saiu.
- Parece que foi ontem que a gente veio aqui... Ann e eu... Roxie e você.
- Você não precisa chamar sua mulher de Ann perto de mim meu amigo...
- Desculpe-me, mas eu prefiro...
- Eu é que tenho de pedir desculpas, pois devo muito respeito a você meu amigo. E continuaremos a chamando de Ann. Ann Smith Knight.
- Obrigado – bebeu uma golada generosa de chá amargo.
- Os biscoitos de alecrim e cevada daqui são os melhores que já comi.
- Qualquer hora a gente vem aqui para tomar o chá de Valerianas que eu tenho muita saudade, porque hoje eu preciso te contar sobre Caim...
- O irmão de Desdemona?
- Correto... ele retornou do sepulcro e levantou outros terríveis vampiros com ele: o Monarca, o Principal e a Espectra.
- A Sociedade das Trevas não pode voltar à ativa meu velho...
- Concordo com você, Cammo... mas minha quase-vida-normal me impede de eu me aventurar nesse negócio de caça aos vampiros... pelo bem de minha garotinha que está saindo – olhou para o imenso relógio nos fundos do salão – da escola neste momento.
- Pois estou te avisando por ser teu amigo de longa data, Caleb.
- Caim foi cruel com sua esposa... – abaixou a cabeça e segurou firme a caneca de chá. Um vento fria passeou por eles vindo da porta do estabelecimento que se abria.
- Eu não quero apenas o desgraçado morto, meu caro, por causa da atrocidade que ele fez a minha Matilha Sagrada... – seus olhos se perderam na infinidade de livros atrás de Caleb. Os livros cheiravam a mofo e as prateleiras sacudiam quando alguém passou e esbarrou nelas.
Era uma garota de pouco mais de vinte anos que enchia os braços com livros manchados e cheirando mofado. A menina deu um sorrisinho para ele após citar sua matilha. Ela tinha cabelos longos e loiros; grandes óculos pendiam no nariz dando um ar de estudiosa. Sentou-se numa mesinha para uma pessoa e empilhou os livros ali.
- Peço perdão por fazê-lo lembrar de sua esposa.
- Que isso, meu amigo. Essa ferida já se fechou... mas a cicatriz me alimenta o ódio por aquele bastardo.
- Pena que a descendência dos Helsing desapareceu do mapa desde o século passado – abocanhou um biscoito.
- Por isso devemos contar com a Plêiade do Sangue para nos ajudar – encarou o amigo com um semblante piedoso e cruel ao mesmo tempo.
- Cara! Eles são oitenta e oito por cento vampiros. Não vão nos ajudar a pegar um ser como eles próprios, pois o lema deles é combater a crueldade vampírica mostrando que todo vampiro pode viver pacificamente com os demais seres no mundo.
- Então... que a Plêiade catequize esses bastardos que estão formando a Sociedade das Trevas se for capaz. Pois sei – falou quase em sussurros, - que eles estão doidamente procurando a filha de Sophia.
- Você está brincando? – Caleb esmurrou a mesa e ela cambaleou jogando dois biscoitos no chão.
- Eu queria estar... – imperou um silêncio quebrado apenas pelo folhear de páginas do espesso livro que a menina loira lia não muito distante deles.
O ar sobrecarregou de forma espectral. Luzes piscaram e um vento gélido soprou as folhas do livro aberto da menina.
- Você ainda precisa disso? – Caleb abriu a bolsa de couro e mostrou um frasco para Cammo.
- Eu aprendi a fazer essa poção e nunca mais virei a criatura indesejada – Sorriu para o amigo. – Diga-me?
- Pois não?
- Eles aceitam cães na Plêiade do Sangue?
- Creio que sim, meu amigo. O bispo de lá é um bruxo e não mais um vampiro ancião como foi por séculos e séculos. Lá se reúnem os bruxos, vampiros, lobisomens e híbridos.
- Mas, sem ser vampiro, somam-se doze por cento.
- Creio que sim, e terei confirmação daqui a uns dias quando irei assistir a uma palestra do bom e velho Nicodemos.
A menina deixou um livro cair ecoando o barulho pelos corredores da livraria e a atenção de todos se voltaram para ela enquanto recuperava-o do chão. A amenina ficou vermelha de vergonha e abriu um refrigerante em lata bem gelado para acalmar-se.
- Garçom – chamou Caleb erguendo a mão com a caneca. O homenzinho magricela de cara assustada aproximou-se depressa.
- Sim, meu senhor!
- Traga-me um licor de jasmim com absinto – pensou na filha voltando da escola. - E você, amigo?
- Não. Muito obrigado. Bebo um remédio que não pode misturar com isso.
- Só para mim, então, meu rapaz. Havia me esquecido.
- Nenhum mal-estar em qualquer lua que faça – sorriu satisfeito o homem de cabelos maltratados e barba mal feita.
- Parabéns meu amigo. Parabéns.
A menina levantou e jogou a mochila nas costas dirigindo-se ao balcão com dois livros de capa marrom. Capas deterioradas quase que esfarelavam ao serem manuseadas. Pagou pelos livros e ajeitou a mochila. Deu uma olhadela para a mesa dos dois amigos que pressentiram algo familiar na fisionomia da garota, mas não conseguiram decifrar o que era. A menina saiu e o ar gelado passeou de novo pelo estabelecimento de livros e antiguidades.
A preocupação com a filha não impediu que Caleb ficasse por um pouco mais e tomasse seu licor na companhia do amigo de longa data. A hora voou e já passava das sete da noite.


VIII - Solidão e Escuridão
Amber em sua casa andava de um lado para outro se sentindo muito febril e não sabia que remédio tomar das centenas que enchiam a prateleira do armário superior na despensa.
Subiu até seu quarto e se jogou na cama produzindo um som abafado. Os fones de seu ipod estavam em volume três, mas parecia que estavam a mais de trinta. Seus olhos tornaram-se em brasas e ela se olhou no espelho achando que estava ficando louca.
- Não é possível! Estou vendo e sentindo coisas que nunca senti. Nem quando tomei um porre na festa da Stephanie Grasser.
Cambaleou até o banheiro e achou aspirinas. Mandou a mão cheia de comprimidos à boca e bebeu um copo de água para ver se parava com a tal enxaqueca.
Desceu as escadas tocando em poucos degraus e aquilo estava muito louco para sua mente. Caiu no meio da sala com a cara no tapete e urrou de dor.
- Gosto disso – ao sentir a dor ela deu um sorriso e se colocou de pé num piscar de olhos. – Preciso de um instrumento para eu me sentir legal – correu até a cozinha e apanhou uma faca. – Mamãe, desta vez eu vou até você! Ninguém vai me parar.
A neve caía ininterruptamente enquanto a menina saía pela janela e cruzava a parte dos fundos da casa que dava para um beco e depois ganhou as ruas correndo como desvairada com a faca nas mãos. Seus pés descalços entravam na alvíssima neve e suas pernas se rosavam por causa do frio. Um mendigo na esquina ficou boquiaberto em ver uma garota com camiseta e um mini-short correndo num frio daqueles. O mendigo tomou o resto da vodka, que estava na garrafa em suas mãos, num surpreendente gole.
O céu estava escuro e as luzes dos postes davam o tom tenebroso na noite. Amber chegava ao cemitério e procurava o túmulo de sua mãe. Ela não conseguia entender por que nunca conseguia encontrar logo de primeira o tal jazigo. Era como se, sempre esquecesse o lugar.
Pulou e esbarrou em muitas cruzes até se deparar com a lápide escrita “Ann Smith Knight, amada esposa e mãe”.
Pulou sobre o túmulo e deitou como se fosse sua confortável cama. Os flocos brancos gelavam seu rosto e cristalizavam suas lágrimas. Abraçou o concreto gelado e depois ergueu a faca como se preparasse a si mesma para um sacrifício.
- Hei, você!? – alguém gritou de não muito longe.
- Deixe-me em paz! – a garota olhou e não viu coisa alguma. Os olhos vermelhos ferviam de um ódio aparentemente sem motivo. Um ódio pela própria vida ou pela falta de alguém, a saber, sua mãe.
- Menina. Deixe esta faca de lado... quero apenas uma confirmação e depois te deixo fazer o que você quiser.
- Confirmar algum endereço?
- Não! Para isso eu uso o GPS. Confirmar se você é tão linda quanto um amigo tinha me dito – o rapaz foi se aproximando coberto com um enorme casaco e ficou parado fixando o olhar na desconcertada menina.
- Que brincadeira é essa? – a menina olhou ao redor. – Brigite, saia de onde estiver – berrou. – Não brinque desse jeito comigo. Você podia ter esperado para me apresentar esse idiota no horário de aula.
- Calma. Princesa, eu não conheço Brigite nenhuma.
- Quer parar com isso! – ela se sentou na pedra gelada e pôs a faca de lado. Seus cabelos voaram para frente do rosto e ela os retirou da vista para fitar o rapaz. Sua camiseta se apegou a pele e ela sentiu vergonha disso, logo, cruzando os braços escondeu seus peitos.
- O frio está terrível e você não devia estar aqui sem um agasalho. Tome o meu - ele retirou seu próprio agasalho e jogou para a menina que instintivamente se enfiou nele. – Melhor, não?
- Está. Mas você?
- Estou com esse suéter que minha avó me fez e dá para aguentar um tempinho.
- Obrigado... é... incrível garoto das neves – sorriu singelamente.
- Mil perdões. Meu nome é Bellmont, Karl Bellmont.
- E eu acho que sou quem tal pessoa disse a você, mas como soube que eu estaria aqui? – o silêncio foi perturbado por um pio de coruja. – Sou Amber... e esta é minha mãe... quero dizer, o túmulo dela.
- Um prazer enorme conhecer você Amber... hm! hm!... boa noite senhora Knight – fitou o jazigo.
A menina sorriu e se colocou de pé. Seus pés entraram na neve macia e o rapaz olhou para as pernas da menina que estavam rosadas por causa do frio.
- Por que me procurava? E como sabia que eu estava...?
- Sei que vai ser estranho e maluco demais para você entender... mas sei que não é a primeira vez que você vem aqui e se corta... tentando se matar... – diminuiu o som da voz, - achando que a dor ou a morte seria melhor ou faria mais sentido do que viver para sempre sem saber que está vivendo.
- Você usou drogas, não? Qual é a tua? Estuprador ou apenas um viciado viajando e querendo pegar uma mina?
- Nada disso. Eu te disse que iria soar de forma maluca.
- Bem doida mesmo. Essa é a primeira vez em que venho aqui para por um fim na minha medíocre vida e me aparece um anjo para me salvar, mas o cara na verdade é um viciado em pornografia e heroína.
- Não sou viciado, Amb.
- Agora acha que é tão intimo que pode me chamar de Amb. Sabia que era coisa da Brigite. Só porque eu disse a ela que nunca transei e ela me apronta uma dessa.
- Não conheço essa garota, eu já havia dito e passo longe de qualquer droga.
- Meu anjo – encarou o rapaz, - diga-me então quem é você e como soube que eu estaria aqui?
- Karl. E, eu vim te prevenir de pessoas que adorariam fazer isso com você – apontou a faca.
- Faça-me um favor...
- Da outra vez você havia quebrado seu MP-20 e agora você jogou na entrada do cemitério o seu ipod... apareceu algum pensamento? Relances? Deja vu? Clareou?
- Puta merda... parecia que aquilo tinha sido um sonho louco... você só pode ser um anjo para saber essas coisas que sonhei.
- Não foi um sonho e anjos não leem ou veem sonhos dos outros. Isso é coisa só para Deus.
- Você é cristão?
- Lógico e bem óbvio – no pescoço pendia um crucifixo de prata e no pulso uma pulseira de orações. Ele exibiu com mais exatidão os apetrechos.
- Então eu sou uma suicida que já tentou em outras oportunidades...
- Exato. Eu mesmo te recolhi deste lugar com os pulsos ferrados e sem nenhum batimento.
- Então você chamou a ambulância e me ressuscitaram, bla, bla, bla...
- Não. Eu te levei para seu pai e ele te deu um frasco de... sei lá, e você foi se recobrando e voltando a pulsar em menos de meia hora.
- Fala o nome desse filme pra mim. Eu quero comprar no pay per view ou está ainda nos cinemas?
- Isso é sério Amb. Conversei com o doutor Babel hoje. Há pouco fui a sua casa e não havia ninguém, daí segui suas pegadas pela neve. Não pensei noutro lugar que não fosse aqui. E corri como um relâmpago, ou quase igual – deu um sorrisinho.
- Se conhece meu pai, por que nunca te vi antes?
- Tudo vai ser revelado no momento certo, Princesa.
- Amb, tudo bem, mas princesa eu pego aquela faca e te fisgo – deu uma risada provocante.
- Valeu a dica Amb. Princesa, não mais, ou por enquanto – foi saindo devagar.
- Você não quer tomar um chocolate quente lá em casa... esperamos papai e conversaremos sobre...
- Melhor não.
- Não mesmo! Porque eu sou quem estaria ferrada nessa conversa toda.
- Por isso eu disse: melhor não – riu sonoramente e saiu.
Amber olhou para o túmulo e a faca havia sumido. Olhou para a direção do rapaz e ele também.
- Que filho da p... levou a faca por precaução... lógico que eu não ia me ferir... agora. Que droga de noite fria! Meus pés estão formigando. Vou ver se consigo correr sem perder lascas dos meus dedos hipotérmicos e roxos.
Correu desenfreadamente pela rua dentro do casaco algo muito pontudo espetou seus seios. Amber sem parar foi apalpando o objeto. Uma seringa com agulha.
- Maldito viciado!!!


IX - Horror a Primeira Vista
Entrou na rua em que morava e adentrou pela porta da frente. Estava destrancada.
Um homem alto; face cinzenta; cabelos castanhos e escorridos; e jaqueta jeans, virou-se com os olhos em chamas e a menina caiu sentada ao tentar frear sua corrida desesperada.
Um vento espectral assolou o lugar e atrás dele uma figura estava caída.
- Papaaaai! – berrou a menina ofegante.
- Não se preocupe. Ele ainda está vivo – o homem veio na direção da menina.
- O que fez com ele, seu monstro de merda.
- Uma boca dessas desagradaria sua mãe que era elegante e charmosa.
- Quê que você sabe de minha mãe? – a menina deu passos para trás e seus olhos flamejaram. Uma dor lancinante tomou suas têmporas e as gengivas ardiam quando seus dentes caninos se aguçavam. Era uma sensação estranha e boa. Nunca tinha sentido isso ou talvez tivesse se esquecido de que já passara por isso outras vezes. – O que está havendo comigo papai? – gritou olhando para seu pai paralisado sobre o chão. Seu semblante ficou nefasto e sua memória foi ampliando junto aos seus sentidos. Ouvia o som dos flocos de neve que caía metros atrás de si. As unhas que agora pareciam fortes garras se esticaram centímetros. Se sua memória não tivesse sido ampliada, aquilo seria a coisa mais agonizante do que qualquer mal-estar.
- Isso mesmo! Se mostre para mim criança vampira.
- Vampira? Vai se fod... haaargghhhh ...não – a voz ecoava rouca. – Não sei o que houve comigo, mas estou me sentindo ótima, atraente, poderosa e sensual demais.
- Seu pai escondeu isso de você? Que peninha deixar para saber por um desconhecido como eu. He! He! He! He! – gargalhou e sumiu da gente da garota e reapareceu por trás dela colocando as mãos no pescoço magro da pequena.
- Solte-me maldito! – a menina se contorcia em vão. Não conseguia se desvencilhar das mãos potentes do vampiro alto.
- Não antes de experimentar o fluido da sabedoria que corre em suas veias. Sua mãe fez um ótimo trabalho tendo você para servir a mim, Barak, o Grand Monarca das trevas. – baixou até seu nariz encostar-se à pele sedosa da pequena vampira. Fungou. – Cheiro espetacular. E com seu sangue agindo em mim serei o maioral dos vampiros, até o Principal se curvará diante de mim. Mais do que isso – lambeu o pescoço saboroso, - terei mais poder do que o Toma-vidas. – aguçou os caninos para penetrarem no pescoço da bela garota.
- Ninguém sorverá sangue nenhum aqui! – berrou uma voz conhecida para Amber.
- O cara do cemitério?!
- Agora os coveiros querem infernizar a vida dos seres da noite... piada comigo?
- Desculpe-me Amber, mas isso pode te ferir muito. - E ergueu um objeto em forma de cruz. Reluzia como prata polida. Gritou – fiat lux! – e um clarão inundou o ambiente de forma avassaladora.
Haaargggffffhhhh – berraram os vampiros. – Karl correu para abraçar a menina e envolveu-a em seu agasalho, aquele mesmo que tinha a entregado no cemitério. O tecido do agasalho protegeu a garota de um dano maior, protegendo-a como se fosse uma capa. A luz lancinante continuava a brilhar e o berro do vampiro de jaqueta jeans desapareceu. A menina ainda gemia e choramingava.
A luz foi diminuindo e um som agudo perturbava a vampira. Karl apressou-se a pegar a cruz de prata.
- O que você fez comigo? Seu animal. – Amber com o rosto queimado e semblante de volta a humano sofria dores terríveis.
- Um pouco de calma e eu te ajudo. Deve ter uma seringa aqui nesse agasalho que te emprestei.
- Você é um viciado duma figa! Por que quer acabar comigo?
- Não. Não quero acabar com você. Quero acabar com aqueles que são como o que estava aqui pronto para abocanhar sua coronária e sorver todo o seu sangue vampírico.
- Que droga é essa?
- Um segundo... – o rapaz pegou um frasco e a seringa. – Vinte... acho que dá. Você se queimou pouco porque fui terminar de te cobrir com esse meu tecido especial. Tem medo de injeção?
- Nunca tomei uma para saber – a menina retirou o braço de dentro do casaco.
- Sempre tem a primeira vez. É o que dizem – pensou em sorrir, mas o sofrimento da garota fez com que cortasse o sorrisinho.
- Com certeza os dentes do desgraçado causariam uma dor pior que essa – viu a agulha penetrar e o líquido ser introduzido em seu corpo.
- Digo que sim. Eu conheço a Sacrum Medicina.
- Você é um médico?
- Caçador. Minha filha, ele é um caçador! – dificultosamente falou o bruxo.
- O que caçador tem a ver com remédios.
- Seu pai está certo. E os remédios são para curar aqueles como você, querida Amber. Existem muitos vampiros que abandonaram as artes das trevas e com a ajuda de alguns bruxos como seu pai eles até podem andar durante o dia. Valendo-se de encantamentos ou amuletos mágicos. Na história, muitos caçadores foram bruxos e as poções foram passando de geração em geração. Porém a Santa Inquisição dispersou os feiticeiros e bruxos. Daí pra frente os caçadores andaram sozinhos atrás das bestas noturnas: vampiros e lobisomens.
- Lobisomens?
- Sim. Pessoas amaldiçoadas a transformarem num lobo gigantesco – retirou do casaco uma pena branca e levou até o bruxo que ainda não conseguia se levantar do chão. O bruxo mexia apenas os olhos e a boca.
- Caleb, meu velho. Ser pego por um vampiro não era tão fácil para você antigamente – abriu um sorriso.
A menina se admirava por ter sarado da queimadura instantaneamente logo que a agulha foi retirada.
- Karl, meu jovem aprendiz... fico feliz de ter encontrado minha filha antes dela cometer mais uma idiotice daquelas – olhou para menina que pegava uma toalha e se cobria com ela.
- A picada da pena vai doer mais que a agulha que apliquei em sua filha. – A ponta da pena continha uma tinta roxa. Extrato de flores. Arte da Sacrum Medicina.
- Já sou crescidinho... Aiii!
Ficou em pé e cambaleou até sentar no sofá. Os olhos da menina o indagavam de forma horrenda. Karl puxou uma cadeira para a garota e outra para ele.
- Acho que devo começar do começo...
- Espero! Porque ontem eu era humana e agora sou uma vampira. Porque uma droga de luz me queimou. Deve ser por isso que eu me suicidava e nunca morria... tinha como se fosse apenas um sonho... porque nem cicatrizes ficavam nos meus pulsos.
- Você é a única filha de vampira. Todas as vampiras e vampiros são estéreis. Mas uma, somente uma pôde gerar um bebê. Sua mãe: Sophia.
- Que diabo é isso de Sophia? Minha mãe era Anna Smith Knight.
- Isso foi o que eu inventei para te criar como humana e dependendo do seu desenvolvimento nós nos mudávamos. Porque seus amiguinhos perceberiam que você
não crescia como os outros, e você já completou os anos escolares diversas vezes que até perdi as contas.com a ajuda do doutor Abel, que também é um vampiro, apagávamos alguns pensamentos e introduzíamos outros...
- Como pôde...? você realmente é o meu pai?
- Claro querida. Eu amei demais sua mãe... como há pouco soube que os bruxos e caçadores capturavam os seres das trevas... foi assim que encontrei sua mãe há mais de quinhentos anos...
- Mentindo novamente... ela tem explicação de uma vida longa, mas o senhor é meio novo pra mais de quinhentos.
- Todo bruxo que encontra a Pedra Filosofal possui o elixir da vida e assim podemos viver centenas de anos. Não somos imortais como os vampiros, mas vivemos muito tempo com uma vida focada nos conhecimentos da natureza e suas medicinas. Um bruxo qualquer pode viver muito, mas aquele que encontra a Pedra Filosofal pode atravessar um milênio pelo menos.
- Isso aí! Eu sou um caçador de seres noturnos – piscou para a menina que fazia cara de entusiasmada, - mas, também sou um aprendiz de feiticeiro. Pois é, quem não tem sangue bruxo tem de se contentar com um título de Feiticeiro.
- Você também viverá muito?
- Eu espero que sim... principalmente se eu achar a tal pedra.
- Mas, pai, eu quero saber mais de você e a mamãe – a menina encarou o bruxo com um olhar inquiridor.
- Bem... vou preparar um chá de raízes enquanto vocês conversam. E podem ficar tranquilos porque o Monarca não estará em bom estado antes de vinte e quatro horas depois do meu disparo solar por essa beleza de cruz – deu um beijo no artefato de prata que era repleto de símbolos estranhos. O objeto cintilava como se tivesse sido polido com muita precisão. Depositou-a novamente no imenso bolso do agasalho.
Karl entrava na cozinha assoviando uma cantiga infantil cantada em pré-escolas.
Caleb pigarreou e ajeitou-se no sofá de frente com a filha.
- Vamos lá:


X - O Mestre das Artes da Caça
John Cape era o caçador mais velho da aldeia e tinha um conhecimento invejável na Sacrum Medicina e nas armas de caça. Fazia arcos e flechas incríveis e conhecia as artes e ciências ocultas. Era o único caçador que sabia de magia e aliando aos seus truques de caça multiplicava seu poder de captura dos seres noturnos. Era profundo conhecedor das artes de matar vampiro e lobisomen. A vila toda pedia conselhos a ele, mais do que pediam aos seus anciãos e isso causava inveja em muitos aldeões e médicos do tempo. Minha família veio de Gales e nos instalamos por aqui como alguns celtas os fizeram. Havia Festa da Fogueira e rituais druidas não me lembro quantas vezes por ano. Meu pai e minha mãe eram humildes e não possuíamos nada além do casebre que meu pai construiu num terreno doado por um criador de cabras. Meu pai trabalhava para o homem e de vez em quando fazia remédios medicinais para vender na feira. Meu pai nunca ambicionou viver muito e se aprofundar nos Conhecimentos da Magia. Minha mãe não tinha sangue bruxo, por isso saíram de Gales. Sofreram perseguição, mas logo foram esquecidos, deixados a sorte. Minha mãe sofreu para dar a luz a mim. Esse é o problema de sangue mestiço. Não há muitos nascimentos entre humano e bruxo. Por isso somos muito poucos no mundo. As pessoas têm casado ou ficado com quem se ama e não têm dado importância às tradições e raças.
Eu cresci e me tornei um bom caçador. Outros da minha idade admiravam quando eu trazia muita carne e dava aos órfãos e viúvas do vilarejo. Então foi despertado em John o interesse de me ensinar mais coisas devido à conduta que eu tinha de repartir com o mais necessitado as minhas caças. Não demorou a ele perceber minhas intuições e dedicação extraordinária. Deu a me ensinar o que sabia e na parte oculta muito mais do que eu tinha visto nas Festas da Fogueira. Saía de casa e voltava depois de meses. Meses gastos no meio da floresta aprendendo a ouvir os sons e identificá-los. Meses aprendendo as reações dos animais silvestres. Meses conhecendo as plantas medicinais e raízes curadoras de uma imensidão de doenças.
Estaca! - Disse John enquanto eu arrancava uma lasca dum cervo que tínhamos acabado de assar numa fogueira. E eu perguntei o que tinha haver aquilo? Ele respondeu: amanha você usará uma estaca de madeira para matar um cervo. Eu te proíbo o uso de flechas e lanças. Tampouco essa adaga druida que seu pai te deu.
John era um homem de semblante altivo e muitas vezes ele era carrancudo. Mas isso não conseguia deixá-lo menos que uma ótima pessoa. – Você precisa combater corpo a corpo sua presa amanhã e escolha uma boa árvore para construir sua estaca. Pois a estaca pontiaguda deve entrar no peito do animal e atingir o coração antes que ele te encare. Coma logo isso e vá dormir! O sol clareará em breve. A lua está cheia e minha aljava está com flechas com ponta de prata. – Fui dormir sem entender coisa alguma do que dizia. Pois antes desse dia era apenas: animais; plantas; insetos; rochas; solo sagrado; ventos; pontos cardeais; mas nada enigmático como dali para frente.
A noite foi incomum. Fria e tensa. Pelo menos para mim. Enrolei-me num manto de pele de gazela. John cobriu-se com a capa de lã e pesadamente dormiu. O fogo foi se extinguindo na calada da noite e os pios de coruja e uivos de lobos começaram uma melodia sinistra. Demorei a pegar no sono.
John me acordou no outro dia retirando meu manto e dizendo – ficarei a mercê da natureza enquanto você não trouxer a comida. Você precisa arrumar uma boa estaca e matar um cervo para nossa próxima refeição. Ficarei aqui em meditação profunda, não me levantarei para nada, entrarei na alma do Espírito da natureza. Comerei apenas os insetos que passarem sobre mim e beberei água se porventura chover. Não assarei nada em fogo, nem farei um para me aquecer. Lançarei minha alma ao solo dormirei,
meditarei e me fortalecerei enquanto você não chegar com a carne. Você é Bruxo e quis ser caçador, eu sou homem apenas, um caçador, que quer descobrir as artes escusas da magia e me tornar um bom feiticeiro.
Eu o elogiei – para mim você já é um grande Mestre Feiticeiro. – Ele sorriu e se jogou com o rosto na terra e eu entendi que era para eu partir.
Coloquei minha adaga na cintura e não poderia levar mais nada comigo, pois era para usar apenas a estaca. Atingir o coração com a madeira pontiaguda. Um desafio e tanto. Ele não tinha dito que deveria ser um cervo adulto. Pensei que um novinho não me causaria fatiga ou exaustão. Precipitei pelo mato enquanto o sol começava a queimar de manhãzinha. A saúde do meu Mestre estava também no jogo, na caça, no meu desafio. Ele acreditara em mim, por isso não poderia contrariá-lo e nunca fraquejar diante da tarefa.
Não podendo usar arco e nem lanças. E durante esse dia avistei apenas uma gazela, mas ainda não tinha feito minha estaca. Não demorou muito para eu encontrar uma árvore cheia de galhos formosos e labutei para arrancar um galho de bom porte. Confeccionei três estacas com aquele galho. O sol estava a pico quando comecei o trabalho e terminei na tarde escura e fria. Achei alguns gravetos e fiz uma fogueira. Lamentei o Mestre não estar ali. Encontrei alguns lagartos e assei dois deles para minha refeição. Deitei a cabeça numa pedra quente, pois ela absorvera o calor durante o dia e os lagartos se aqueciam nela por causa de seus sangues frio. Dispersei três e assei dois. Dormi depois de pensar muito sobre a meditação de John e tive fé que ele encontraria o Espírito da natureza nesse tempo em que o deixei.
Acordei com os primeiros raios de sol que conseguiram desvencilhar as folhas das espessas copas de imensas árvores imponentes e frondosas. Minha primeira visão foi um cervo de pelo menos três anos de idade. Agarrei minhas estacas e corri como um leopardo atrás dele. Depois de adentrar as matas fechadas e ser surrado por galhos baixos e espinhos sobressalentes encurralei o vigoroso animal que fungava a baforadas quentes fazendo vapores subirem das narinas naquela manhã gelada entre as matas. Fiz o possível para não fitar o olhar apreensivo do bicho. Sempre tinha usado flechas e lanças para matar um animal, mas agora, corpo a corpo era outra história. Um animal vigoroso, bonito e que mal algum tinha me feito... aquilo era bem diferente. Por isso Cape disse-me para não fitar os olhos formidáveis do quadrúpede. Um inocente e dócil animal seria nossa refeição naquele dia. Minha barriga estava prestes a roncar de fome. Imaginava como estaria meu mestre há quase dois dias sem comer um bom bocado de carne.
Aproximei-me com cautela e o cervo dava de subir nas ramas espinhentas e o sangue corria em suas pernas compridas e finas. Assustado. Apavorado. E eu nutrindo o pensamento de que aquilo era preciso. Joguei-me contra o pescoço do animal e caímos sobre um arbusto espinhento. Cortei as costas centenas de vezes ao rodopiar com o bicho no chão. Imaginei onde estaria o coração do cervo elevei meu braço com a estaca mais pontiaguda que eu havia confeccionado e cravei no coração do animal. Sua força o deixou. Sua alma voltou ao Espírito da natureza. Eu tinha muita comida por alguns dias. A luta não foi nada fácil. Corpo a corpo com um ser que é mais rápido que você é uma coisa muito difícil. Tinha de ser sagaz contra a presa. Eu estava no topo da cadeia alimentar.
Retornei e encontrei meu mestre estendido no chão. Imóvel. Chamei-o duas vezes. Algo estranho, pois ele nunca precisaria ser chamado uma vez se quer, pois sentiria minha presença e se levantaria antes que eu desse a mostrar minha cara suja pós luta. Cheguei perto e desvirei-o. Ele estava morto. Seu pescoço dilacerado por alguma criatura. Não podia ser qualquer animal simples da qual encontrávamos pela floresta.
Aquilo era brutal e desumano, e não um ato de feras do campo. Estava outra vez sozinho no meio da mata. Com muitas lições a serem aprendidas solitariamente. Debaixo da capa de John havia um manuscrito. Enrolei o papiro e guardei. Joguei o cervo nos ombros e fui descendo as montanhas. Aquele animal deveria servir de refeição, esse era o desejo do mestre, não podia jogar o pobre cervo ali. Levei o cervo até a primeira vila que encontrei e pedi ajuda de alguns homens para buscarmos meu mestre e capturarmos a criatura que fizera aquilo com ele. Na vila, alertaram-me que seria um lobisomem. Uma criatura maldita. Um forasteiro passara por ali dias atrás e varias mulheres e crianças sumiram desde então. Um homem que se transformava num gigantesco lobo. Depois que recuperamos o corpo do meu mestre do meio do mato o enterramos no cemitério da vila. Lavrei cartas para minha e para a família do meu mestre. Alguns deles vieram para uma singela cerimônia na capela.
Cinco noites depois sumiram um casal de jovens que namoravam no celeiro de uma fazenda próxima. Eu estava terminando de ler o papiro. O papiro continha vários símbolos alquímicos e segredos de bruxos entre outras revelações. Ali encontrei a arma fatal para os seres noturnos. A prata. Prata. Por trinta moedas de prata foi traído um sangue inocente. O Mestre dos mestres. O livro sagrado cristão conta essa história e por isso o metal maldito tornou-se a Arma mágica contra esses seres. Tanto lobisomem quanto vampiros são vulneráveis por tal metal. As maneiras de matar os seres eternos foram aumentando conforme se descobria novas armas e modos de vencê-los. Todo que morria sobre madeiros era considerado maldito. Assassinos eram dependurados nas cruzes romanas e dali surgia as estacas. Um pedaço de madeira no coração do infeliz vampiro é capaz de matá-lo. Pois o madeiro é para os malditos.


XI - A Fuga

O cheiro do chá estava formidável. Karl vinha trazendo o líquido cheiroso. Foi dada a pausa na história para que experimentassem o fumegante chá.
- Então. Antes disso tudo ninguém matava essas... Criaturas? – pensou em si mesma.
- Matavam sim. Aprisionando os vampiros em lugares para tomarem os raios diretamente do sol. Decapitação. Fogueiras. Essas foram as maneiras primitivas até que conseguiram, nós caçadores conseguimos utilizar as armas de fogo abastecidas com projéteis de prata. – Pausou, soprou e bebeu um gole, - a estaca já era usada quando eu li aquilo no papiro, não pense que foi dali em diante que foi usado essa forma de matar vampiros.
- Bem! Gostei de saber do senhor, mas cadê a mamãe em toda essa história? – Balançou a xícara e soprou o líquido esverdeado.
- Não quero apressar vocês, mas foram descobertos e precisam de um novo lugar para continuar a história – alertou o caçador olhando para as janelas e portas.
- Ele está certo querida. Vamos até a Plêiade de Sangue e lá estaremos seguros por muito mais tempo. Preciso telefonar para Nichodemos... avisando que estaremos chegando em meia hora. Pegue o necessário e entre no carro filha.
- Ok! Eu já volto. – Amber subiu ligeiramente as escadas, sem notar que se utilizava da velocidade vampírica.
- Acha que a Plêiade é o melhor lugar... – viu o vulto da menina terminando as escadas, - para se esconderem?
- Você escolheria um outro?
- O edifício Saint Peter.
- Lá tá cheio de vampiros ruins e muitos são associados aos assassinatos, enquanto na Plêiade estão apenas os convertidos à Humanidade. Os que querem se parecer com pessoas normais tendo família, trabalho, lazer e até mesmo uma religião. São muitos os que por amuletos e encantos mágicos conseguem ser caminhantes do dia e andam por lugares abarrotados de humanos.

XII – Recordações

Nichodemos passeava pelo pátio externo da grande nave de pedra conhecida como a Igreja da Madrugada devido às suas reuniões que aconteciam na calada da noite e nunca tinha seus portões abertos se não uma vez por mês no dia em que turistas podiam conhecer um pouco, apenas um pouco, do interior do grande castelo de arquitetura gótica e singular. O velho Nichodemos andava pensativo e balbuciava palavras antigas e proibidas aos normais. Parecia invocar um vento quente na noite geladíssima que fazia. Esperava impaciente pela chegada de Caleb e Amber.
Conhecia Caleb desde quando o encontrara na floresta, desmaiado e ferido a ponto de morrer. O levara para seu casebre, no tempo, e curara suas feridas mortais com bálsamos, óleos de aloés, pó de mirra e palavras proibidas. Ficara sabendo que o moribundo acabara de ser treinado nas artes da caça a seres das trevas. Pois dias antes havia morrido a lenda dos caçadores, o feiticeiro John Cape. – Lembrava o ancião como se fosse acontecimento de ontem. – Nisso percebe-se que na mente o tempo é irrelevante e ao mesmo tempo eterno.
Caleb despertava com dores em toda parte de seu corpo e via um velho a sua frente na claridade de um castiçal de bronze muito reluzente.
- Como se sente meu filho?
- Como se uma avalanche tivesse passado sobre mim.
- Então você está ótimo – e o velho levantou dirigindo-se a uma chaleira fumegante pendurado na lareira.
- Tome isso e sua força voltará aos poucos. Há quase um mês eu te encontrei semi-morto num ermo da floresta.
- Meu Mestre?!!? – gritou Caleb.
- Acalme-se! Ele se foi, mas seus ensinamentos o faz vivo dentro de você. – Entregou uma caneca de cobre com o líquido quente e forte.
O jovem caçador bebericou fazendo caretas.
- É um pouco ruim.
- Percebi mesmo... mas, depois que se engoli parece que nossa língua fica adocicada.
- Exato. Assim somos e vivemos. Achamos que as coisas estão ruins e intragáveis, mas depois de passarmos por elas, revela-nos o adocicado sabor da continuidade, eternidade.
- Mas sinto o vazio e dor por ter perdido o meu mestre.
- Ele passou o suficiente tempo aqui para lhe mostrar o segredo e força de um caçador... sei que foram os seres noturnos que o levaram, mas nem todos eles são das trevas. Pois, crendo nisso eu estou criando um assembleia dos seres noturnos que querem viver uma vida civilizada com o resto da humanidade. Tenho pregado a humanidade dentro de cada vampiro e lobisomem. E tenho mostrado que muitos humanos são mais monstruosos que esses seres que muitas vezes não tiveram opção por ser ou não amaldiçoados com suas transformações. Para Cape todos eram do mal, mas ele estava enganado e um sobrinho dele fora salvo num penhasco por um lobisomem chamado Cammo e isso lhe fez pirar por um instante, perturbando-se por ter matado muitos lobisomens sem saber ao certo se eram apenas comedores de galinhas como as raposas ou se eram caçadores de gente.
- Então, apenas os vampiros são os atormentadores de gente.
- Foi o que Cape pensou por um instante, mas soubera que alguns davam vida em vez de tirá-las.
- Como assim?
- Pessoas em vilarejos que sofriam de alguma peste ou pragas mortais, alguns peregrinos vampiros iam de vilarejo em vilarejo dizendo serem médicos e davam uma gota de seu sangue para o enfermo e em horas a pessoa enferma era curada. Alguns curandeiros vampiros ficaram famosos por isso.
- Mas os desgraçados não se alimentam de sangue humano?
- Não há necessidade de ser sangue humano, pois o sangue de animais também o saciaria de alguma forma, porém o sangue mais próximo do humano é o do porco.
- Mas já vi pessoas arrasadas por estes desgraçados das trevas e não era nada bonito de se ver meu caro velhote! – berrou Caleb.
- E se eu dissesse que uma vampira me mostrou onde você estava...
- Se fosse boazinha como você está dizendo ela mesmo me traria aqui ou a uma hospedaria para um atendimento médico.
- O sol estava nascendo e ela não poderia perder tempo algum lá fora, desde então ela pergunta todos os dias sobre seu estado de saúde.
- Posso conhecer essa boa samaritana?
- Lógico que sim meu amigo. Ela lutou contra três vampiros que haviam te desmaiado e mordicavam você aos poucos, quase esgotaram seu sangue.
- Sugadores malditos!! E minhas estacas?
- Ela mesma as guardou e lhe entregará em breve.


XIII - Estorvo e Luz
A história percorria a mente veloz do velho Nichodemos enquanto longe dali o carro de Caleb saía disparado pelas ruas congeladas e Karl dirigia enquanto a mesma história estava sendo explanada por Caleb, contando como conhecera sua esposa:
- Não vejo a hora de conhecer essa vampira boazinha que você está falando meu senhor...
- Eu me chamo Nichodemos e é um prazer te conhecer Caleb. Bruxo e Caçador.
- Você... também é um dos seres das trevas?
- Eu? – o velho sorriu sonoramente e tossiu, - olhe para minhas barbas brancas, rugas e aparência decaída... sou um velho... vampiros não demonstram idade como nós.
- Nós? Você também é bruxo?
- Exato. Muitíssimo velho por sinal. Espero varar meu segundo milênio – sorria largamente exibindo os dentes amarelados.
- Meu pai era bruxo e minha mãe humana... o que sou?
- Você tem a opção de ser o que quiser meu jovem. Você tem sangue Bruxo e deveria continuar a aprender as artes bruxas e com a parte humana deveria praticar a astucia e aprender utilizar o maior número de armas possíveis como um ótimo caçador, como John Cape foi. Viva muito e ame o máximo que puder. Mas, agora descanse e pela manhã a sua salvadora virá lhe visitar.
Passei a noite pensando em como seria a tal mulher das trevas que tinha o coração bom a ponto de salvar um indivíduo que nunca vira e talvez nem soubesse o nome do infeliz.
Amber encarou seu pai e notou seus olhos marejando, os dois estavam no banco traseiro e Karl acelerava muito mais na avenida sem muito trânsito.
- Amanheceu e abri os olhos naquela manhã sob a escuridão do quarto e logo uma luz de vela se propagou em minha direção.
- E mamãe? – Perguntou Amber desesperada.
... continuou a história:
- Era ela. Maravilhosa. Lábios carnudos; olhos verdes, atenciosos e grandes; cabelos longos, loiros e levemente cacheados; magra e alta; aparentando no máximo trinta anos de idade; sua palidez não tirava sua beleza nem um pouco; e sua voz era penetrante e doce.
- Como você está? – perguntou a vampira sentando-se ao lado do caçador.
- Depois de tudo... posso dizer que bem, mas conhecendo você eu posso dizer que estou melhor do que nunca – a vampira segurou a mão trêmula do caçador. – Perdoe-me por caçar sua espécie... – se sentiu idiota ao dizer isso.
- Devo dizer que alguns merecem uma estaca no coração – exibiu as presas salientes ao sorrir.
- Pois é – fitou os olhos da mulher e viu o verde tornando-se vermelho enquanto as delicadas mãos geladas da vampira acariciavam seu braço.
- Uma vampira estava perto de sugar seu pescoço quando cheguei. Suas derradeiras gotas de sangue esvairia com a sua vida...
- Conhece a maldita?
- Sim. Ela já me roubou alguém que amei no passado remoto e surrei-a ao tirá-la de cima de você.
- Bem feito para ela – tentou sorrir e a vampira aproxima-se demais de seu rosto ou pescoço.
- Era SaTania.
Seus lábios cobiçosos e muito gelados encostaram-se aos do jovem bruxo. E se beijaram como casais apaixonados que estiveram separados por uma viagem longa a países distantes. Num piscar de olhos a vampira estava sobre os cobertores do jovem.
- O velho senhor...?
- Ele levantou cedo e foi comprar mantimentos no vilarejo distante... temos tempo demais e meus ouvidos estão aguçados para ouvir qualquer mosca que se aproxime desse casebre. Apenas me ame Caleb.
- Não precisa dominar minha mente... eu me encantei com você... com seu cheiro... e sua pele fria...
- Senti que você gostava de mim desde o primeiro dia que me sentei ao seu lado e você sussurrou um obrigado.
- Eu fiz isso?
- No sétimo dia em que vim te ver...
- Esse cheiro... seu perfume... estou me recordando dele ao meu lado... do meu lado... esteve aqui todos os dias...
- Claro! – e o beijou loucamente.
- Você poderia me dizer quais seres me atacaram, e quantos você afugentou?
- Fora a SaTania havia Sir Crow e Madame Goeth, essa eu matei separando a cabeça do corpo com minhas próprias garras – aguçou as unhas para mostrá-las ao jovem bruxo.
- Essa tal de Tania é a Rainha deles?
- Dita a mais cruel dos vampiros, mas não a mais forte, pois ela pertence ao primeiro sangue e não ao Matusalém.
- Você é uma Matus...?
- Exatamente... – beijou-o mordendo levemente seus lábios e um fio de sangue escorreu para o queixo do rapaz, - a mais sábia dos Matusaléns.
A historia foi interrompida quando Karl usou o freio com precisão para não bater em uma criança que buscava uma bola no meio da rua deserta.
- O senhor a amou demais, não foi?
- Desde que abri meus olhos e a vi. Ou melhor, desde que ela me salvou dos seres das trevas e cada dia sentia seu cheiro ao meu lado, uma mistura de sangue e nardo. Nardinium. Doce, lenhoso e cálido – suspirou como estivesse sentindo o fragrante cheiro.
- Senhor Caleb... devemos voltar!? – assustou-se o jovem caçador.
- O que temos aí?
- Aquele menino tem os olhos como brasa... ele é um... – o menino sumiu nesse instante e reapareceu na porta de Karl.
- Poderiam dar-me uma mãozinha? – enterrou a mão na lataria da porta rasgando-a como se fosse papel. O astuto caçador pulou para o outro banco e segurou seu crucifixo de prata.
Caleb e Amber pularam para fora como gatos pela janela. Amber ficou febril em instantes e seu semblante vampiro dominou a feição sempre meiga de menina.
O menino aparentava ter doze ou treze anos e Karl berrou um nome:
- Caim. O Toma-Vidas. Ele copiou essa criança depois de te-la sugado a vida.
- Verdadeira bebida. Eu costumo dizer que ainda terei o poder de um Matusalém.
- Estejam prontos para correr pessoal – berrou Karl. – Esplendidus Lux – apontou a cruz de prata para o infante vampiro e ele começou a se contorcer com a esplendida luz.
- Vamos filha. Entre no carro, não está muito longe o castelo e lá estaremos seguros.
- E Karl?
- Ele é esperto e estará lá em pouco tempo. Segurará o Caim até sairmos desta parte da cidade.
Saiu a toda velocidade e os pneus cantaram na primeira curva.
- O que é que você quer...? aprendiz de feiticeiro – com dores e queimaduras o menino vampiro falou gemendo.
- Eu quero salvar a Amber de coisas como você. Eu sou como um cavaleiro dela e a desposarei um dia...
- He! He! He! Hilário. Você é um peste hilariante.
- Vou aumentar essa luz e você verá o que é hilariante – girou a cruz três vezes na horizontal e três na vertical – Lux Excelléntis!
Um clarão e um horrendo grito ecoaram por toda a vizinhança.
- Você ferrou meu novo corpo. – Estava todo queimado e o rosto irreconhecível. –E seus brinquedinhos são uma piada, feiticeiro de merda – enterrou a mão no peito do rapaz e comeu o coração dele enquanto a luz se dissipava dando lugar ao tom sombrio e gelado. Sorveu o sangue quente, sumiu com o corpo e enterrou os artefatos mágicos do rapaz no cemitério mais próximo. – Como um coração e assumo essa nova identidade, porque sou o Errante Caim.
Começou a gargalhar depois de sumir com todos os vestígios.
O céu estava triste e carregado de nuvens obscuras que derrubavam seus flocos alvos e elegantes de neve. Milhares de flocos dançavam no ar como um gigantesco ginásio de balé. Centenas de milhares de dançarinas giravam e rodopiavam ao sabor da brisa gelada.



XIV - A Alcateia
Caleb pisou bruscamente no freio e o carro bambeou para direita e para esquerda parando em frente a um portão enferrujado. Uma placa enorme desprendeu do poste e caiu sobre o capô do carro. Uivos atormentavam a noite. O cheiro de morte e sangue adentravam as narinas com violência.
Amber deu um salto ligeiro para fora do automóvel e se espantou com a própria rapidez com que fez aquilo. O coração da menina batia descompassado e desacelerava a cada instante. Ela nunca havia sentido aquilo e seu estômago começou a reclamar uma fome devastadora. Comeria um carneiro inteiro ou um boi naquele instante. Suas unhas aguçaram como garras firmes e afiadas. Seus olhos enxergavam muitíssimo bem na escuridão. O gelo da madrugada não feria a pele como antes. Sua palidez exibia varias veias roxas ramificadas sob a pele sensível de seu rosto. Ela encarou seu pai que saía com dificuldade pelo para-brisa estourado. Ela puxou-o com precisão.
- Filha... lamento você ter de encarar horríveis coisas nesse dia e ter de saber sobre sua natureza de uma hora para a outra...
- Não se desculpe... mais cedo ou mais tarde o senhor não conseguiria guardar esse magnífico poder que estou sentindo e essa puta fome também – exibiu os caninos para seu velho pai e o bruxo sorriu.
- Vamos entrando... meus amigos! – uma voz cansada rompeu pela penumbra do umbral de pedra.
- Venha papai – a garota arrastou o bruxo com facilidade pelo curto caminho de cascalhos até o umbral.
O velho alisava a barba e após entrarem fechou-se a porta de aço com um tremendo baque e falou um encantamento ao travá-la.
Chegaram ao enorme salão principal onde os assentos circulavam focados num pequeno púlpito de acácia no centro com dois castiçais. Bruxuleavam as chamas das velas e o interior do salão cheirava a incenso e canela.
Cinco pessoas estavam sentadas nos primeiros bancos e acompanhavam a chegada das visitas com um olhar de esguelha.
- Caleb – com entusiasmo um dos cinco se levantou. – Ficamos sabendo do ataque que sofreu a pouco. – Aproximou do velho amigo bruxo e o abraçou – Tânia, a nova convertida, passou por você em Saint Peter e contou a Babel que ela recebera uma desprezível visita. Barak.
- Pai... essa Tânia é aquela que passou por nós ao sairmos do médico?
- Sim, a antiga Satania... que por pouco não me matou – massageou o queixo com ar de riso.
- Mas ela hoje vive convertida a humanidade e casada com um humano. Robert é o marido dela e tem vindo com ela aqui algumas vezes – disse o velho Nichodemos.
- Como ele não percebe que aqui há seres estranhos como nós? – perguntou a menina com os olhos em chamas.
- Ela o serve um cálice de vinho antes de virem aqui. Um vinho especial, lógico – sorriu o velho alisando a barba alva. – Seu pai prepara um vinho tão bom quanto o meu e ela pega todo mês uma garrafa... um vinho do porto... Porto das Almas.
- Nenhum ressentimento? Por ela ter querido te matar, papai?
- Filha... ela, depois de algum tempo foi quem nos ajudou a entrar no MayFlower para irmos à Nova Inglaterra. Ela conhecia o capitão do navio e a Inglaterra estava com seus cavaleiros e caçadores loucos por derramar sangue de bruxos, feiticeiros, vampiros e lobisomens, pois não compreendiam que alguns de nós não nos deixamos levar pela obscuridade da alma amaldiçoada.
- De fato vejo que não temos culpa de nascer assim... eu até ontem era humana – ensaiou um sorriso, mas engoliu.
- Você foi a única que nasceu vampira... pois os vampiros são estéreis. Mas, lobisomens, bruxos e feiticeiros realmente herdam de seus genitores e vampiros geram filhos com agressão, como uma boa mordida e mortais sugadas. Por isso, menina, você é especial. Gerada com amor.
- Ser sugado por um vampiro já é o bastante para um humano se transformar? – encarou o pai e depois o velho.
- Não. É necessário que a vítima seja reanimada com o sangue do seu agressor, pois se não for do próprio agressor as chances são mínimas de transformação. Um vampiro novo não saberia animar sua vítima, pois ele suga quase todo o sangue da vítima, deixando-a bem seca, porque há um limite para ser sugado quando se quer transformar, ou melhor, amaldiçoar alguém.
- Bem. Estamos aqui por sabermos que este é o lugar mais seguro de toda a Inglaterra nesse momento – disse Cammo caminhando de um lado para o outro. – Por isso trouxe a Matilha aqui. Luke – um rapaz ruivo e magircela, - Alfred – um senhor de meia idade com óculos de meia lua, - Sarana – uma mulher clara de cabelos negros e olhos azuis como de um cão siberiano e – Tobby – um menino de quatorze anos franzino e loiro.
- Sua Matilha está segura aqui – afirmou o velho virando-se para o Caleb. – Nós estamos...! – todos olharam para o teto quando um som estranho adentrou os paredões do castelo.
- Aguce sua audição minha pequena – Caleb fitou a filha.
- Isso tudo é novo pra mim, mas vou tentar... – ela fitou o teto e seus olhos contabilizaram até mesmo as teias de aranha de lá.
- Existe uma câmara mais segura que este salão, meu velho? – disse Cammo.
- O porão guarda uma maldição. A mais terrível de todas que vocês possam imaginar. Há mais de quatrocentos anos eu não entro lá.
- O que seria isso?
- O primeiro ser que adentrar os porões não retornará.
- Deixem-me ser o primeiro e vocês todos estarão livres da maldição – disse o velho lobo e uivou baixo. – A vida perdeu o sabor para mim desde que perdi a Roxie para os dentuços... Desculpe-me falar assim pequena Amber.
- Que isso. Não me imagino como aqueles dentuços, apesar de ser uma... agora.
Um segundo barulho ruiu pedras da grande nave e os lobos uivaram moderadamente. O menino loiro parecia amedrontado e a mulher aguçava as garras e dentes. O homem e o rapaz despiam dos capuzes que usavam até agora. Rosnavam como cães.
Um baque surdo no portão principal. Passos pela escuridão da nave. Ecoavam sapatos de solado de madeira no piso de pedras. Parecia ser um. Depois dois. E logo, pareciam três seres no interior do salão. Olhos flamejantes. Três pares de olhos ferozes se propagavam no fundo do castelo. O encanto havia sido quebrado. O encantamento de segurança do local havia sido rompido por aqueles seres infernais. Uma brisa mortal e gélida passeou por dentro do salão. Cheiro de sangue chegou às narinas dos que estavam refugiados no meio do salão, em volta do púlpito de acácia.
XV - O Tormento
As corujas piavam lá fora num coral fúnebre. Os três pares de olhos avançavam para o centro do salão. A lua lá fora brilhava parcialmente, era crescente, por detrás das nuvens escuras. De repente um corpo juvenil foi lançado para o centro se estatelando no púlpito.
- Brigite – berrou a menina vampira. – Seus desgraçados! Ela é um pobre e inocente humana. – Os olhos flamejantes de Amber se acenderam mais do dos três vampiros juntos.
- Vejo que tem muita amizade em jogo aqui! – disse uma voz rouca e feminina de uma vampira. – Era morena e em suas unhas havia sangue. Seus lábios eram constantemente lambidos por uma língua bifurcada. Seu nariz e orelhas pendiam vários piercings.
- Maldita Melissa! – Esbravejou o bruxo Caleb.
- Olha se não é o bom e meigo Caleb... – a vampira se adiantou e se pôs frente a frente com o bruxo encarando-o.
Amber numa velocidade incrível socou-a com toda força que pôde e continuou indo para cima da morena, em cada soco lhes arrancava algumas peças de metais do rosto dela.
- Você devia amar aquela vaquinha lésbica! – passou as garras no pescoço de Amber jogando-a para a escuridão no fundo do salão.
Nichodemos tentava algumas magias de proteção enquanto os lobisomens brigavam com os outros dois vampiros. Por não ser lua cheia a transformação não poderia ser completa. Somente dentes e garras se aguçavam sem a proteção da pele grossa e peluda de lobisomem. Caleb correu para a escuridão à procura de Amber. Rômulo comandava uma ventania dentro da nave. Barak congelava o menino Tobby.
- Ataque com tudo o vampiro de poder congelante, ele não está parecendo muito bem – disse Cammo notando que Barak estava com a pele muito ressecada e queimada.
- Eu, sem os dois braços posso com vocês seus bandos de pulguentos.
Alfred avançou no pescoço do vampiro e o jogou contra os primeiros bancos de madeira rústica.
Luke uivava e pula de banco em banco espreitando a vampira morena. Sarana uivou e conseguiu uma transformação completa, uma imensa loba branca.
Cammo sorriu e se concentrou o que pôde e logo começou a se transformar num gigantesco lobo cinza.
Alfred estraçalhava um braço do vampiro Barak.
- O Monarca já não é o mesmo – caçoou Caleb trazendo nos braços a filha desacordada.
- Subestimam-me seus bruxos e cães fedorentos – o vampiro pulou o mais alto que conseguia e seu braço cicatrizava duma maneira fantástica. Umas tochas foram acesas nos cantos da grande nave. Tudo estava um pouco mais visível. As chamas foram atiçadas pelo velho Nichodemos através de uma magia.
- Cadê Karl? Ele está demorando demais para chegar com seus artefatos para expelir os dentuços.
- Suas mágicas estão uma piada meu velho Nicho... – encaminhava Barak, - Melissa usou palavras simples e o sangue daquela menininha, e puff! Entramos! Hia! Hia! Hia!
- Pague para ver seu imundo e sem alma – o velho encarou o vampiro. – Verum Venenum! – berrou Nichodemos enquanto Barak pregava as presas terríveis no pescoço dele.
Um rebuliço entre os bancos estalavam como que quebrassem aos mil pedaços. Alfred separava a cabeça do corpo de Melissa. Ajudado pelos meninos Tobby e Luke. Alfred estava exausto, havia conseguido se transformar num lobão preto e levemente despelado nas costas. Caiu de tão cansado, suas patas sangravam.
Cammo e Sarana lutavam com o Principal. Rômulo estava cercado e invocava muitos ventos gelados.
Um imenso nevoeiro se propagou e ninguém podia ver um ponto de luz, pois se apagaram as chamas das velas e tochas dentro do salão.
Um silêncio infernal rompeu dentro da gigante nave de pedras. Jazia ali os corpos de Melissa, Brigite e Barak.
- Fiat lux – Nichodemos usando um encanto fez acender alguns castiçais e um candelabro de prata no fundo onde havia um órgão de fole, com móvel em carvalho e teclas artesanalmente feitas de ossos humanos. E a luz se fez presente pela voz frágil e debilitada do velho.
- O que houve com Barak? – perguntou Caleb impressionado com a fisionomia azulada do vampiro Monarca.
- Lavrem uma estaca daquele órgão. Arranquem um bom pedaço e lavrem uma estaca de carvalho e meta no coração desta praga – respirou com dificuldade, - andem rápido. Vocês me ouviram – com ímpeto o velho ordenou e foi deslizando encostado no púlpito.
Cammo foi ligeiramente e arrancou uma boa lasca da madeira do órgão e voltou ferozmente babando para terminar com o vampiro paralisado ali no centro. Chegou e voltando aos poucos em forma de homem levantou a estaca e bravamente enterrou no peito de Barak.
- O Que houve com ele...? para que paralisasse – perguntou o menino Luke.
Caleb deixou a filha deitada num banco, dos poucos que estavam inteiros, e tentou socorrer o velho com algumas palavras antigas e encantamentos. O velho foi ficando com a coloração azul e sumindo o sentido fechou os olhos.
- Ele está morrendo? – berrou Tobby.
- Infelizmente sim. Ele envenenou o próprio sangue com o encanto do verdadeiro veneno. Assim conseguiu paralisar o dentuço imbecil que foi sugá-lo. – fez força para sorrir, mas seu rosto se desmanchou em choro e lamento. – Vampiro que suga bruxo consegui evitar ou atiçar alguns encantamentos, por isso Melissa tinha alguns dotes mágicos... tive o desprazer de ser sugado por ela uma vez... num tempo remoto... quando namoramos... certa vez, quase me levou a morte.
- Mas ele pediu para metermos uma estaca no maldito... – completou Cammo.
- Pois um vampiro, nesse nível, como Barak poderia se curar do envenenamento, dependendo do tanto de sangue que tomara, daí o velho bruxo teria morrido em vão.
- Que nível é esse? – despertava Amber.
- Ele é do Primeiro Sangue, mas domina os elementos, espectros ou poderes como os Matusaléns fazem.
- E essa vaca? – perguntou Sarana.
- Ela é do Segundo Sangue, mas adquiriu conhecimentos de Primeiro Sangue e algumas mágicas como disse anteriormente.
- Eu... Não posso partir sem dizer... a maldição no porão desse castelo requer uma vida e todos os conhecimentos estarão libertos... Eu nunca vi nem entrei lá... Se tivesse força... Eu mesmo... Agora entraria lá... Tem de ser espontâneo... e dar-se por inteiro ao desconhecido local... E deveras maldito... – deu o último suspiro e morreu.
O ar estava tenebroso e alguns relâmpagos se propagavam lá fora inundando o interior do salão com seus clarões frenéticos. Sarana uivou e fitou as sombras tenebrosas que dançavam após eles no centro.


XVI - Retomada
Os meninos lobisomens retiraram de uma mala um enorme pedaço de presunto e ofereceram à menina faminta, Amber não pensou duas vezes em pegar.
- Está bom, mas... falta alguma coisa – a menina encarou o pai e Caleb inclinou-se em atenção a ela.
- Sangue... filha. Esta é sua maldição. A sede de sangue a fome voraz que perturbará seu estômago. Mas, você é uma hibrida e conseguira com mais facilidade controlar sua sede e utilizar sangue de animais uma vez ou outra para manter-se forte. Eu fazia-lhe chás de todas as espécies para inibir seu lado sombrio, mas agora é hora de seu controle próprio.
- Entendo... – mirou a amiga esticada no chão de pedras polidas. – Temos de entregá-la a sua família.
- Pode deixar comigo – disse Cammo ajeitando um jaleco amarelo e um crachá falsificado que o identificava como um agente de polícia de estradas. – Posso dizer que houve um acidente com a menina, mas preciso de um amuleto de confiabilidade...
- Existe tal coisa? – indagou a mulher de cabelos negros e olhar sedutor.
- Existe muita coisa que nem podemos imaginar, minha amiga, e com este velho aos nossos pés morreram boa parte da sabedoria dos bruxos – Caleb limpou uma gota de lágrima. – Levarei este velho ao fundo e o cremaremos antes do nascer do sol – devia ser umas cinco e meia naquele instante.
- Teremos um pouco de paz de dia, não teremos? – a menina devolvia um bom pedaço e os meninos Luke e Tobby acabaram com o resto do presunto.
- Acredito que pelo menos até a próxima noite, querida.
- Dê-me um pouco de sangue para que eu fique um pouco mais forte meu pai.
Caleb observou dentro do seu casaco e trouxe para fora um frasco de cristal. O líquido vermelho cintilava nas tímidas luzes que o apresentavam.
- Sangue de porco. Alguns humanos comem isso cozido – falou Alfred se levantando do chão frio e franzindo o carão que tinha. Ajeitou os óculos.
- Não deveriam... – com abatimento no semblante o bruxo deu a sua filha.
- Vocês se transformam fabulosamente – Amber fitou a mulher e Cammo.
- Alguns lobisomens fora da lua cheia conseguem transmutar-se em lobos... nem todos... mas os que são amigos de bruxos conseguem um berloque contendo um encanto de animália... a pessoa transforma-se na fera que mais lhe apraz ou deseja. Esse encanto nós três conseguimos com o velho Nichodemos. – Envolveu o corpo de Brigite numa toalha branca que cobria uma grande mesa rústica. Caminhou para fora acompanhado pela Sarana que vestia um jeans azul e lançara sobre si uma manta de lã. Acompanhou até a porta que dava para rua, após a saída de Cammo a mulher fechou os portões estourados com estrondo empenhando enorme força para travá-los.
- Um pouco de privacidade é o que nós precisamos para ajeitar as coisas aqui – comentou Sarana.
- Eu preciso ver o doutor Babel – disse Caleb. – Fique aqui meu amor. O lugar com o nascer do sol ficará um pouco seguro.
Caleb foi saindo pela porta do fundo levando o corpo do velho com a ajuda de Alfred. Há uma pedra cerimonial nos fundos do terreno deste castelo, o colocaremos lá.
Duas tochas foram inflamadas e o velho foi posto deitado sobre a pedra cerimonial. Gravetos foram colocados um a um sob palavras em latim: cremo carus dux hodie. Honoro humilis in immortalis hortus.
Encostou as tochas e a chama se levantou rapidamente.
Depois de longos segundos cabisbaixo, Caleb elevou os olhos para a direção da fumaça.
- Vem do norte um casal de caçadores e vem do sul cinco seres das trevas – ao ouvirem as palavras do bruxo todos se arrepiaram, exceto Amber. – Não há muito tempo, vou ver Babel e buscar uma força e mais ajuda com ele. Recebam o casal e se cuidem aqui dentro do perímetro do castelo.
Todos desviaram um segundo de olharem para o bruxo e ele já desaparecera.



XVII - Os Caça-Trevas
Poucas horas depois que Caleb saíra. Uma caminhonete azul bem antiga subiu os gramados sagrados do jardim da frente e parou sobre um canteiro de orquídeas carnívoras.
Um rangido e as portas do veículo se abriram sincronizadamente.
Botas escarlates pisaram o chão relvado com firmeza e um chicote pendia à cintura da mulher de quase trinta anos, Rebecca Saintcross: cabelos lisos e castanhos claros; olhos verdes penetrantes; sobrancelhas finas; lábios provocantes e brilhantes; unhas vermelhas; jaqueta vinho de couro; um metro e setenta e sete; pele clara. Numa alça pendia uma escopeta calibre doze e seis estacas de madeira presas ao colete de baixo da jaqueta.
Uma figura masculina desceu por outra porta usando um sobretudo preto; calça jeans azul e camiseta verde oliva. Dante Jordan: olhos cinza claros; pele pálida; cabelos extremamente negros curtos e arrepiados. Trazia duas pistolas sob o casacão.
Havia apenas um item em comum com casal que descera da caminhonete: um crucifixo de prata pendendo no peito. Formato gótico e a corrente era de grandes elos.
- Houve ataques por aqui – Dante tinha uma voz seca e interrogativa, - e estamos no local onde nosso mapa apontou.
- Clarividência? – perguntou Luke.
- Não, meu rapaz. GPS mesmo. Quem me dera ser vidente com alguns feiticeiros e bruxos – sorriu gentilmente ao garoto de olhos estalados.
- Mas devo acrescentar que foi um aviso dado pelo doutor Charles Babel no blog da Plêiade – completou a voz doce e profunda da caçadora. – Havia risco nesta região... incidência de ataques dos seres das trevas.
- Correto. Estavam corretos as informações e pessoas boas e inocentes já morreram nessa noite – esbravejou Amber.
- Uma amiga dela... uma humana... – cochichou Sarana e o homem pálido ouviu claramente por sua audição aguçada.
- Lamento sua perda, minha jovem... vampira – Dante se aproximou e levantou o queixo da menina. Os olhares cruzaram como uma seta de fogo que se aprofunda no alvo.
- Sua lamentação não a trará de volta – deu de ombros de correu para dentro do castelo.
- Nos desculpe. Ela ficou sabendo a pouco que é uma vampira e ainda perdeu a melhor amiga de escola – Sarana aliviou a tensão.
- Eu sei o que é isso, ...
- Sarana, meu nome é Sarana.
- Sou Dante. E sei o que é perder alguém.
- Sou Rebecca, caçadora e parceira deste vampiro grosso aí – sorriu apontando o dedo ao companheiro, - e sou humana.
- Que cruzes maneiras vocês têm aí! – Tobby falou.
- Nossa força a mais, nosso diferencial – sorriu lindamente Rebecca. Havia uma joia no centro da cruz. Muito vermelha. Parecia uma bolha de sangue viva. Uma pedra de jaspe vermelhíssima. – Nossa Lapis Sacra.
- Seu chicote é estranho – Luke curioso rodeava a mulher.
- Meninos, para que incomodar nossos amigos – Sarana ficou brava.
- Deixe-os Sarana. Eu explico. – Retirou da cintura e espichou o chicote e depois uniu a ponta com a parte que saía do cabo – isso é terrivelmente mortal aos vampiros...
- Eu fico meio... que longe quando ela vai usar esse treco – sorriu o vampiro.
A mulher uniu e o chicote tornou-se um rosário de contas vermelhas e negras. As que saiam perto do cabo eram mais grossas e gradativamente diminuíam até chegarem à ponta.
- O Rosário do Sangue. Cada conta tem uma gota de sangue de um santo ou caçador milenar. As contas que estão negras são as que já foram utilizadas. Eu preciso descobrir quem nos nossos dias é capaz de encontrar o local em que se recarrega o poder deste artefato. Ele é magnífico em sua eficácia.
- Eu posso imaginar – suspirou Alfred encarando o objeto enquanto a caçadora o recolhia à sua cintura. Suspirou com um pouco de uivo ao fitar a beleza sem igual da humana.
A manhã foi clareando e todos prepararam bolos de carne nos fogões internos no castelo, na ala leste. Beberam vinho tinto e comeram bocados de bolos. Amber sentiu-se bem pela primeira vez desde a primeira transformação. Havia tomado aquele frasco de sangue e agora se empanturrava de bolo. Sua mente fervia em pensamentos de como estariam reagindo os familiares de Brigite. Pobre sonhadora. Não perdoaria qualquer vampiro das trevas naquele momento.


XVIII - Saint Peter
As coisas pareciam ter enlouquecido em cada canto, rua, esquina e pubs por onde Caleb passava. Estava dirigindo uma van que era de propriedade da Plêiade do Sangue. Alguns acenavam para o van, deveriam ser filantropos que auxiliavam a entidade ou alguns membros e congregados dela. Briga nos bares barra pesada deixaram sinais nas ruas como garrafas e cadeiras quebradas, poucos carros de policiais passavam por ali.
Traços de sangue próximo ao local onde ficava o edifício Saint Peter. Dúzias de pessoas circulavam por ali meneando a cabeça e resmungando idiomas estranhos.
Parando o van o bruxo percebeu que eram pessoas que não conseguiram entrar no edifício desde a vigília passada.
Uma bruxa corcunda e cheirando a naftalinas chegou perto de Caleb:
- Oi, doutor Caleb – era considerado doutor em Herbologia Amazônica, - o senhor sabe o que se passa, pois nenhum de nós pôde entrar. Deve ser uma grande magia nos interrompendo fazê-lo.
- Deixe-me ver a situação das portas e janelas – o bruxo ficou nas pontas dos pés estudando alguma coisa que um normal não enxerga. – Está trancada por dentro. Uma magia obscura. Preciso de três pessoas conhecidas lá dentro. Alguém conhece quem pode estar lá?
- O doutor Babel é certo que esteja – falou uma moça de cabelo muito branco, como lã, e bem liso.
- Eu vi Tânia e o pequeno Donovan – disse um velho de rosto muito enrugado, suas bochechas pareciam as de um buldogue.
- Obrigado senhor e a senhorita – a menina sorriu singelamente e o velho tossiu.
- Sou Patty de Patrícia... sou a cabeleireira que o senhor nunca visitou – fez cara de brava.
- Desculpe-me senhorita. Vou tentar não cortar meu próprio cabelo e passarei no seu salão.
- O senhor parece brigar com o pente todos os dias. Desculpe-me a franqueza?
- Que isso – riu esticando os lábios fechados.
- Espero sua filha linda também – sorriu novamente.
- Pode deixar, senho...rita Patty – engoliu palavra.
Alguns vampiros estavam apavorados, pois alguns possuíam poções em berloques e colares que tinham pouca durabilidade perante o sol. Aguentariam um pouco de sol até começarem a queimar, por isso alguns já haviam voltado para suas residências. A combustão vampírica é horrível. Primeiro eles começam a esfumaçar até serem inflamados pelos raios ultravioleta do sol.
Lobisomens uivavam como cantigas e isso perturbava quem tinha pressa para fazer algum trabalho dentro do prédio.
- Vai demorar doutor? – perguntou um negro. Vampiro dentista. – Meu bracelete suporta cinco horas de sol por dia e hoje farei compras com minha esposa... não posso desperdiçar os minutos preciosos.
- Entendo e pelo jeito ela é humana, não?
- Exatamente meu caro doutor.
- Não demoro. Preciso me concentrar agora e lembrar algumas Palavras Antigas. – agachou-se perto da porta principal e mexia os lábios como em uma oração intensa pronunciando fonemas incomuns a qualquer idioma conhecido, e indescritíveis.
Um estampido ensurdecedor rajou e umas dezenas de vidros se estraçalharam.
- Correto... as três pessoas citadas por vocês estão lá dentro e lutavam para sair desde ontem a noite...
Um alvoroço se formou e em segundos ninguém mais estava na calçada, principalmente os vampiros.
- Caleb – gritava Tânia, - que bom vê-lo meu amigo. Eu e Babel estávamos preocupados com você e com os outros.
- Vocês sabem o que houve?
- A Vidente Hilma... – uma bruxa de cabelos ruivos acenou no canto da sala, enquanto Tânia dizia... - nos anunciou a morte do ancião Nichodemos e o ataque dos filhos das trevas... – respirava fundo e... – cadê os desgraçados?
- Acredito que algum deles fez essa tranca mágica aqui no prédio.
- Não veio ninguém incomum aqui ontem pela tarde ou de noite... – pensava Babel.
- Pense bem meu amigo. Reflita em algo menos que incomum – Caleb olhou para uma cadeira e viu uma vampira muito magra.
- Pode ter sido ela – cochichou o bruxo, mesmo sabendo que a vampira poderia o ouvir perfeitamente.
Ela despertou e o fuzilou com os olhos em brasas.
- Impossível. Quase morri pelas presas de Rômulo Crow o Principal... se não fosse Babel eu seria uma cantiga em bocas de velhas nesse momento.
- Exato. Ela foi atacada no teatro e eu atirei de lá. Ela está muito fraca... a abstinência de sangue de todo os tipo, humano ou animal, está aniquilando sua vida.
- As beterrabas e raízes bravas não estão dando resultado como deu a minha filha por centenas de anos?
- Pois sua filha nunca havia tomado sangue e isso fez que o trtamento com beterrabas e raízes surtissem melhor efeito, mas a uma vampira velha e sugadora de sangue é quase impossível uma mudança radical dessas.
- Tirando a “velha”, vocês podem me tratar como quiserem... doutores!
- Desculpe-me! – sorriu Charles e voltou a conversar com Caleb. – Disse que ela deve tomar sangue de animal regularmente e ela não quer.
- Eu quero morrer. É isso mesmo! Para que serve a eternidade? Beber e beber? Transar e não ser fértil para gerar um bebê sequer.
- Faça como eu, Desdemona, adote um filho – brincou com o Donovan e ele sacudiu o pequeno chocalho.
- Preciso de um pai... um cara que eu queira ter sexo e família primeiro...
- Isso mesmo... já é um ótimo começo... querer mudar de atitude além de ter mudado de prática, como a prática sanguinária em que vivia.
- O Rômulo é o cara que eu queria, mas ele é patético e continua com sua sede a tona...
- Ele faz parte da Sociedade das Trevas e parece irredutível no caminho obscuro. Não se converte a humanidade nem com toda magia do planeta.
- O desgraçado é o Principal... e me chupou nesse dia em que Babel me socorreu... ele estava para por um fim em mim... mas eu nunca... nunca diria a ele nadinha sobre a Poderosa Sophia...
- Você sabe onde está Sophia? Depois que ela desapareceu na Nova Inglaterra a dei como morta e continuamente apagava as lembranças dela da memória de nossa filha e até de mim mesmo...
- Não me diga que tomou alguns dos meus remédios de esquecimento? – Babel perguntou com extrema indagação. Caleb balançou a cabeça positivamente.
- Por isso nem mesmo eu saberia dizer muitas coisas para minha filha sobre ela... estava contando a história de como nos conhecemos e a partir do navio MayFlower... tudo ficou desbotado na memória e apagado.
- Olha... pensando bem... falando em memória, lembrei-me de alguém que veio ontem por altas da noite... – coçou o queixo.
- Quem, Charles?
- Seu aprendiz... o Karl. Ele estava estranho e te procurava como louco.
- Engraçado. Saímos de casa juntos e íamos para o castelo da Plêiade do Sangue. No caminho ele enfrentou um vampiro e até a hora em que saí do castelo ele não havia chegado...
- Quem era o vampiro? – indagou Tânia.
- Creio que fosse Caim...
- O Toma-Vidas?! – a fisionomia de Babel ficou assustadora.
- Está explicado, então. – Desdemona pulou e ficou de pé. – Ele come o coração e transforma-se naquele indivíduo. Ele matou e comeu o coração de Karl o rapaz caçador e aprendiz de feiticeiro. Era um belo jovem. Pena não ter tido tempo de catá-lo em uma noite dessas – olharam para ela. – Calma pessoal. No bom sentido é lógico. Parei de fazer mal as coisas bonitas do mundo – sorria friamente e seu semblante foi ficando vampiresco.
- Devo voltar o mais rápido possível até o castelo, pois minha filha pensará que o jovem é ainda o caçador Karl – elevou a voz o bruxo.
- Vou contigo – Babel vestiu um casaco de búfalo.
- Eu não perderia por nada – Desdemona puxou a jaqueta e vestiu.
- Eu preciso cuidar de Donovan e voltar para casa, pois meu marido passou a noite sem mim. E inventar uma boa história.
- Diga que por uma magia estranha você ficou presa no consultório do doutor Charles – Desdemona deu uma gargalhada sinistra.
- Cala sua boca, vadia!
- Estou brincando, meu docinho – saiu mandando beijos para Tânia.
Os três entraram no van e saiu a toda pela avenida que tinha pouco trânsito. Tânia os fitava virando a esquina e suspirou em Palavras Proibidas.
O sol esquentava, mas não muito, nem perto de derreter o gelo amontoado, devido à nevasca dos últimos dias, nos telhados.



XIX - Lacaios dos Seres das Trevas
O van era munido de muitas armas. Havia duas escopetas e várias munições de prata. Uma espada de samurai, dardos, cutelos de madeira, adagas de prata e diversos potes com misturas de raízes e ervas mal cheirosa.
- Esse carro me dá arrepios! – exclamou Desdemona.
- De fato aqui dentro há um arsenal bem legal para quem quer acabar com a nossa raça e a dos lobisomens – apontou para os projéteis de prata.
- Todo cuidado e defesa é pouco em se tratando de vocês, vampiros, meus amigos – o bruxo deu uma risada apreciativa e os dois vampiros riram obliquamente.
- Olhem para aquilo – indicou Desdemona colando-se ao para-brisa.
- Lobos gigantes. Transmorfos – são os únicos que se transformam durante o dia, geralmente são usados como cães dos vampiros, – pensei que a Matilha das Trevas havia se extinguido em mil oitocentos e dezoito.
- Pois é. Aquele seu amigo Cammo chegou a ser o líder da matilha – disse Charles pegando a escopeta e projéteis de prata.
- Por que a prata machuca esses cães? – indagou Desdemona analisando a espada de esplêndido brilho.
- Ela nos machuca também. Mais que um chumbo qualquer... – Babel explicava, - mas os lobisomens e transmorfos são afetados até mesmo se tocarem.
- As trinta moedas de prata amaldiçoadas por trair um sangue inocente – completou o bruxo ajeitando um trinta e oito na cintura.
Puxou o freio de mão jogando o veículo em três cães vermelhos acastanhados, dois pularam no para-brisa quebrando-o metendo as garras com ferocidade. Uma rajada de escopeta explodiu no peito da besta e ela foi parar longe do carro. Babel pulou para fora e engatilhava o trabuco novamente. Estavam a duas quadras do castelo da Plêiade do Sangue. Haveria quase uma centena de lobos e enormes cães por ali. O bruxo seguia a frente dos vampiros e disparava nos cães menos covardes ou mais corajosos em atacá-lo. Desdemona desferia golpes e lances magníficos com aquela espada samurai. A vampira aplicava cortes perfeitos e fatais. Uma cena de guerra e terror na claridade do dia se misturava aos gritos de poucos humanos que passavam por ali e os urros de feras raivosas.
Um garotinho gordo corria de um cão que só não o devorara ainda por estar gostando de vê-lo correr suando, berrando, caindo e levantando. O bruxo foi em direção ao cão usando alguma magia para que seus passos fossem mais rápidos que o normal. Disparou três tiros e dois pegaram o enorme cão que brincava com sua presa rechonchuda.
- O senhor é policial? – bufava de cansaço o garoto gordo.
- Quase isso, menino, quase isso! Diria que sou do Controle de Animais. Corra para um lugar seguro. Corre! Corre!
O gordinho saiu capotando e levantando até virar a esquina.
Um trilha de sangue e chamas se fazia atrás dos dois vampiros. Caleb ia mais distante, porém com a visão focada nos parceiros vampiros.
Já avistavam o grande castelo de pedras e uma alcateia se formava em frente a ele.
XX - Cães Entre Nós
Um ruído fora do castelo perturbou o final da refeição dos que estavam no interior do castelo. Logo as janelas altas se estilhaçaram de uma vez e enormes cães entraram. Dezenove cães ferozes se propagaram no interior gelado do castelo. Sarana se concentrou o bastante e transformou-se na gigantesca loba branca, ela dava três dos cães em estatura. Olhou para os meninos e eles entenderam que era para se esconderem, pois Luke e Tobby não eram transmorfos e suas forças de lobisomem se faziam na presença da lua, a saber, completamente em lua cheia. Os meninos magricelas entraram de volta na cozinha e se trancaram. Alfred jogou os óculos na parede e se transformou babando de raiva e no primeiro lance pegou um cão pelo pescoço e lançou-o nos degraus próximos ao centro do salão. Sarana eliminava o segundo cão gigante rasgando-lhe a barriga com suas potentes garras.
Dante disparava contra dois cães. Aguçava seus olhos e ouvidos para sentir qual dos animais estaria mais próximo dele ou de sua parceira. Rebecca lançava adagas de prata e não errava um tiro sequer.
Amber estraçalhava os cães como se fossem cabritos novos. As garras de um cão negro rasgou a face de Amber e na ferocidade da luta a menina aguçou suas unhas e as enterrou no peito do grandalhão e ele esganiçou até morrer. O rosto de Amber foi-se curando enquanto ela desferia um soco violento no focinho de um cão pardo, e ele foi para nos fundos do salão, morto com apenas um soco.
Ganidos, urros e muitos sons de destruição podiam ser ouvidos do lado de fora da nave de pedra. Agora. Faltavam apenas dois cães.
Dois disparos vieram de fora. Babel e Caleb os efetuaram.
- Como estão vocês? – Caleb veio correndo para sua filha e a abraçou e a menina foi retornando às feições singelas de uma inofensiva adolescente. Suas unhas normalizaram. Seus olhos voltaram das brasas. Suas presas diminuíram.
- De onde vieram esses cães? – disse Sarana no momento em que voltou a forma humana, pois em forma de lobo os transmorfos não emitem palavras.
- Matilha das Trevas... creio que seja – respondeu Babel passando um trapo velho da arma dando um lustre nela.
- Estão pegando pesado... mesmo – gemia Alfred. – Fui atacado por cinco ao mesmo tempo. Aí ferrou!
- Tenho no carro alguns potes de pasta curativas feito de inúmeras ervas. Vou busca-lo. O carro ficou a duas quadras daqui.
- Não, – disse Desdemona. - Fique com sua vampirinha que eu busco o furgão. – A vampira muito magra e seca se moveu numa velocidade incrível e ninguém, a não ser os vampiros dali, a viu sumir pela entrada principal. A grande porta estava escancarada novamente. Com toda certeza os vampiros eram mais velozes que os lobisomens.
Os meninos lobisomens saíram do esconderijo e viam o estrago feito pela briga.
- Demais! – Luke disse boquiaberto.
Dante amarrava suas botas e numa delas cintilava um punhal de exímio brilho e uma dezena de cruzes estava gravada no corpo da lâmina.
Caleb de longe via sua filha numa conversa muito gesticuladora com o caçador de vampiros. Estaria ela reafirmando os ditos do pai, confirmando a veracidade sobre os vampiros, pensava o bruxo inquieto.
XXI - Pior, Que Seja!
Babel trabalhava com os ferimentos em Alfred e conversava com Caleb sobre sua última visita ao velho Nichodemos.
Rebecca arrumava suas tralhas de guerra e era cobiçada pelos olhares dos lobisomens adolescentes a ponto de uivarem disfarçadamente. Ela os chamou para que se aproximassem dela e deu de conversar com eles.
A tarde chegava trazendo um frio horrível e Cammo despontou pela porta com um semblante aterrador...
- Que houve? – indagou Caleb.
- Aquela vampira vaca! A Desdemona jogou um furgão em cima de mim e capotei como um cachorro de rua por cima de alguns latões de lixo – ele mancava e mostrava a pouca roupa que tinha rasgada e os ferimentos cicatrizando-se lentamente.
- Está com fome? – Sarana docilmente perguntou.
- Morrendo...
- Por favor – indicou que a seguisse, - na cozinha ainda há bolos de carne.
- Também estou com fome, mas – sorriu – diria melhor com a palavra sede – pegou um cantil de dentro do sobretudo e o abriu. – Algum vampiro quer um gole? – apontou primeiro para a menina vampira e depois para Babel.
- Não. Obrigado! – respondeu o médico.
- É de gente ou de animal? – Amber ficou curiosa.
- De gente. Mas não a matei. Tirei o suficiente para que ela fosse internada, mas não a matei.
- Dante. Por favor?! – Rebecca esbravejou e se pôs de pé.
- Desculpe-me, mas falei a verdade – ele com sua voz galanteadora seduziria qualquer mortal a lhe dar o sangue que precisasse, principalmente as mulheres.
- Posso experimentar? – Amber fitou o pai.
- Filha não a proibirei de nada. Porém, esteja ciente que uma vez provando o sangue humano não tem mais volta. Nunca o sangue de animal a saciará novamente. Veja o exemplo de Desdemona que acabou de nos trair sabe-se lá por quê.
O clima ficou mais tenso enquanto Dante virava o cantil na boca.
Babel irrequieto começou a resmungar.
- Que foi, amigo? – o bruxo o encarou.
- Temos de despertar Sophia – falou com a voz rouca e tenebrosa. Seu corpo magro e espichado girou como vara verde até encontrar os ativos olhos de Amber.
- Mamãe está por perto?
- Fiquei sabendo que sim... numa das visitas ao bruxo ancião Nichodemos.
- E escondeu de mim... – Caleb enfureceu-se.
- Quanto menos pessoas soubessem disso, melhor seria para a Plêiade do Sangue.
- Meu melhor amigo escondeu de mim o paradeiro de minha amada...
- Não é bem assim, Caleb...
- E como é?
- Ela não está entre nós... ela jaz no descanso provisório Capital dos Sem Alma. Uma prisão em que o corpo dorme eternamente e apenas por maldição ele consegue retornar.
- Não brinca comigo... nunca ouvi de tal lugar...
- Eu também nunca tinha ouvido meu velho amigo... olha que sou mais de mil anos mais velho que você – tentou contrair nos lábios finos um sorriso e seus caninos apareceram.
- Como tiramos mamãe de lá?
- Por que mexer com uma vampira que descansa? – indagou Dante arrumando o colar com o crucifixo gótico.
- Porque um mal, um ser mais maldito que tudo está por trás daqueles vampiros que começaram essas investidas e eles estão atrás dela. Se a despertarem, eles poderão conduzi-la em seus feitos malignos e o mundo sofrerá a Peste Vampírica que na Baixa Idade Média dizimou um terço da população no planeta.
- Aprendi na escola que isso era a Peste Bubônica.
- Sim Amber. Podem até dizer que os culpados eram pulgas e ratos, para não referirem aos seres noturnos que sugavam pessoas e elas ficavam fracas e vulneráveis a qualquer bactéria por mais simples que fosse.
- Nossa! – os lobisomens meninos em coro.
- Várias pestes acometeram o povo do mundo desde os tempos mais remotos e só centenas ou milhares de anos depois foram que a ciência deu uma explicação... então ficamos com a que mais nos fizer sentido – Babel riu um pouco de cabeça baixa olhando para os sapatos de couro marrom.
- Bem! Agora Desdemona diz aos das trevas onde estamos e pereceremos aqui trancados – lentamente Alfred explanou um comentário.
Rebecca sentou-se no púlpito elegantemente esticando sua perna esquerda sobre a madeira e com a outra golpeou o assoalho debaixo do púlpito.
- Gosto de madeira velha. Com um golpe rompemos e descobrimos coisas interessantes.
- Pois é minha parceira! Você achou a entrada secreta duma cripta no subsolo desta nave.
- Nunca fui só um corpinho bonito meu caro Dante – ela sensualmente debruçou-se ao buraco e acendeu sua lanterna procurando algum dispositivo para entrarem na câmara oculta, a saber, a tal cripta.
Um vento frio assoviou dentro do grande castelo e o teto pareceu ranger com algo pesado.
- Espero não ser tarde! – Charles Babel olhou para cima.
- Que devemos temer mais que acordar a Sophia? – Dante o encarou.
- O pior dos demônios vampíricos: Evil-Mardoc.
- Já ouvi dizer que ele tem uma pele grossa, cara monstrenga, asas, rabo, etc.
- E muita maldade minha pequena Rebecca – Babel respondeu calmamente a mulher caçadora.
Ela esqueceu um pouco da lanterna e deixou que seu parceiro procurasse algo na escuridão do buraco, pois a visão de vampiro no escuro é melhor que binóculos infravermelhos, que dizer de uma lanterna.
- Vi uma alavanca... quebrada... mas deve ser o dispositivo – Dante arrancou umas tábuas com garras, socos e tapas.
Os ruídos nas pedras do castelo se intensificaram.
Babel jogava um líquido de cheiro horrível sobre os ferimentos de Alfred, pois os remédios necessários nunca voltariam com Desdemona e o furgão.
Grunhidos animalescos do lado de fora imperavam e a tarde se tornava negra. Muita nuvem escura favorecia os caminhantes noturnos naquele instante. O terror e a tensão saiam pelos poros. Grunhidos como de porcos selvagens aproximavam. Aos ouvidos vampíricos chegava o som milésimos de segundos depois dos ouvidos de lobisomens. O faro dos lobisomens também era mais aguçado que a dos vampiros. Mas, uma visão no escuro era o melhor dos sentidos para um vampiro, sua força descomunal e inteligência tornavam os vampiros muito superiores aos lobisomens. Fora que a força total de um lobisomem acontece somente no período de lua cheia.
XXII - Destrancando Maldições
O silêncio assolou toda a nave. Cessaram os ruídos nos paredões de pedra. Os lobisomens farejavam o ar sinistro e gelado que adentrava pela frente, pela porta entreaberta. Ninguém queria pensar numa batalha tão logo. Dante escavava as madeiras como se fossem gravetos ressecados. O vampiro aguçava as garras e sua parceira o fitava com muito apreço. Suas cruzes cintilavam em consonância com seus olhos. Aquele crucifixo eximia um brilho esplendoroso diante dos pequenos feixes de luz dentro do castelo. Amber admirava a joia vermelha no centro da cruz.
- Coração de Pedro...
- Como? – indagou Amber.
- É como chamam essa joia. Vermelho-sangue. E atrás dela há uma agulha.
- Por que isso? Vocês são masoquistas... ou adeptos a algum tipo de culto?
- Não querida. Essa é uma relíquia antiga e com uma extrema magia. A cruz e seu metal poderiam ser de qualquer mineral, mas o segredo está na joia. Essa jaspe foi banhada com algumas gotas de sangue de Dante e a que está com ele foi banhada no meu. Pois, nunca se morre com essa magia. Se eu estiver morta e alguém socar a cruz e assim a agulha enterrar-se no meu peito voltarei à vida, ou se eu sentir que estou morrendo eu mesmo posso fazê-lo. Isso acontece com a de Dante também.
- Então, você não sendo vampira acaba tendo certa imortalidade.
- Graças ao encanto dessa pedra – Rebecca mostrou o lado de trás da cruz e Amber admirou-se da agulha que era mínima. Ela soltou a cruz e ajeitou o chicote que envolvia sua cintura.
Amber olhava o vampiro destruindo as últimas tábuas e apontando para a porta de pedra.
O ruído no teto voltou com terror.
Grunhidos ferozes de javalis invadiram o local.
- Parasitas! – gritou Babel.
O visual era horripilante. Os parasitas eram homens e mulheres semimortos com cabeças de porcos ou javalis em vez de cabeça humana.
Eles entraram loucamente e Dante pulou para fora do buraco em que estava e começou a atirar assim como sua parceira já fazia.
Os parasitas sucumbiam aos tiros certeiros.
- Tentem abrir a porta de pedra! – disse Dante.
Alfred se pôs de pé e seus pelos e garras se aguçaram. Mesmo muito ferido ele vociferou.
- Acho que consigo devorar esses porcos – suas presas e focinhos se alongaram.
Os meninos lobos foram para a luta imediatamente. Sarana transformou-se na enorme loba branca e avançou em dois parasitas os reduzindo a retalhos de carne.
Caleb tentava achar um meio de destrancar a pedra encantada da porta.
- Tem de haver um meio! – pensava alto com seus botões.
Amber sentiu sua face estranha novamente e seus olhos arderem em chamas. Sua transformação era muito dolorosa e descontrolada ainda. Mas, quando garras, presas, visão, audição e força vinham à tona ela sentia-se ótima. Sem demora partia para a luta lançando três parasitas ao paredão.
O cheiro de sangue fétido. Odor de suor animal. Fedor de saliva ressecada. E muita carne espalhada pela nave.
Babel estava trêmulo.
- Que foi doutor? – perguntou Amber.
- Utilizei meu poder embaralhador de mente além, muito além do normal. Baguncei a mentes desses cinquenta e oito parasitas...
- Você contou?!
- Não precisei... minha áurea psíquica foi atingindo cada um que entrava...
- E eu pensando que eles eram muito burros por natureza – Dante tentou rir, mas engoliu o riso ao fitar a parceira que ajeitava sua bota esquerda.
- Gente! – berrou Sarana com o lobo Alfred no colo. – Ele deu o resto de si na batalha.
- Grande cara! – o vampiro fez o sinal da cruz. Ele não era religioso, mas amava fazer tal sinal. – Devemos beber em homenagem a ele – retirou de dentro de seu sobretudo uma garrafa de conhaque e bebericou. Rosqueou a tampa e guardou.
Os meninos uivaram. Tobby segurava o braço direito deslocado. Luke ajoelhou e pareceu iniciar uma oração.
- Seremos alvos fáceis aqui. Temos de ralar daqui o mais rápido possível, pessoal – Dante parecia impaciente.
- Encarar o Evil-mardoc não será pouco doloroso – Cammo estava perto e na luta guardara às costas de Caleb.
- Lembre-se do que o velho bruxo dissera: “Tranca Maldição” ou sei lá o quê? – disse o vampiro Dante sentando perto de um parasita estraçalhado.
Sarana e os lobos choravam em volta de Alfred e os outros estavam mais próximos de Caleb. O bruxo incansavelmente ditava magias antigas e línguas profanas ao portal de pedra.
- Até parece que se disser “blablabla” ela irá abrir...
- Dante... dá um tempo – Rebecca calou o amigo. O vampiro extremamente pálido calou-se.
A pedra ruiu. Pedacinhos se desprendiam e começou a correr para dentro da grande câmara.
Teias de aranha se esticavam no máximo e se arrebentavam exibindo o fundo escuro da câmara.
- Não é que deu certo! P... – Dante pulou vampiricamente a frente de todos. – Deixem-me ir adiante. Caso alguma maldição me consuma... apertem meu crucifixo contra meu peito...
- Já que insiste – Caleb deu passagem ao vampiro.
Cammo e Babel vinham logo atrás de Caleb. Os meninos lobisomens e Sarana ficaram fora. Rebecca e Amber vinham no final da fila. Os vampiros tinham uma ótima visão no escuro, mas os bruxos, humanos e lobos precisavam de um ponto de luz. Cammo acendeu um candelabro que trazia duas velas.
A câmara era enorme como o salão superior. Demarcações no chão eram símbolos ritualistas. Dante avançava e lá atrás sua parceira caçadora o fitava com preocupação.
Babel caiu e se contorcia como louco.
- Que houve amigo? – perguntou Caleb.
- A maldição da câmara me pegou... é meu fim...
- Mas eu sou quem está à frente do grupo. Como ela o pegou?
- Cammo o leve para fora imediatamente – Caleb disse.
Rapidamente o lobo colocou o vampiro nos braços e correu para fora.
- Deveria ser sua fraqueza após o uso excessivo de seu poder lá fora – comentou Rebecca.
Assim que Cammo pulou para fora da câmara o vampiro Dante caiu contorcendo-se de dores.
- Deixe-o! – Rebecca impediu que outros tentassem fazer alguma coisa e leva-lo para fora. – É necessário que ele sofra e morra – uma gota de lágrima saía de cada olho da parceira. – Precisamos avançar e reaver sua mãe minha querida – Rebecca tomou Amber pelas mãos e a conduziu passando pelo parceiro que se debatia no chão. O coração de Amber nunca esteve tão dolorido e apertado de angústia como nesse instante.
Caleb avançava e chamava as meninas. A agonia de Dante não terminava e eles se distanciavam. Momentos depois o vampiro parara. Perecera em dores malditas. O Tranca Maldições havia sido quebrado. No fundo escuro e gelado da gigantesca câmara jazia uma mulher muito bela. Pálida. Cabelos longos levemente cacheados e loiros. Seminua. Peitos à mostra sob um vestido de ceda que mal lhe cobria. Um cálice de ouro perto dela. Uma bacia de pedra perto do cálice. Uma água borbulhante expelia vapores. Parecia estar fervendo. O cálice brilhava como se tivesse sido polido há pouco. Caleb tentava ler ou interpretar os sinais na bacia.
- Posso! – Amber avançou alguns passos. Seu pai lhe deu permissão. Ela pegou o cálice e mergulhou na bacia. A água fervente era extremamente gelada. Sua mão ficou dolorida e um pouco empedrada.
- Filha! – preocupou-se Caleb, mas a menina fez que estava tudo bem.
Rebecca acompanhava com satisfação cada ato da menina. Cada passo da vampira era um avanço no desconhecido.
- Beba mamãe e volte para nós! – levou o cálice até os lábios pálidos da vampira e com a outra mão levada ao queixo da mulher fazendo com que abrisse um pouco a boca derramou o líquido lentamente. Um fio do líquido escorreu por fora da boca e descia como sangue. Um vermelho vivo. Espesso como sangue. Os lábios se avermelharam com o líquido.
O coração lento de Amber acelerou e descompassou.
Rebecca exibiu um sorriso e jogou seus cabelos para trás.
- Querida – Caleb arregalou os olhos diante da grande maravilha.
- Meu amor! – a voz rouca e assustadora da vampira encheu a câmara. Ao assentar-se Amber pulou em seus braços.



Recebendo a Herança

XXIII – Sangue do Meu Maldito Sangue
- Você se tornou a princesa que eu sempre sonhei e desejei ser, minha querida – abraçou apertadamente a menina franzina em seus braços e mordiscou o pescoço dela com delicadeza e carinho. As feridas causadas pelas presas iam se fechando imediatamente.
- Mãe, vamos embora daqui porque alguns seres querem vir tomar sua sabedoria...
- Fique tranquila, meu bebê. Evil-Mardoc não poderá entrar nesta cripta nem com toda ciência milenar... – um baque explodiu no piso acima de suas cabeças e poeira desceu fazendo o bruxo espirrar.
- Acho que são os caras das trevas... – disse Caleb aproximando-se da mulher e da filha.
- Não dê mais nenhum passo... – e o teto desabou aos pés de Caleb.
- Essa foi de raspão! – suspirou o bruxo... – Sua clarividência ainda está apurada, meu amor.
- Tire a humana daqui e leve o vampiro parceiro dela meu amor, e logo eu sairei com Amber... – ela puxou a filha do outro lado da câmara e o teto continuou a desabar.
O vampiro magricela estava apagado, morto, mais frio que o de costume e Caleb o lançou ao ombro para levá-lo para fora.
- A maldição é forte... – comentou o bruxo, - mas encontrarei um jeito de trazê-lo.
- Não se preocupe senhor bruxo – Rebecca juntou os punhos e socou com tremenda força a joia do crucifixo do vampiro e ele acordou cuspindo sangue.
O vampiro tossia e urrava. Cuspia sangue e rosnava.
- Nunca... havia morrido desse jeito minha cara... nunca a morte foi tão dolorosa – cuspiu e urrou por mais uns segundos. Puxou do bolso interno do sobretudo uma garrafa de conhaque. Havia uma cruz na garrafa semelhante à que ele usava no peito, uma cruz gótica. – Só assim para aquecer meu coração gelado – deu uma golada servida e sorveu o líquido amarelado, amargo, ardente e refrescante.
- Cadê os outros? – o bruxo fitava os cantos e o centro do grande salão.
- Que inferno houve aqui em cima? – guardava a garrafa. O vampiro engatilhou um revolver de seis tiros e caminhou lentamente. Seus cabelos azulados cintilavam a luz da lua formosa do alto da janela. As laterais do cabelo arrepiadas para trás esvoaçavam no pouco vento.
- Quanto tempo nós ficamos lá embaixo?
- Achava que não fosse muito... incrível que em poucos minutos os das trevas tenham feito essa bagunça... ou essa limpeza.
Sumiram todos. Sarana. Babel. Luke. Tobby. Cammo.
- Os corpos dos parasitas desapareceram também.
Um vácuo rompeu entre eles. A nave tremeu.
No portão surgiu uma figura conhecida com um semblante descaído.
- Karl?
O sujeito andava depressa e parecia não sair do lugar.
- Alguma ilusão de ótica, velho bruxo – Dante fez o sinal da cruz com a arma.
O frio golpeou os três espantados pela visão.
- Um ser das trevas fazendo sinal da cruz por causa de medo. Intriga-me ver isso.
- Não tenho medo de nada espectro voador – apontou a arma, - passarei fogo em seu corpo de halos encantados. Faço o sinal da cruz porque amo a humanidade.
- Coisa que você deixou há muito de ser meu bizarro vampiresco de terceira classe.
- Terceiro sangue sim, mas terceira classe é sua vovozinha! – disparou três projéteis em direção ao vulto.
- Merda! – urrou a sombra.
- Você o acertou – disse Rebecca soltando seu chicote da cintura, - e veremos o que esse imbecil pode fazer de ruim para nós!?
- Que vocês botam nessa porra de bala? Dói pra cacete!
- Mercúrio, sulfato de prata, e um pouco de água... quando esfriamos a bala após confeccioná-la... disparou as outras três e deu a carregá-la ligeiramente.
- Para você ficar sabendo... é água benta! – completou Rebecca.
A sombra gemia por ter sido atingida novamente e um rosto conhecido se propagou na escuridão.
- Karl... é você?
- Meu velho mestre está do lado desses monstros das trevas... logo o senhor meu bruxo!
- Cala sua maldita boca. Caim! – imperou a voz firme e forte de Sophia.
- O Toma-vidas? – suspirou Caleb.
- O primeiro e único. Tenho orgulho de ter sido o mal encarnado em diversas eras. E essas balas são do cacete – Uufh! Urfh!
- Cadê nossos amigos? – indagou Amber.
- A pequena vadia pensa que seres tão diferente têm amigos... poupe-me, criança.
- Criança? Eu arranco sua cabeça se ousar me chamar assim novamente.
- Ao lado da mamãe e do papai até um rato tem coragem gostosinha. Pena eu estar usando essa forma decadente...
- Não diga isso do Karl...
- Senti que a gatinha sentia algo pelo dono desse corpo... seria seu charme ou sua discrição que encantara a jovem híbrida. – Ele caminhou distanciando. – Meio bruxa e meio vampira... vai ser uma ótima mistura quando eu tomar sua vida... nunca gostei muito de ser mulher, mas quando tomo um corpo como o seu... eu me sinto... como posso dizer: o máximo!
- Cale-se. Falou pra raios! – disparou uma escopeta de dois canos na feição horripilante do Toma-vidas.
Um vento forte. Um sopro descomunal.
- O diabo sumiu! – disse Amber.
- Torço por vocês... na busca pelos seus amigos.
- Mas mãe?!?
- Por enquanto eu não posso deixar a Plêiade do Sangue. Eu dormia na Maldição, agora acordada nela, porém ainda presa a ela.
- Então ficarei contigo.
- Não precisa se preocupar, filha. Por que acha que eles retiraram seus amigos daqui e por que o Caim tomou quase todos os tiros disparados pelo terceiro aí – fitou o vampiro que alisava o cano do trabuco com uma flanela encardida.
- Deve ser porque eu sou bom no tiro minha rainha – sorriu o vampiro magro.
- Sim, mas o Toma-vidas é mil vezes mais rápido do que aquilo que ele demonstrou aqui. A Força dentro desses paredões impede o mal de imperar.
- Por isso vencemos toda luta travada aqui dentro. E Babel ajudou muito... e nosso bom e velho Nichodemos deu tudo de si para manter a magia do bem aqui dentro.
- Isso mesmo meu amado Caleb – encarou e aproximou-se do bruxo, - merece um beijo que valha pelos séculos que perdemos – e sua língua parecia golpear a do bruxo.
- Hm! Hm! É hora de irmos andando – Dante foi saindo de manso. Vamos querida, pois seus pais estão matando a saudade.
Amber sorriu e deu um tapinha nas costas do vampiro de cabelo espetado e no momento roxo.
- Já te disseram que seu cabelo muda de cor?
- Rebecca já me disse um trilhão de vezes. Acho que tem a ver com meu humor – riu de viés.
- Bosta! Vampiro sentimental – Rebecca pareceu com ciúmes e seguiu após eles.
O casal se afastou com dificuldade devido a saudade.
O bruxo alcançou os garotos que chegavam à porta de frente com a rua.
- Filha da Sabedoria lembre-se de Verbum Tutus – e correu deixando seu leve vestido esvoaçando na penumbra da grande nave e o céu cheio de estrelas e de luar fenomenal ilustrava o rosto angelical da vampira mais sapiente do mundo.
Caleb olhou para trás e gotas de lágrimas caíram.
Na caminhada pelas ruas o bruxo ia se martirizando com pensamentos legíveis. Como: sei que ela faz isso para nos proteger e nossa filha não precisa saber o demônio que sua mãe pode se tornar fora daquelas paredes de pedras sagradas. Tentei ajuda-la de muitas formas. Com muitos feitiços e nada. Nem toda a sabedoria do velho Nichodemos pode mudar a natureza cruel de Sophia. Dentro dos paredões ela consegue se conter pela Magia Antiga. Mas ela odeia a humanidade que a queimou viva em Salém. Ela se entregou no meu lugar e por alguns bruxos e bruxas de verdade. Por ser vampira suportaria a quase morte e se recuperaria das queimaduras em algum prazo de tempo, e assim o foi. Cuidei de suas horríveis queimaduras. Ela me amava e me ama. Eu a amo demais. Preciso entregar-me por ela como ela fez por mim certa vez. Mas fui covarde. Um merda de um covarde me escondendo na humanidade e fazendo minha filha todos esses anos viver ilusoriamente uma humanidade falsa e forçada. Espero que ela me perdoe. Espero que as duas vampiras mais importantes da minha vida me perdoem. Pois, como? Se nem eu me perdoo. Como Deus consegue perdoar?! Esse talvez seja o mistério mais nebuloso de todos. Não é fácil pedir perdão e... merda, como é difícil perdoar.
- Pai... aperte o passo. Está ficando muito para trás.
- Tem ideia de onde procurá-los? – o bruxo correu um trecho.
- Não tenho o olfato de lobisomem, mas sinto cheiro de sangue no ar como um tubarão o sente na água.
- E vamos para lá – indicou Rebecca.
- Edifício Saint Peter. Que droga!
- Eu pensava o mesmo. Pensava que aquele seria o lugar neutro... e não dominado pelos das trevas.
A noite era fria e clara. As corujas piavam. Não nevava há horas. E nesse instante tanto fazia. O ar era fria demais. As narinas ardiam. As bochechas ruborizavam. Rebecca e Caleb batiam o queixo. Amber e Dante não eram afligidos pela temperatura.
Chegaram.
XXIV - Nada Parece Ser O Que É!
O frio tenebroso aterrorizava toda a redondeza do edifício Saint Peter.
Andaram e maquinaram sobre a ideia de invadir o local silencioso e aparentemente desabitado.
Rebecca arrumava seus aparatos de caçadora e recarregava uma escopeta.
Dante desvencilhava-se do sobretudo e exibia sua forma magricela e pálida. Recarregava um revólver de seis tiros. Ajeitava duas adagas nas botas e colocava a garrafinha de conhaque na cintura.
- Por que escolheu ser caçador de sua própria raça? – indagou Amber com os olhos curiosos e grandes sobre o vampiro.
- Não é minha raça. Não sou um matusalém. Nem sou híbrido como você minha gatinha!
- Ele é de terceiro sangue – completou Rebecca fitando a menina.
- Isso mesmo. Era um humano como a Becca e fui transformado nisso.
“Meus pais eram missionários e voltávamos da Índia em plena primavera britânica. Houve um baile de máscaras e conheci Abby. Filha de um conde dinamarquês que casara com uma inglesa. Fiquei sabendo mais tarde que uma das missões de meus pais era exterminar seres das trevas, mas ainda entendia que isso seria algum ato de exorcismo e não de caça. Então, os seres noturnos, sabendo do regresso dos missionários Jordan a Melissa Hard, a Expectra, amante do conde pediu-lhe um baile e isso lha foi concedida.
Eu estava esgotado com a viajem e não queria de modo algum ir com meus pais até o baile, mas fiquei boa parte do evento do lado de fora, no jardim, pois então eu vi aquele ser angelical. Juvenil, bela, moleca, atraente, de olhos apreciativos, cabelos ondulados castanhos-avermelhados; aproximei-me:
- Não está gostando da festa? – perguntei, mas ela resistiu e não disse nada. – Caso queira falar com alguém... pois também não gosto de bailes de máscaras... causa-me medo. – percebi um singelo sorriso nos lábios dela.
- Existe uma mulher que domina meu pai – falou chorosa.
- Já ouvi os adultos falarem disso... isso é ruim.
- Muito. E foi essa mulher que pediu uma festa desse tipo para o meu pai.
- E sua mãe?
- Ficou na Suíça... casa de parentes dela... ouvi um nome diferente de todos os parentes que eu conhecia: Rômulo Crow e esposa Alice Gommer.
- Você não quis ficar com ela?
- É que eu não tive opção. Nenhuma. Fui trazida aqui contra minha vontade.
- Se estivéssemos próximos de algum porto eu te convidaria a pegar o primeiro barco para a França e de lá partiríamos para a Suíça.
- Faria isso por mim?
- Claro. Não pensaria duas vezes – e a garota me abraçou com um aperto espantoso. Senti uma extrema força. Uma menina de catorze anos não teria tal força.
De repente o pandemônio começou no interior do baile. Tiros. Gritos. Desespero. Meia dúzia de gente saiu com as mãos ao pescoço. Sangrando. Nem imaginava o que estaria acontecendo lá dentro. Minha mãe saiu e cambaleou até onde a menina e eu estava. Eu a ergui nos meus braços de adolescente de dezesseis anos.
- Mãe... o que houve? Cadê o papai? – ela meneou a cabeça negativamente e suspirou pela última vez em meus braços.
O lugar foi incendiado logo depois disso. Quem fugira, fugira, mas quem ficou viu muito sangue encharcando o jardim mui belo daquele castelo. Abby me puxou pelo
braço separando-me de minha mãe. Ela corria como uma gazela e eu era muitas vezes arrastado por ela. Não havia percebido nada de estranho por a perturbação de perder meus pais não me deixavam raciocinar direito. Roubamos um cavalo e galopamos até os mares onde entramos numa embarcação fedendo a peixe. Zarpamos. Por dias conversamos. Eu comia peixe. Ela sei lá como se alimentava. Na França. Numa pousada de estrada ela me revelou que nunca seria uma mulher. Sempre seria aquela garotinha que eu estava vendo. Eu a amaria de qualquer jeito. Eu disse a ela! Ela estava obstinada a encontrar Alice Gommer. Soube ser sua antiga babá e nenhum parentesco. Falava que ela deveria pagar pela animalidade causada em sua vida. Ainda não conseguia entender. Seu destino e segredo eram incógnitos e eu parava de chorar pela perda de meus pais. Passei a amar a garota que me resgatara do baile em chamas.
- Dante – disse ela numa tarde, - agora posso te dar isso. Deu-me esse brinco. Uma argola de ouro. - Com isso pude ir aos campos e riachos com você por esses anos. Bebi sangue de cervos e outros animais enquanto você dormia. Agora você tem vinte e três... eu ainda dezesseis... e não quero ter dezesseis para sempre. Nesse brinco há uma magia que me permitia andar sob o sol. Sem ele, serei fulminado pelos raios celestes desse astro rei.
- Mas... como? – entristeci demasiadamente, - Você desistiu de procurar sua mãe e de se vingar da Gommer.
- Não. Minha mãe já não existe mais. Fiquei sabendo na semana que passou – pausou como se chorasse, - e a mulher eu dei um jeito nela ontem enquanto você dormia inocentemente. Fui ao palacete da mulher. Durante a manhãzinha e cravei uma bela estaca de madeira no peito dela. Foi a segunda melhor coisa que fiz na vida. Se é que ainda posso chamar de vida!
- A primeira...
- Foi te conhecer e te amar... Dante Jordan.
- Mas por que está me dando isso?
- Você está dormindo há mais de quarenta e oito horas...
- Não parece!!
- Foi a última vez em que fiz amor com você... eu te mordi. Suguei-te. E, para não te perder eu te dei o meu sangue. Maldito sangue. Logo você será um vampiro como eu sou... ou fui.
- Pretende morrer?!? – tentei pular da cama. Fraco. Meus pés vacilaram e eu desmaiei.
Deixou-me uma carta que dizia o seguinte:
- Durma bem e seja forte meu doce vampiro. Vinguei-me da vaca que destruiu a mim e minha família. Agora serei a cinza que o vento levará pelos cantos do mundo. Completei minha carreira... e espero que você cace os infelizes que fizeram isso conosco e me perdoe por ter me descontrolado e feito de você um maldito. Perdoe-me? Meu amor é para sempre!
E quando acordei minha garganta queimava como meu estômago. E fui aprendendo a ser isso e a me enturmar com humanos de tempos em tempos... pois viajava sem parar. Caçando. Certa vez encontrei Nichodemos e ele me contou desse brinco. Ele dera à mãe de Abby, que por sua vez dera a Abby sabendo que ora ou outra os seres a transformaria em vampira. Isso foi há mais de trezentos anos. – Segurava a orelha esquerda onde o objeto dourado brilhava sob a luz turva do céu.
Ao terminar de contar, Dante guardou silêncio.
- Deve ser algo magnífico ter vivido um grande amor como você e meu pai viveram nos tempos passados... – pareceu choramingar a Amber.
- Filha, por favor, me desculpe de privá-la das lembranças passadas pelas suas décadas de vida?
- Acho que já superei isso, papai. Quero apenas viver, se for vida o que temos, algo tão espetacular quanto vocês... pessoas centenárias.
- Você está apenas começando sua jornada minha cara – Rebecca a abraçou. – Você viverá milênios. E encontrará alguém para amar.
O pai bruxo sorriu singelamente e sua mente percorreu os perigos das eras que já passou e das sombras terríveis que as vindouras podem trazer
O portão rangeu assombrosamente. Corujas piaram.


XXV - Fortaleza
Um homem sisudo saiu no portão e com semblante fechado encarou os visitantes. Em uma das mãos um pesado facão arrastava no chão riscando o piso de granito escuro. A entrada no Saint Peter era formosa. Muito linda sua arquitetura gótica medieval.
- A vampira nova e o pai dela – foram as poucas palavras do grotesco homem de avental verde manchado de sangue.
- Qual é a de vocês, açougueiro? – Dante apontou um trabuco em direção ao homem que o fitou com olhar flamejante.
- Você não me assusta seu magricela. Nem você, nem sua amiga piranha de calça apertada – voltou os olhos para Rebecca.
- Vem para cá e vou te mostrar a força da piranha seu monte de músculos desajeitado! – vociferou a mulher desenrolando o chicote que envolvia sua cintura.
- Vocês é quem sabem. Tenho de deixar apenas o pai e a filha entrarem, mas se me vencerem entra os quatro.
- Parece justo! – afirmou Caleb.
- Mas, apenas os caçadores lutarão comigo, pois são eles que estão proibidos de entrar.
- Mais justo ainda! – engatilhou o trabuco o vampiro pálido.
A mão pesada do grandalhão botou o pai e filha do lado de dentro dos portões e ele saiu levantando seu facão que passou rapidamente perto da orelha esquerda de Dante, o vampiro suspirou. Rebecca pulou nas costas do homem e tentou sufocá-lo com o chicote de Rosário.
- Isso funcionaria num vampiro minha cara vagabunda... quanto a mim eu o despedaço como a um colar de pérolas – o brutamontes deixou o facão no chão, com uma mão grudou a perna da moça e coma a outra puxou o Rosário espalhando as contas negras e vermelhas pelo chão. Lançou a moça por cinco metros e tomou o facão do chão enquanto Dante disparava dois tiros precisos contra o peito do homem. Os estilhaços dos projeteis feriram, mas não tombaram o grandalhão que avançou apontando o facão para o vampiro ligeiro. A rapidez vampírica veio a calhar enquanto recarregava a arma e o facão lambava no ar de um lado para outro com rapidez impressionante.
A luta prosseguia para o outro lado da rua estourando calçadas, portões, muros, estabelecimentos comerciais. A velocidade de Dante era sua escapatória. A inteligência de Rebecca era sua chance de sobrevivência. Adagas e outros objetos lançados contra o gigante pouco o arranhava. Socos e lambidas do facão causavam feridas em Dante e em sua parceira de caça.
Amber ruía as unhas sentindo-se impotente com tudo aquilo. Os portões e muradas de Saint Peter impediam que Caleb pronunciasse qualquer encantamento.
O tempo voava com cada gota de sangue que empesteava o ar com o cheiro adocicado da morte. Sangue e flocos de neve dançavam como se sincronizassem num salão. Rebecca caía como que em câmera lenta. Seu peito fora aberto pelo imenso facão. Seu colar despedaçou-se e o crucifixo ficou na sarjeta.
- Becca! – berrou seu companheiro de caças. – Não me abandone agora meu anjo do céu...
O gigante socou as costas de Dante e ele foi parar do lado oposto da amiga.
Amber e seu pai agoniados vociferavam palavras inóspitas.
- Abra este portão e eu te mando pro inferno! – gritava Amber com todo ímpeto de seu interior furioso e abrasivo – suas têmporas queimavam e seus dentes caninos aguçavam três vezes mais do que antes. – Acabo com você gigante de merda. – uma voz rouca e demoníaca tomou a menina. Boa parte de suas vestes se despedaçaram, sua
aparência frágil deu lugar a aguçados músculos e suas unhas cresciam assustadoramente.
Dante soluçava o nome da amiga humana morta perto do bueiro. O sangue da moça formava uma poça.
O céu brilhou tenebrosamente e um ser angelical desceu paralisando o tempo num slow motion impressionante.
- Menina – dirigiu-se a Amber, - guarde sua força para o que vai encontrar aí dentro. Vá com o seu pai e resgate os outros. Eu cuido desta criatura inescrupulosa e doentia.
A mulher trajava véus que a rodeavam sem tocá-la e seu corpo escultural encantava qualquer olho masculino que a fitasse. Sua pele cintilava ao brilho de si mesma. Seus cabelos loiros esvoaçavam pelo vento espectral que a circundava. Seus olhos turquesa penetravam e fazia morrer a infelicidade da alma mais cinza que pudesse existir. Brincos de ouro balançavam como gangorras douradas. Seu colar de esmeralda cintilava como ondas do mar sendo banhadas pelo infinito sol. Sedosa pele bronzeada brilhava como que untada em azeite. Empunhava um cetro de cristal. A ponta do cetro esfumaçava vapores gelados.
- Vou gostar de acabar com sua perfeição mulher! – rosnou o grotesco homem. –Lamberei você por inteira. Tirarei todo seu ar de pura.
- Calarei sua boca grande com apenas três movimentos meus – fechou os lindos olhos e seu semblante sereno fez a brisa gélida esquentar. Flocos de neve pousavam nela e se desmanchavam formando gotículas luminosas.
Amber e seu pai entraram pela porta do edifício confiantes na moça celestial que descera do céu – criam assim.
- Anja.
- Quem? – indagou Amber. – Por que desceu do céu?
- Não. O nome dela é Anja Dorminev.
- Que espécie de ser é essa Anja?
- Uma bruxa ascendida. Toda a complexidade de bruxaria se encontra nela. Seria a mãe de todas as bruxas, mas não a mais velha e sim a mais poderosa. Impedida de amar e viver entre nós por tal assombro que é seu poder. Ela mesma não pode se meter em qualquer assunto que quiser, precisa consultar os oráculos das eras antes de intervir em determinadas situações. Nunca a tinha visto. Apenas ouvi sobre ela nos antigos Escritos dos Bruxos Isolados do primeiro século.
Anja imóvel aguardava a aproximação do grandalhão. Levantou o cetro e ficaram suspensos por uma brisa pesada e gelada. O homem sorriu e atacou com o facão atravessando a moça. O gigante gargalhou. A moça abriu os olhos e o facão estava atravessado no próprio ventre do gigante, ele cuspiu sangue e mais sangue. A moça voou para o lado e seu facão subiu do ventre até a garganta. As entranhas do homem caíram e o gigante tombou num baque surdo.
No canto da rua Dante chorava e recolhia os cacos do colar enfeitiçado.
- Minha doce Rebecca. Quando me irei para escuridão do outro lado do hades para te ver novamente. Meu coração hoje tornou-se mais gelado do que nunca. Caso pudesse eu iria até o sheol te buscar! – Chorou copiosamente. Faltava-lhe lágrimas.
- Não chores por essa jovem adorável, vampiro. Posso concertar o crucifixo, mas não devolver a vida dela – a voz aveludada e um pouco sensual ecoava deslizante pelo ar. – Os Oráculos das Eras não me permitem trazer de volta quem se foi, mas talvez esse
artefato concertado possa fazer o feitiço que lhe fora proposto nas gotas de sangue de santos.
- Senhorita iluminada... tente... por favor. Quero Becca outra vez comigo.
- Gostei de seu coração, vampiro. Espero que dê certo. Dê-me esses cacos e a cruz. – a mulher estendeu a mão. – Tente não encostar em mim.
- Obrigado, grande luz!
- E, por favor... Poupe-me de seus elogios – deu-lhe um singelo sorriso.
Imediatamente devolveu o colar cintilante como se fosse polido há pouco.
- Obrigado – tirou os olhos do colar e a imagem majestosa da moça havia sumido como um raio de luz que se vai num piscar de olhos.



XXVI – Constelação da Madrugada
As horas se propagavam pela penumbra assustadora da madrugada sem vida. Nenhum ser por mais pestilento que fosse transitava à frente do majestoso Saint Peter Building. Quem adentrou não sairia e quem ficou de fora não adentraria pela magia quase impossível de se quebrar imposta sobre os muros, grades e paredões do local.
A neve apertou. A nevasca congelava a pele do vampiro debruçado sobre sua parceira de tantos anos no combate contra as trevas. Becca esfriava aos poucos, desta vez parecia que o encanto do crucifixo não estava valendo de nada. Havia se esgotado a gota de sangue santo que havia dentro da pedra no centro da cruz gótica pendurada no belo e frágil pescoço da maravilhosa mulher.
Os olhos em brasa do vampiro queimavam a pior dor que a que sentira no castelo da Plêiade do Sangue horas atrás. Era a dor da ausência de alguém. Esse alguém muito importante desde que ficara sozinho sem sua doce Abby.
O frio sobrevoava seus cabelos arrepiados que mudavam a cada humor. Agora seus cabelos se enegreciam.
Um arrepio! Seu cabelo ficou rubro. Um espectro? Pensou ser. Olhou ao derredor com precisão vampiresca. Olhos acesos como faroletes.
- Invejaria seu amor por essa mortal se eu pudesse sentir algo tão fútil e quase inútil quanto um sentimento humano – caminhando encantadoramente um ser espectral de formosura feminina em direção aos dois. – Não seja tolo, nem fraco, ser da noite.
- Quem é você, moça? – fitou-a expondo seus caninos.
- Alguém que poderia te levar pra dentro daquele prédio, se quiser fazê-la voltar à vida.
- Tudo que eu mais quero é Becca de volta. O que há lá dentro que pode me ajudar nesse instante?
- Há uma preciosa pessoa que foi dada a guardar uma palavra poderosíssima.
- Quem seria essa pessoa?
- A filha de Sophia.
O vampiro emudeceu e arregalou os olhos de lanterna. Posou a cabeça de Rebecca com delicadeza sobre a calçada gelada. O ar sereno do rosto da jovem ia tomando o aspecto acinzentado da frieza e do abandono vital.
- Que tipo de palavra é essa? – falou desdenhoso ao referir-se a palavra.
- Meu caro noturno ser. Essa não é uma palavra, mas a Palavra. Numa língua Proibida entre mortais. Quem segreda essa Palavra à alguém incute no ouvinte um poder incomparável. O fato é de que aquele que a pronuncia se esquecerá dela para sempre, assim como Sophia o fez. Ditou a Palavra para sua filha e sua maldita alma pôde tentar descansar com um pouco de paz. Ela nunca mais será vista por ninguém. A única coisa que a mantinha ligada no fio da vida era a palavra.
- Pobre menininha... – sussurrou o vampiro ficando de pé.
- Com a Palavra eu desencadeio sua amada Rebecca que jaz no grilhão da Morte.
Os olhos azuis profundos da moça; os cabelos loiros como um raio de sol; e seus lábios brilhantes como o diamante pareciam hipnotizar o caçador. Ela aproximou-se dele seu vestido leve esvoaçava como o cabelo e deixava em relevo o corpo escultural e deveras hipnotizante.
- Coloque-me lá. Trarei a Tal palavra.
- Se ela for tão boa quanto o pai, quererá salvar a vida de sua amiga. Posso te dar um bônus!
- Quê? – assustou-se com a aproximação da mulher.
- Não vou beijá-lo seu tolo... darei uma gota de sangue santo para o crucifixo Coração de Pedro.
- E seu nome? Eu posso saber também?
- Vika Sztranvsk.
- Entendi só o Vika, mas de boa. Ponha-me lá, por favor e resolveremos essa situação.
- Corajoso caçador e de coração apaixonado. – Ela o fitou com os profundos olhos. – Tem apenas duas horas para sair. Você e quem quiser sair de lá. Avise os outros. Traga-me o Verbum Tutus.
- Pode deixar! Xá comigo!
A mulher encaminhou-se em frente ao portão e ergueu os braços. Todas as lâmpadas dos postes entraram em curto-circuito e estourou uma após outra, dois quarteirões acima e dois abaixo ficaram no breu. Quase um minuto de estouros. Um arco de luz se propagou em frente ao prédio.
- sha-lih-hen-chi-há! – disse a mulher Espectro da Formosura.
- Saliência... – riu de viés o vampiro atrás dela. Seu rosto obliquamente mudava enquanto explodiam as lâmpadas.
No fim ela fez um sinal singelo para que o vampiro adentrasse os portões ruidosos da entrada. O vampiro competentemente empurrou o portão com o pé direito e correu pra dentro do edifício que tinha o aspecto mais assombroso que já se viu numa arquitetura antiga.
No breu exterior pontos de luz se fizeram em volta de Vika e seus olhos imponentes ganhavam tons de esperança. Seus maravilhosos lábios se contraíam numa apreensão mortal. Dois pontos de luz voaram e repousaram nas pontas das orelhas da mulher, ganhando forma de brincos de cascata de luz. Seu vestido alvo parou de esvoaçar pousando no formoso corpo. Seus pés que pareciam andar acima do solo desceram e tocaram o chão gelado e sujo. Sua feição mesclou a satisfação e a dor de tocar coisa sólida e impregnada de sujeira. Os flocos dançavam à sua volta como fadas bailando em volta de uma fogueira. Brilhavam quando se aproximavam de Vika e sumiam ao tocá-la.



XXVII – Imperando Sobre Sangue
Era dia de sol na Nova Inglaterra na região do Mississipi. Uma menina corria com seu cão pelos campos em dia de verão sem se preocupar com coisa alguma a não ser se divertir. As camponesas labutavam nas sebes compridas, imensas que iam por quilômetros. O calor agitava roedores pelo campo que se escondiam da infante incansável. Caía e levantava com um sorriso no rosto apreciado por seu cãozinho que latia ardido. Barto latia muito e exibia a língua de forma exausta. A menina apanhava um graveto e lançava distante e o animal corria sem parar atrás do pedaço de pau. Ria, ria e caía no chão de tanto rir do ser branquinho de pêlos baixo e de focinho gelado. Lá vinha outra vez trazendo a madeirinha. Depositava aos pés da menina e sacudia a cauda em aprovação caso ela quisesse lançar o pauzinho outra vez. Pois não o fez. Aparentava ter, a menina, nove anos. Espantada a menina fitava uma cena atrás de um arbusto. Um homem mantinha uma donzela nos braço e delicadamente beijava um pescoço vermelho em sangue. Sugava e chupava o delicado pescoço da moça de cabelos castanhos claríssimos. O homem tinha um prazer sem igual solvendo o líquido vital da mulher. A moça se movia pouco, parecendo hipnotizada, sussurrava palavras incompletas, sem forças para dar um empurrão sequer. Havia um colar brilhante que ardia feito o sol no peito do homem pálido que não desgrudava do pescoço da vítima. A menina calada e pasma arregalava os olhos e contraía os lábios. Seu cachorrinho cansava de esperar a decisão da menina em lançar o graveto novamente. Então o cão latiu por duas vez ardido. O homem olhou para o lado da garotinha. Seus olhares se chocaram. Ele deixou a moça tombar no gramado, desacordada e respirando lentamente, e soluçando em pequenos soquinhos. O homem se pôs de pé e caminhou vagarosamente até a menina. Ela, por sua vez, ia de fasta e tropeçava em qualquer pedra que havia ali. Seu cão latia bravamente encarando o desconhecido. O cachorro ficava entre ela e o homem que lambia os lábios avermelhados de sangue. Seus olhos vermelhos faiscavam pelo sangue novo que estava em sua frente. Seria uma bebida e tanto. Melhor que o sangue da donzela de agora pouco. A menina conseguiu correr pela primeira vez sem cair. E o homem a seguia nutrindo um sorriso doente no rosto pálido. Um vento espectral atrapalhava as passadas da garotinha e seu vestido se apegava às pernas e ela dava de cair novamente ferindo os cotovelos. O cachorro ficava para trás latindo. Seus ferimentos sem ela entender iam se fechando. Um tom tenebroso ganhou a tarde. A menina gritava por socorro e as camponesas que havia ali nas sebes sumiram misteriosamente. Correu como podia passando pelas sebes. O homem parecia gostar da brincadeira e se esforçava pouco na caçada dando tempo para ela se levantar diversas vezes e mostrava seus caninos para o cãozinho valente. Uivava para o cachorrinho como se caçoasse dele. E perseguia a menina. Ao passar por uma espessa sebe, a menina levou um golpe na altura do estômago e foi lançada longe. A garotinha gemia. A dor era horrível. Sangue era expelido por suas vias aéreas ao espirar. Tossia.
- Nunca deveria ter feito isso! – exclamou uma voz potente e feminina.
- Mamãe?? – a menina falou e os olhos queimavam. Lágrimas desciam e a figura da sua mãe foi acalmando seu pequeno coração.
- É... que eu não sabia... sua filha... Sophia. – O homem foi se afastando. Seu temor pela presença de Sophia foi explicitando mais e mais. – Misericórdia... ó Mãe da Sabedoria.
- A humanidade merece misericórdia, mas você não, e por ter machucado minha filha... nem depois mil anos eu o perdoaria.
A vampira foi exibindo os caninos horripilantes e seus olhos ardiam em chamas. Sua roupa de plebéia ia se desfazendo e seu corpo criava uma energia espectral amarelada.
Sem ter como fugir o vampiro aguçou suas unhas e dentes e a encarou.
- Criaste coragem seu rato do campo... tem sorte de eu não arrancar seu pescoço e diminuir seu sofrimento...
- Quem sabe a lenda sobre você não seja aquelas coisas todas que rezam pelas tabernas dos vampiros. Posso ser o novo temido... e você parou de tomar sangue humano, então deve estar com as energias bem baixas.
- Veremos... ser desprezível. Viver em meio a humanos não é ser diminuído e nem recusar o que é, mas tentar trazer um novo conceito para os seres noturnos como nós.
- Acho... conceito de fraqueza? E miserável, talvez.
- Cala-te idiota! – voou sobre o vampiro e o golpeou na face rasgando a pele.
- Belo tapa para uma mulher... que deixou de ser vampira – analisou sua unhas e viu que encaixara um golpe no centro do peito de Sophia.
Sangue descia. A menina não via isso. A menina caíra num sono.
A batalha continuava e a adormecida abriu os olhos. Sua mãe estava rasgada e ensanguentada. O homem estava desfigurado, mas em pé. Havia se passado horas. A noite entrava. Sombras vespertinas cobriam os vampiros. O colar do vampiro parou de cintilar. Era um amuleto que o permitia andar durante o dia como um homem normal.
Sophia avançou e despedaçou o colar com garras e socos. O vampiro revidou com um chute no abdômen da mulher. Ela foi parar perto da filha.
- Sua meretriz. Sujou-se com bruxos e humanos e quer manter-se forte como uma vampira pura. – Olhou para o colar e o lançou fora. – Agora preciso de outra porcaria desta se eu quiser sair de dia.
- Meu marido é muito mais que você e sua pureza vampírica Rômulo. – Cuspiu uma bolota de sangue.
O vampiro chupou os dedos e suas unhas cheias de sangue da vampira pareciam deliciosas.
- Espero vê-la oura vez. Provei seu sangue. Não é tão bom como eu pensava, mas a sabedoria que ele me traz parece formidável. Espero um dia chupar sua filhinha também. Ela deve ser melhor que a mãe – gargalhou prazerosamente, - e não vou acabar com sua maldita vida agora porque sinto no vento um mau cheiro de bruxo chegando... deve ser o pai desta fedelha... ele tem uns encantos dolorosos, e eu já lutei por horas com você... não seria „sábio ficar para ser derrotado. Sabedoria vale para isso minha cara. Não vale para trazer a paz entre gregos e troianos – gargalhou de forma desprezível. – Huahuahuahehi. – um vento que trazia folhas secas e galhos mortos de árvores o fez sumir.
Caleb ofegante chegou onde estavam as duas pessoas mais importantes de sua vida. Trouxe emplasto de ervas para os ferimentos e elixires que combatem dores e fazem restaurar rapidamente de feridas internas.
- Senti que vocês estavam sofrendo, meus amores. – abraçou as duas e Barto achegou-se latindo.
- Eu não consegui acabar com Rômulo... ele agora se tornou o Principal... pois bebeu do meu sangue, ainda que poucas gotas.
- Venham, amores – chamou-as.
A noite enegrecida de trevas apontou sessenta e sete mulheres mortas com seus sangues drenados pelo pescoço. E pela manhã encontraram mais nove cadáveres de rapazes mortos por terem seus sangues drenados. Foi a mais terrível noite nos arredores daquele vilarejo. Camponeses e camponesas migraram para outros cantos do país pelo
terror que havia se estendido ali. A festa do Principal prosseguiu por dias e dias de caçadas e matanças. Então, um exército de homens bem treinados tornou-se Caçadores de Trevas e mataram muitos vampiros e não poucos lobisomens.
Uma pequena tranqüilidade foi trazida para as vilas e arredores do Mississipi.


XXVIII – Duas Almas em Uma
Há menos de uma década numa região de muitos comércios em Londres havia uma biblioteca centenária que por muitos e muitos anos ficou abarrotada de gente lendo, estudando, pesquisando no memorável e espetacular acervo de livros pesados, espessos e muito velhos. Uma seção mais fria e de livros escusos e mal vistos pelos cidadãos se encontrava em um canto. Estudantes chamavam de canto dos esquisitos. Góticos e outras tribos inimagináveis frequentavam tal ambiente e ali encontravam o sossego que queriam. Um jovem estranho frenquentava e sempre trazia consigo uma garrafa com uma cruz incrustada nela. Tomava da garrafa lia livros antiguíssimos e ia embora sem olhar para ninguém. Certa tarde os raios crepusculares enfeitavam o céu da velha cidade quando algo lhe chamou a atenção. Uma moça. Não desinibida como muitas. Não voada como outras. Mas uma garota de semblante forte e porte firme, feminino, delicado, e decidida. Fitou-a com toda a atenção bebericou o líquido amargo de sua garrafa e pensou constantemente em cortejar a moça. Queria gracejar e dizer uma bobeirinha qualquer para vê-la sorrir. Sua atenção cresceu ao notar o livro que ela carregava para ler num canto do salão, próximo à ala dos esquisitos.
A menina empurrou a cadeira querendo não fazer tanto barulho e espatifou sua mochila sobre a mesa. Jogou o livro empoeirado na parte livre da mesa e retirou uma maçã da mochila. O jovem foi aproximando. Estagnou-se ao mirar o livro aberto em partes relacionadas aos seres noturnos e seus pontos fracos. Encaminhou de um lado para outro e sentiu seu coração desacelerado agitar-se por um instante. Um chicote com contas negras espalhadas por suas extensões.
- Hmm! Desculpe-me querida...
- Não falo com estranhos. Por favor?
- Hm, é que eu posso te ajudar... com a tarefa escolar e este assunto...
- Um saco!
- Talvez – gesticulou com a garrafa na mão.
- Bêbado é um saco! – a moça fechou o livro num baque que chamou a atenção de todos dentro do estabelecimento.
- Não tenha medo menina... – olhou ao redor e todos o fitavam, - eu não estou bêbado e você parece precisar de ajuda.
- Ajuda para fazer um trabalho nesse livro idiota?! – uma loira atrás deles vociferou. – Estou vendo álgebra aqui e vocês poderiam conversar lá fora.
A menina levantou-se recolhendo a mochila e o livro.
- Bêbado... você ganhou minha atenção e a de todos aqui... vamos ao cybercafé ao lado e converso com você.
O jovem sorriu assustadoramente pela penumbra de uma das prateleiras.
A moça pagou o aluguel do livro e o colocou na mochila.
- Gostei do seu crucifixo. É valioso?
- Digamos, docinho, que dinheiro algum pode pagar.
- As pessoas devem ficar assustadas com sua cara pálida e lábios cinzentos – sorriu de viés e fez careta.
- Senti desde a hora em que adentrou a biblioteca que algo me ligava a você... e acho que é seu humor sombrio – riu exibindo um pouco os caninos avantajados.
Entraram no cybercafé e puseram-se na mais distante mesa. A menina abriu a mochila e puxou um laptop abriu na rede wi-fi do café.
- Dois bem quentes – falou o jovem para o homem do balcão que concordou com a cabeça sem fitá-los.
- Estava na sua cola – a moça o fitou com um ar superior.
- Do... que você está falando?
- Não chame a atenção de todos de novo “ser das trevas”!
- Peraí?! Eu te pago um café e emendo uma conversa e você vem me chamar de sei lá o quê.
- Uma criatura como você assassinou meus pais e não medirei forças para acabar com toda a raça das trevas...
- Calminha aí mocinha linda. Eu te vi lendo um troço cabuloso. Aproximei-me e vi um chicote sinistro e... acabou meu conhaque. – Virou a garrafinha e uma gota pingou na mesa.
- Sei que as coisas desse livro são reais e por isso as estudo.
- Também sei, mas não saio por aí dizendo: ei cara... seu filho das trevas... vou te ferrar!
Arrancou uma gargalhada da menina e o barman trouxe os dois cafés exalando um ótimo cheiro.
- Você não é apenas um ser das trevas... você é um ser idiota e me fez rir.
- Desculpe-me... por não ser humano ou normal como você...
- Confessou, então?
- Espero não levar sua chicotada que parece ser muito doído.
- Seu tonto – riu novamente e bebericou o líquido negro fervente.
- Preciso recarregar meu conhaque... não bebo café puro. – Olhou para o balcão, - Barman... por favou uma garrafa de conhaque. O pior e mais barato que tiver.
- Vai sobrar grana para pagar o café? – a menina o encarou com seus olhinhos verdes musgo.
- Claro, linda – viu a lamber o lábio superior, sorriu. – Para mim tanto faz a bebida... então pego a pior possível... gostaria de acabar com as coisas horríveis do mundo.
- E começa pelo pior conhaque?
- Agora pegou a ideia. Esperta e bonita. Por que ainda não está casada?... desculpe-me... não me acostumei aos tempos modernos... ainda acho que toda donzela obrigatoriamente deve se casar – riu e se achou o mais tolo de todos.
- Você é muito tonto – riu encarando o olhar cinza do vampiro magricela e pálido.
A garrafa de conhaque pousou com um baque na mesa e o gordo barman virou-se para atender outra pessoa.
- Isto inibi sua sede?
- Refere-se – pausou e baixou o volume da voz, - a sede de sangue?
Ela fez que sim com a cabeça.
- Muito pouco... mas eu tenho uma ajudinha – olhou para cima.
- Do teto? – riu-se a menina levando o líquido fumegante a boca.
- De Deus minha princesa... de Deus.
- Como assim?
O vampiro desarrolhou a garrafa de conhaque e encheu a sua própria que tem a cruz incrustada.
- Pronto? – disse a menina apreensiva.
- Ainda não. – Olhou para um canto e para outro do estabelecimento.
A menina entrou numa rede social e parecia responder um oi de alguém que não lhe causou mais do que isso de sua atenção.
- Olhe aquele cavalheiro. Um reverendo anglicano.
- Como sabe? – o homem vestia-se como qualquer inglês.
- Digamos que reconheço o que é santo. – Levantou-se e encaminhou displicentemente com sua garrafa.
Passou pelo homem.
- Boa noite meu senhor!
- Boa noite jovem – fitou a garrafa dele.
- Desculpe-me incomodá-lo. Mas, pastor, o senhor poderia ungir esta garrafa de conhaque.
- Filho, uma coisa você já deve estar fazendo... tentando se afastar do vício. Eu fui beberrão por quase vinte anos e com muita luta deixei o álcool. Com a ajuda do Céu você também vai vencer essa batalha.
- Amém, pastor.
O velho reverendo pôs a mão na garrafa e pediu a Deus que ajudasse o jovem a vencer o vicio e sorriu para o rapaz.
- Obrigado. Muito obrigado – sorriu e saiu.
Logo que chegou à mesa colocou uma dose generosa de conhaque no copo de café. E bebeu largamente.
- Você é muito doido.
- Toda vez faço isso. Algum sacerdote cristão unge minha garrafa cheia e acho que tem dado certo.
- Há quanto tempo não bebe sangue humano?
- Perdi as contas, mas passam dos duzentos anos... não tenho certeza.
Um dificultoso silêncio se fez e a moça o quebrou depressa.
- Quero matar Rômulo Crow – fitou o semblante pálido do vampiro.
O vampiro cuspiu um bocado de líquido quente e amargo no próprio colo.
- Isso é um suicídio dos grandes minha linda de olhos verdes.
- Ele ferrou minha família... agora eu ferro ele com o chicote de contas negras.
- Acho que o chicote dói, mas não será suficiente. – Colocou um crucifixo semelhante ao que usava sobre a mesa. Crucifixo sagrado com uma joia no centro da cruz. – Nessa joia chamada Coração de Pedro há uma gota de sangue santo. Quando você botá-la no pescoço, ficara ligada ao seu par que é a que eu uso. Ninguém morrerá se o outro que a usar estiver vivo. Então minha vida eterna pode te dar ótimas esperanças.
- Usa baterias recarregáveis? – ria a menina.
- Pare com isso – sorriu para ela. – Alguém deve ativá-la comprimindo a joia no peito de quem perdeu a vida. Por exemplo – largou o copo e fez mímicas, - eu morri e qualquer um pode socar a joia no meu peito e daí o sangue de dentro da joia é injetado no meu peito por uma minúscula agulha. Em milésimos de segundos eu respiro e vivo outra vez.
- Impressionante! Devia ter pedido uma dessas no meu último natal com os meus pais.
O vampiro balançou a cabeça e bebericou a garrafinha de conhaque ungido.
- Você realmente tem um humor tenebroso – sorriu para a doce menina que digitou palavras cortadas no site de relacionamentos.
- Esse George é um saco!! – sorriu golpeando o laptop.
- Um frei foragido de um mosteiro foi quem me deu este artefato valioso dizendo que seres noturnos estavam querendo tal relíquia. Creio que aquele frei não passou daquela noite – olhou para o céu.
- O teto de novo?
- Menina!?!
- Meu nome é Rebecca Saintcross.
- O meu é Dante Jordan.
Beijou o rosto quente da moça e sua pele fria se arrepiou como há muito não fazia.
Rebecca colocou o colar no pescoço e sentiu um calafrio percorrendo sua espinha, mas nem ligou. Os dois saíram do estabelecimento depois de comer alguns bolos de carne e tomarem um pouco mais de café.


XXIX – Castigare Ad Salus
O corredor que parecia infinito era percorrido pelo vampiro. Ele sentiu-se um humano cansado de tanto correr. Estranhamente ali dentro ele não conseguia desempenhar sua velocidade vampírica. Portas e portas eram passadas velozmente. Todas as portas bem cerradas e possivelmente trancadas. O chão brilhava como se fosse limpo e encerado a coisa de uma hora. As paredes eram decoradas com tapeçarias persas. A cada duzentos metros havia uma armadura bem lustrada e brilhante. Um vento que vinha do infinito corredor trazia um fedor de carne podre, sangue e vodka. O olfato de Dante repugnava tais cheiros, mas ele não parava de correr por nada. Rebecca estava impressionantemente em sua mente ele não parava de pensar em sua parceira e amada. Pela distância percorrida ele estaria chegando à Escócia, pensava. De repente o corredor foi declinando como num sonho inusitado. Corria sem parar para o fundo daquele corredor que agora ganhava a notoriedade de túnel.
Um salão. Um hall. Mais uma sala e uma saleta. Caixões e muita teia de aranha. Pelo aspecto das salas, elas não viam limpeza há centenas de anos. Candelabros com velas quase totalmente queimadas. Tochas com chamas azuis estranhamente iluminavam as saletas em que o vampiro passava. O chão de pedra fria e cheirando a mofo e alguma coisa podre insistia de algum lugar. Logo uma pré-sala. Pessoas conversando e debatendo atitudes de invadir alguma coisa e arrombar portas. Chegou mais perto para entender. Vozes conhecidas. E uma voz imponente rangia em reprova.
- Dante? – gritou a menina satisfeita em vê-lo.
- Amber... senhor Caleb. O que acontece aqui?
- Acabamos de chegar como você... e esse guardião não vai deixar-nos entrar nem por todas as almas.
Uma enorme cortina impedia os três verem o que estava do outro lado.
- Punição! – disse o rugido do guardião.
- Ele repete isso a toda pergunta que fazemos... – a menina disse, e – Rebecca?
Uma gota de lágrima caiu e Amber entendendo aquilo o abraçou.
Segundos de silêncio foi tomado pela anestésica perda de Rebecca.
- Mas um espectro apareceu e disse que posso tê-la de volta se consertar o crucifixo e sua joia a tempo. Porém, o espectro quer algo que você tem... e eu sei que sou um miserável e egoísta em vir aqui para te pedir tal coisa. Pois é algo que só sua mãe sabia e agora só você sabe – abaixou-se humilhantemente e Amber o abraçou no chão.
Caleb fixava a cortina e o guardião que parecia ter olhos flamejantes.
- Não fique assim meu caro amigo. Uma vida vale mais que qualquer tesouro que minha mãe tenha me confiado. Eu te darei a Palavra Segura... peço apenas tua ajuda para investirmos contra o maldito ali dentro e salvarmos nossos outros amigos.
- Deixe-nos ver o que há por trás do grande véu? – disse caleb.
- Desde que um de vocês encha meus cálices da bebida vital...
- Que quer dizer com isso guardião? – interrompeu a menina.
- Preciso de um voluntário para a Roda do Suplício. Onde o castigado fica amarrado em cordas numa roleta que a cada volta uma lâmina lhe retalha a fim de lha retirar sangue e a Roda do Suplício irá parar quando seus amigos ou quem quer que o tenha entregado ao castigo o peça de volta, mas somente depois de ter resolvido o problema que está para ser solucionado. A roleta abre o Grande Salão onde criaturas mágicas e poderosas usam para duelos, projetos e qualquer advento que tenha de ser feito num Plano fora do normal ou da ordem natural das coisas.
- O conhecimento de Babel? – explodiu Caleb na indagação a si próprio.
- O que há de poderoso com o doutor Charles? – a menina soltou Dante e fitou o pai.
- Vai além de querer dominar os seres noturnos e a raça humana... os conhecimentos de Babel podem ajudá-lo a despertar Ninrod... o mais poderoso guerreiro de toda a história, antes mesmo de Sansão e o próprio Hércules.
- Ouvi falar que Ninrod dorme e nunca e ninguém teria o poder de acordá-lo e muito menos o levar a ser um animal de estimação que se manda fazer algo – disse Dante pondo-se em pé.
- Dizem tantas coisas, mas eu conheço Babel e ele é o Embaralhador de mentes mais poderoso que já existiu e tem um coração que é maior que suas habilidades... Rômulo trouxe Babel no lugar de suplícios para poder cortar o seu coração dócil. Ele planejou muito bem sua investida contra a Plêiade do Sangue para acabar contra os convertidos e monstros amansados que viviam bem entre os humanos. – E, vociferou, - agora Rômulo está a pouco de conseguir sua façanha indômita.
- Você poderia nos dizer quem adentrou o Salão? – tentou a menina.
- Preciso de sangue – e o imenso véu se abriu e puderam ver o que estava oculto.
Viram um paredão de pedras rústicas e um magnífico portal em mármores negros brilhando imensuravelmente se contrastava com quatro rodas gigantes que girava anti-horário e numa delas estava...
- Desdemona?!!? – gritou Amber.
- Sua falsidade e deslealdade com o pessoal da Plêiade a trouxe o castigo merecido – Dante aproximava-se da vampira.
A vampira gemia e sorria. Gemia e tentava gargalhar. Seus pulsos retalhavam a cada giro quando se passava no ponto das seis horas. De ponta-cabeça ela gemia e a lâmina cortava e no ponto das doze horas ela abria um sorriso doentio. Madeira da roda rangia como madeira velha e desgastada. Todo o sangue que escorria ia magicamente para o eixo e caía numa bacia de bronze. Taças de bronze estavam numa mesinha perto do guardião.
O guardião era alto, e estava sentado numa espécie de trono de ferro enferrujado. Sua espada era bem polida e cintilava. Sua couraça e armadura fediam a podridão. Seus cabelos desgrenhados cobriam-lhe os olhos. Mas o lampejo do seu olhar atravessava a cabeleira. Amber aproximou-se do guardião e sua estatura dava no joelho do gigante.
- Por amor ao Principal ela se propôs a dar seu sangue enquanto ele trabalha dentro da câmara – lentamente disse o grandalhão.
- Evil-Mardoc está ali também?
- Dê-me sangue e respondo mais...
Os três se olharam e Caleb com a reprovação de sua filha se pôs na frente dos vampiros.
- Pai!! – chorou a menina.
- Eu vivi muito. E para um bruxo isso está de bom tamanho. Você é quem precisa ficar para por ordem em toda essa loucura. Pare o Principal e salve nossos amigos – pensou em Babel, Cammo, Sarana, Luke e Tobby. E um flash na memória refletiu Sophia.
- Boa escolha! – o gigante se pôs de pé e sua cabeça raspava o teto. – Sangue de mágico vale mais que o de vampiro... – abriu um riso. – O de vampiro vale mais do que os de lobisomens e humanos – cantarolou a frase e assoviava com satisfação.
- Está comigo Dante?
- Claro minha alteza. Você é quem deve ser a princesa da nossa raça. Pegaremos o Rômulo e depois daremos um jeito no Evil-Mardoc também.
O gigante colocou o bruxo na roda e prendeu-lhe com vontade nos pulsos, pescoço e tornozelos.
A roda rangeu e começou a girar. E o primeiro guincho de dor foi expelido pelo bruxo.
- Evil-Mardoc foi adormecido na câmara. Numa magia em que se concretizado ele acordará e matará a todos em sua volta. Evil poderá atingir, depois de seu sono, a forma horrenda que nunca se viu antes num vampiro com poder da metamorfose.
- O mestre dos Parasitas vai vir com tudo!! – Dante arrepiou.
- Não se nós impedirmos tanto um quanto o outro – a menina olhou seu pai sofrendo o suplício e seus olhos abrasaram em instantes.
As unhas da menina tornaram-se garras ferozes; seus caninos dobraram de tamanho; sua espinha esticou ampliando seu tamanho multiplicando por três; seus belos cabelos esvoaçaram de forma espectral; seus músculos ficaram densos e rígidos; sua adrenalina subiu e sua voz ficou rouca como a de um espectro.
O portal em mármores negros foi dando passagem para os dois vampiros.
A menina rugia como um animal feroz e caminhava um pouco arcada até se acostumar com a nova estatura. Dante ia se formando aguçadamente e fazia sinal da cruz empunhando uma escopeta que repousava em suas costas presa numa alça.
O ambiente era gélido. A passagem ficava escura num total breu. E os dois sumiram. A porta do grande portal se fechou. Tudum! – o baque.


XXX – Dynamikós Léxis
Parecia uma imensa cripta toda em mármore negro, branco e cinza banhados por uma terrível luz no centro trazia um calor desprezível aos recém chegados. A forma vampírica de Amber era o mais ameaçador já visto por Dante. Ele a admirava e engatilhava sua escopeta. Os lábios do vampiro tremulavam numa reza murmurada em grego e em latim.
As pedras porosas do chão pareciam desprender-se quando a vampira pisoteava com muita energia. O ruído era surdo e inaudível para os seres humanos, mas logo adiante ouvidos vampíricos atiçaram-se ao sudeste da cripta.
Rômulo levantou um tornado para varrer os corredores entre tumbas de mármores brancos e cinzas. O tornado foi varrendo as partes donde ruíam pedras sob os pés da vampira.
Havia uma pedra de gelo em forma de sarcófago onde repousava o Evil-Mardoc. De olhos abertos acompanhava a tensão do Principal e sentia que não conseguiria o Repouso do Poder. Olhos agitados e vermelhos em brasas enfureciam com a agitação de Rômulo.
- Está tudo sobre controle, meu Soberano. Trouxe um exército de vampiros para segurança nossa – do teto nebuloso e sombrio foram despontando inúmeras figuras horríveis de vampiros novos e vampiros Comandantes de Exércitos. Duas centenas despontaram.
Os olhos vivos de Evil deram de fechar outra vez achando segurança na situação.
O frio aumentou e o Principal se prostrou em cima do caixão de gelo levantando uma adaga feita de osso. Com ela ele riscava o gelo com símbolos alquímicos e palavras antigas ou proibidas.
O vento espectral assolou pela entrada da cripta rasgando vestimenta dos vampiros. Arrastava pedras de jazigos brancos e rosas eram lançadas ao ar. Vasos de flores despedaçavam em cacos afiados. Muitos cacos riscavam o rosto de Amber e a fisionomia da moça embrutecia mais e mais.
- Freno ventus! – a voz alterada de Amber irrompeu pelo corredor fazendo o vento sossegar instantaneamente.
Dante sorriu para ela e disparou uma rajada da escopeta num vampiro que vinha do alto. O monstro esfarelou-se com estatua de sal. Do lado as garras de Amber abriam entranhas de duas vampiras e elas se desfizeram como grãos de areia.
O céu escureceu para eles e dezenas de vampiros com dentes muito aguçados vinham a toda.
Amber pulou sobre o mais alto túmulo e golpeava com precisão os seres inóspitos.
Dante recarregava pela sexta vez suas escopetas e sua preciosa Magnum de oito balas. Sua destreza era impressionante e a rapidez com que as recarregava. Disparos zuniam e zumbiam pela cripta.
Mais adiante, os olhos de Evil-Mardoc se abriram outra vez e ele tremia dentro do caixão de gelo.
- Soberano... deixe conosco... tudo dará como planejamos. Bem que queríamos trazer os parasitas, mas eles não sobreviveram ao ar espectral deste salão... – coçava o queixo com a ponta da adaga e um fio de sangue desceu pingando sobre o gelo.
O braço de Evil-Mardoc atravessou a crosta gelada e suas garras prenderam o pescoço de Rômulo. Apertava sua traqueia.
- So.. be... rano...! – seus olhos fitaram a face furiosa de Evil e perdiam-se nas órbitas.
O braço agitava e a crosta de gelo se despedaçava e as garras encontravam a traqueia do Principal.
Rômulo desceu a adaga no pulso de Evil e um guincho de dor veio de dentro do caixão de gelo. Rômulo afastou-se tentando recuperar o fôlego. Seu pescoço perfurado e curava-se ligeiramente. Uma explosão! Estilhaços de gelo para todo lado. O mal estava fora de seu repouso ritualístico.
- Você maculou minha caixa do descanso – voz assombrosamente rouca imperou. – Seu sangue nojento caiu sobre meu descanso. Sentirá minha fúria, verme que se chama Principal. – Ele arrancou a adaga no pulso e lançou-a no chão próximo de Rômulo, - caso queira usá-la novamente.
- Soberano... temos a invasão de uma híbrida suja e um terceiro sangue... deixe-me matá-los e faremos o rito outra vez... com todo o tempo que a eternidade nos concede.
- Venha até aqui... inútil – o imenso vampiro se curvou para encarar o Principal.
A pele roxa e grossa do vampiro mestre criava pelos grossos e pontiagudos como espinhos. Suas unhas negras cresciam de forma assustadora. Seus olhos vermelhos brasas ficaram totalmente negros. Seus dentes afiados cresceram e se fizeram mais brancos que um marfim. Sua boca cresceu e alargou-se.
Timidamente Principal se achegou. Não ousou encarar o mestre dos vampiros.
Segundos pareciam badaladas de sinos. Dez badaladas. Quinze. Vinte e seis.
Nhac!! Evil-Mardoc abocanhou a cabeça do Principal. Chutou para bem longe seu corpo. E cuspiu fora o crânio numa tumba ali por perto.
Hora de comer a vampira que me trouxe a Palavra Segura – foi numa marcha em direção donde vinha berros e urros misturados a tiros de vários calibres. O som era infernal, mas nada que assustasse mais do que a fisionomia do vampiro mestre. De suas costas brotaram asas enegrecidas e se agitavam. Um voo que o levou ao teto nublado e o fez pousar no âmbito da luta. Ainda havia por volta de quarenta vampiros em pé. E muita cinza granulada no chão. A aterrissagem agitou as partículas dos infelizes mortos e ganhou notoriedade num instante.
- Evil...!! – disse Dante recarregando o trabuco.
- Maldito!! Onde estão os lobos... e Babel? – disse Amber nutrindo a feição mais horrenda do que antes.
- Acho que o Principal os sepultou em alguns destes túmulos. Se sobreviverem... talvez poderão encontrá-los. Isso é se não for tarde demais... vocês sabem que este ar que respiramos aqui é extremamente nocivo? Meus párias e parasitas não sobreviveram... – bem rouco, - quem sabe os pulguentos e Babel tiveram mais sorte.
Brum!! – disparou a escopeta lançando projéteis no peito do mestre.
- Isso arde... seu moleque – urrou.
- Vamos acabar com você hoje!
- Inúteis palavras ó pequenino infante. Gosto de negociar antes de qualquer briga. Mas quando sou ferido a coisa é bem diferente.
- Não temos intenção alguma de negociar com o diabo – vociferou a menina.
- É assim que estão me chamando. Gostei. Mas posso ser bem pior!! – cravou as garras no abdômen da menina vampira e ela vomitou sangue.
Dante pulou espectralmente sobre o pescoço do Evil com o chicote de Contas Santas e sufocava o vampiro. As contas do chicote iam se desfazendo e o monstro ia urrando de dor. Amber caída se refazia da dor e do ferimento com rapidez. Os quarenta vampiros avançaram na menina aproveitando de sua lesão.
- Levante-se... Amber... Levante-se filha de Sophia!!! – gritava Dante.
A nuvem negra do teto descia os segundos badalavam como os sinos de uma catedral. A dor era notória no rosto de Evil. Até que a última conta se desfez. O chicote apodreceu. Evil recuperou como relâmpago e lançou Dante no túmulo preto.
De lado, Amber rasgava os três últimos vampiros. Fitou o imenso mestre que tinha um corpanzil de cinco homens. Ela alcançara um terço do corpo dele, mas o encarava como que igual.
- Corajosa menina... não é a toa que veio de onde veio... mas, comigo vai ficar a Palavra que trouxe e seu descanso eterno será aqui com seus amigos.
Numa extrema velocidade ele a fatiou os braços com garras feito navalhas e feriu a coxa esquerda. Amber tombou como que desmaiada.
- Sugarei teu sangue totalmente e a Palavra virá conjuntamente à sua vida.
- Não sou tão grande quanto vocês, mas atormento mais do que insetos na beira dum lago – o caçador pulou sobre as costas cravando-se nas asas do mestre e desceu uma adaga na nuca.
- Desprezível inseto! – berrou Evil.
- Você deve ter deixado essa gracinha por aí... quis usá-la pra ver se é boa.
- Mas ela estava lá do outro lado da cripta... – o mestre foi arrancando o objeto causador de muita dor.
- Sou menor que você, mas sou ligeiro também... – sorriu mirando sua magnum na cara do Evil. – Toma essa!
Blang. Blang. Blang. Blang. Blang.
O vampiro grandalhão ajoelhou.
Blang. Blang. E blang.
A cabeça do Evil se abriu feito abóbora e seu conteúdo ficou exposto, sangue enegrecido escorreu pelo chão de pedras rústicas.
Uma poça de sangue formou-se em volta do mestre vampiro. O ar ficou deveras gelado.
Um silêncio. A morte. O chão frio. A cripta. O grande salão.
Caçador pegou a adaga e colocou em sua cintura.
- Nada de Metamorfose... e nada de sei lá... Ninrod.
- Pode crê! Foi se minhas munições. Meu chicote. Meu amor...? Meu amor! Ainda dá tempo... – caiu de joelhos. – A Becca se foi?! – seus cabelos ficaram negros e sua pele mais pálida que nunca... – Um Espectro pediu a Palavra Segura em troca da vida de Rebecca. – Chorou copiosamente.
- Acalme-se Dante... – mancando a garota chegou perto dele e segredou ao seu ouvido a Verbum Tutus – logo Amber desmaiou.
- Precisamos encontrar os outros... agora não é hora de dormir docinho.
A menina foi recuperando a pele delicada, o rosto angelical, o aspecto natural de humanidade. O cabelo esvoaçava no vento gelado e Dante a segurava nos braços.
Um pouco depois.
Destampou varias tumbas e nada. Até que Amber se pôs de pé.
Minutos se foram.
- Leve a Palavra... que eu fico procurando nossos amigos... pode ir. Rebecca te espera.
- Sou imensamente grato, docinho, por me ajudar com Becca – beijou a face da garota.
- A Palavra serve mais para a vida do que para a morte. Apesar de seu peso ser imensurável diante das duas situações.
- Levarei. Está segura.
- Engraçado – riu, - é como se eu nunca soubesse dela. Eu lhe falei, mas parece que foi apenas um sopro... na minha memória eu soprei em seu ouvido. Muito estranho.
- Ainda bem que é assim esse tal poder. Quero entregar a Vika e nunca me lembrarei mais dessa Palavra. – Estremeceu num calafrio e
foi encaminhando para a saída.
Correu. Correu como uma flecha. Passou pelo portal enorme e fitou o sofrimento de Caleb.
- Hei! Segura aí meu velho. Sua filha já está voltando. Falta encontrar seus amigos pelas tumbas. A propósito, o bicho feio já tá ferrado – pausou, visualizou a Desdemona na outra Roda. Sussurrou um lamento inaudível. E - até mais. Preciso correr pra Rebecca.



XXXI – Revivendo o Pesadelo
Amber pulou de tumba em tumba verificando locais prováveis para se esconder alguém. E nada.
A neblina fantasmagórica desceu do teto da câmara envolvendo a garota vampira.
Nenhum som. Nenhum zumbido. O ouvido aguçado da vampira não identificava nada anormal ou qualquer pedido por libertação. Esperava que uma das vitimas pelo menos gritasse por socorro.
Muito insistente a menina vasculhava os túmulos. Despedaçava as tampas com força descomunal de suas mãos.
- Sarana? Doutor Babel? Cammo?... – chamava com um fôlego extra.
O silêncio parecia ser uma música infernal e o fedor podre veio de trás.
Um sucumbido gorgolejar grunhiu em sua nuca.
- Quero apenas devorar você... – gorgolejava roucamente o imenso e desprezível criatura.
- A Palavra já não está mais comigo... imbecil!! – fitou a cara do monstro.
A cabeça aberta e vazando sangue parecia muito lenta na recomposição.
- Não quero mais a Palavra... quero devorar você por um mero prazer. Nunca vi uma vampira tão tenra e ao mesmo tempo tão forte... De fato você me fascinou – exibiu a língua nojenta e salivosa.
- Então preciso... literalmente cortar suas asinhas... coisa feia – sorriu sarcasticamente e foi modificando a feição e a estatura passando da cintura do vampiro mestre.
- Uma boa briga não vai ser ruim... posso dizer que lutei pela comida. – Sua boca encheu-se de dentes pontiagudos e temíveis.
- E eu... direi que arranquei sua cabeça e dei para o guardião fedorento de lá da entrada.
- Você é boa em provocações minha lebrezinha.
Evil-Mardoc pulou sobre a garota cravando suas unhas no estômago dela. Ela cuspiu sangue e socou o queixo da criatura quebrando-lhe uns dentes. Amber escapou para o lado e chutou a canela do gigante fazendo ele se dobrar. Ao pender a cabeça aberta levou uma cotovelada da menina bem no cérebro. O imenso vampiro urrou de muita dor. Amber, insatisfeita, subiu nas costas de Evil e lhe quebrou uma asa. A asa estalou como graveto seco nas mãos da menina. Uma mão do mestre voltou-se para trás e agarrou o pescoço da menina com precisão e lançou-a num jazigo negro. A menina pareceu imóvel depois do baque espantoso onde despedaçou o mármore negro. A criatura tomou de novo a pose de imponente e se encaminhou para a garota. Sua cabeça ia se fechando. O crânio estava quase todo restaurado. A luta tinha estimulado seus glóbulos brancos a trabalharem de forma espetacular sobre a feriada mortal da cabeça.
- Isso mesmo garotinha. Fique quietinha. Durma que o papai aqui tem um estômago para encher. Enfim me alimentarei de um sangue nobre. Sangue de Sophia corre nessas veias. O doce e vital líquido me fará muito bem. A sabedoria correrá em mim por causa dessa refeição – aproximou-se, agachou perto dela. O rosto da menina voltou ao normal, como de uma linda adolescente. Passou um braço por trás da cabeça da menina e aproximou o pescoço da garota à sua boca. Lambeu a insanamente e logo lha cravou os temíveis dentes no pescoço. Alisava os longos cabelos da garota e sorvia prazerosamente o liquido quente. Abraçava-a com um desesperado senso de paixão e loucura. Uma neblina fantasma circulava gelada e densa entre os túmulos quebrados e poucos inteiros. Tudo escurecia ao redor de Evil-Mardoc. Sensação gelada era absoluta e a cena do grande mestre vampiresco era temível sobre o corpo pequeno e frágil da
vampira. As ondas de frio aumentavam de forma insuportável. O corpo da menina esfriava nos braços brutos e ásperos do grande vampiro. Sua face dócil e juvenil foi se desfazendo. Rosto delicado e frágil com o ar sereno e singelo da adolescência. O grande portão lacrou-se. Ninguém entraria ou sairia mais da infeliz e infernal câmara.
Escuridão. Desespero. Angústia. Terror. Perturbação. Infelicidade para todo o sempre.


XXXII – Vestido da Vida
Dante corria para fora do edifício com destreza sobrenatural. As amarras mágicas já não impediam a entrada de gente ou saída. Pois cruzou com muitos seres no instante que vinha para fora. Muitos magos, feiticeiros, doutores, vampiros, bruxos, videntes e lobisomens em forma humana arrumavam as coisas detonadas pelos seres do mal que haviam passado por ali. Muitos ajeitavam seus consultórios e reparavam instrumentos e paredes. Notou-se, então, que o perigo mortal de Evil-Mardoc havia sido controlado ou extinto. Daria um grito de vitória se não tivesse tão preocupado com Becca que deixara lá fora sem vida por horas. O tumulto era controlado por inspetores dos seres noturnos. O Colegiado das Criaturas da Noite intervinha nas situações mais relevantes, para que o assombro não tomasse proporções entre os humanos que desconhecem as atividades dos seres das trevas ou dos Noturnos que habitam pacificamente entre nós. A luz do dia precipitava no horizonte. A manhã não tinha o aspecto tenebroso de um dia de inverno como é comum em alguns dias. Parecia que uma magia fora feita para que todo mundo se cumprimentasse e agisse bem uns com os outros.
Dante saía agora. Passava para fora dos portões. Viu que o CCN também agia na rua. Controlando a memória dos transeuntes que viram a destruição e sangue pelas ruas.
Uma cafeteria abrira as portas duas horas antes e alguns agentes do colegiado estavam lá dentro trabalhando.
Dante não avistou sua querida parceira. Entrou descrente na cafeteria.
- Um café com conhaque da pior qualidade que tiver – não ergueu o rosto, pediu e debruçou-se sobre o balcão cheirando a álcool de limpeza.
- Muito cedo para beber... não acha? – uma aveludada voz o fez mudar de fisionomia. A tristeza foi derrotada no milésimo de segundo em que ouviu.
- Becca?!!! – ergueu a cabeça e recebeu um forte e caloroso abraço da moça. Seus lábios avançaram aos dela e perderam-se em segundos de um beijo apaixonado.
- Olha! – a mulher mostrou um frasco com uma decoração cintilante como luz do sol. – Vika disse que você traria algo e deveria colocar nesse frasco...
Dante olhou para todos os lados temendo que humanos atentassem para o brilho do frasco. Escondeu em sua mão o diminuto frasco e foi para a mesinha mais distante do balcão. Rebecca acompanhou levando seu cappuccino.
- O que porá aí?
- Soprarei uma palavra aqui dentro.
O olhar curioso da mulher lhe pareceu engraçado e ele riu.
- Amber? – gritou Becca e todos no recinto a fitaram.
- Chiuu!! – chiou o vampiro pedindo silêncio com o sinal do dedo indicador a frente da boca. – A ameaça acabou e aqueles homens – apontou para os agentes, - estão cuidando de tudo. Eles entraram na fortaleza Saint Peter e tudo vai ser resolvido. – Olhou ao redor e pôs o frasco nos lábios. Soprou a Palavra dentro.
O diminuto frasco brilhou espetacularmente e comprimindo-se desapareceu da mão de Dante.
- Puta merda... e nem tomei meu conhaque.
- O que você disse no frasco?
- Não sei... soprei e ele brilhou... sumiu. Que coisa mais estranha!
Chegou uma garçonete e deixou a caneca com o café e uma garrafinha de conhaque.
Pegou a adaga que trouxera consigo e riscou na garrafa uma cruz. Derrubou o conhaque no café e levantou.
- Saúde querida! - Bebeu sedentamente.
- Vestimentum vitae.
- Que isso?
- Vika disse que eu deveria dizer isso depois de você ter trazido a coisa que trouxe para o frasco.
- A Palavra.
- Está bem, a Palavra.
Precisamos ver se Amber e Caleb já saíram do Saint Peter.
- Vamos sim... – deixou notas amassadas e manchadas na mesinha e saíram.
Um estrondo. Gigantesco. Assustou a todos.



XXXIII – Alvíssaras do Alvorecer
A rua mais apinhada do que antes e ruídos tremendos de dentro do grandioso Saint Peter. Agentes pediam para se afastarem e a multidão se acotovelava para ver o que estava ocorrendo dentro da nave de concreto e pedra.
Pessoas corriam. Gente pulando as grades altas e indo para a rua.
O ruído aumentava. Pedras se deslocavam do alto do prédio. Os agentes do Colegiado faziam o possível para tirar todos da zona de perigo. Bruxos experientes e anciãos lançavam magia de arnês sobre os povos mágicos e noturnos presentes ali, bem como aos ignorantes e desconhecedores humanos.
- Nossos amigos?! – berrou Becca.
- Fiquem tranquilos. Estamos fazendo de tudo pelos que estão em perigo.
- Eu sou vampiro... – disse Dante a um dos agentes, - o senhor pode me informar o que há realmente?
- Creio que a Câmara das Almas se ruiu e a estrutura do prédio foi abalada... por isso pedimos a saída e retirada dos seres comuns ou mercadores e doutores.
Dante entendeu que mercadores e doutores tratavam-se dos seres Noturnos.
Minutos de tensão e desespero por quem aguardava um sinal de vida de amigos e parentes se deu em escala enorme. Reportagens de TV chegaram ao local e faziam tomadas ao vivo do acontecimento. Uma poeira subia no centro do edifício. Pedras continuavam se deslocando.
Tensão total. Muitos olhares confusos e surpresos fitavam o local. A TV anunciava que outro prédio antigo havia desabado na noite anterior. Os entendidos sabiam que a reportagem quis dizer a Catedral da Plêiade do Sangue. Edifício que se chamava Castelo.
- Que bom ver vocês!! – uma doce voz juvenil e angelical superou o murmúrio e lamento da multidão.
- Amber! – berrou Rebecca. Correu e abraçou a menina.
- Que bom vê-la bem... – anunciou Dante com os olhos estalados.
- Babel me ajudou a vencer o Evil que se levantou contra mim novamente... após sua saída.
- Desculpe-me... pensei que havia acabado com ele com minhas últimas munições.
- Não precisa se desculpar... era importante você trazer a Palavra para resgatar sua namorada.
Se pudesse o pálido vampiro teria ficado vermelho, mas seu cabelo mudou de cor.
Na ambulância da CCN Caleb rejeitava um soro, mas recebia ataduras para os cortes profundos dos pulsos e dos tornozelos. Babel recebeu uma faixa de curativo na cabeça, sua ferida estava demorando muito para fechar-se e médicos da agência resolveram estancar o sangramento.
Sarana mostrava-se super preocupada com o bruxo Caleb. Ela tinha um braço imobilizado numa tipoia.
O lobinho Luke estava inconsciente e Tobby recebia uma injeção com agulha que daria medo até num elefante.
Amber estava totalmente restaurada e narrou sua superação com a ajuda de Babel.
“Eu estava procurando os túmulos em que estavam presos Babel e os lobisomens. Até sentir um calafrio mortal por perto. Evil estava quase todo restaurado. Sua cabeça ainda estava aberta e no meio de nossa luta eu dei uma boa cotovelada em seu cérebro... depois subi em suas costas e lhe quebrei uma asa... deve ter doído misérias. Ele, conseguiu levar um braço para trás e me agarrar o pescoço com suas unhas ferrenhas e me lançou num túmulo, que para a minha sorte era onde estava o Charles Babel. O
doutor ia despertando do desmaio com um terrível ferimento na cabeça, mas mesmo assim usou seu poder de Embaralho Mental. Ele me substituiu mentalmente com um cadáver de uma vampira. Então, Evil-Merdoc que já estava debilitado depois de eu lhe acertar o cérebro não foi difícil acreditar na ilusão criada por Babel. Após eu ter batido contra o jazigo negro eu pulei para o túmulo de trás e sentir ter pisado numa vampira, daí me substituí por ela, Evil acreditando ser eu foi avançando e encarando a minha marionete desmaiada e deu dó vê-lo achando que estava me sugando. Assim Babel e eu tivemos tempo para libertar os outros das tumbas e saímos da cripta no momento em que o nevoeiro era denso e escurecia demais. Lá fora recuperei papai que estava desacordado e fomos saindo enquanto um estrondo anunciava que tudo aquilo desabaria em instantes. Vi a Desdemona despedaçada na outra Roda do Suplício e não tive pena alguma dela...
Um estampido vindo dos paredões do prédio rompeu no momento em que os Caçadores absorviam a história da garota.
Mais paredes desabaram. Poeira cobriu a extensão da rua. Multidão afastava e via os entulhos sobrepondo os portões.
- Formidável! Essa garota é formidável – dizia o corpulento doutor Babel. Chegava perto deles.
Cammo mancava. Repuxando a perna esquerda e sorria para Caleb que brigava com um médico para se colocar de pé.
- Essa é a minha garotinha – abriu os braços e Amber correu para ele.
Os vampiros foram os primeiros a abandonar o local evitando os primeiros raios de sol. Mas, menos os que tivessem uma pulseira, artigo, relíquia ou amuleto que reagisse contra ações ultravioletas impedindo que tais vampiros fossem reduzidos a cinzas. Por isso, encantos eram expelidos no local protegendo muitos seres da noite. Sorte dos híbridos como a vampira Amber Knight que não precisa temer a luz do sol.


XXXIV – Emblemático
Escombros se revolviam em meio aos agentes e tratores que trabalhavam por ali.
Dante pegou uma moto que estava estacionada na frente da cafeteria e partiu com sua parceira. Disse a Amber que encontraria um hotel para descansar um pouco e tirar seu sono diurno. Rebecca disse estar louca por um enorme pote de sorvete e trataria de lustrar e recuperar suas armas.
Babel dava uma entrevista a uma rede de TV desconhecida. A repórter tinha os caninos avantajados e seu câmera-man era muito peludo.
Amber e seu pai pegavam um taxi incomum. Uma carruagem pomposa com um cocheiro avançado em idade. O cavalo tinha olhos flamejantes e bufava vapores.
Sarana ficou imóvel vendo o taxi virar a primeira esquina. Cammo sorriu para ela e ela rosnou para ele.
Luke e Tobby devoravam barras de chocolate amargo.
Distante dali Donovam agitava um chocalho no colo de sua mãe. Robert abraçava sua esposa e a consolava.
- Meu amor... não fique assim. Eles reconstruirão um novo prédio no local. O importante é que devida situação poucos se feriram.
- Aquele prédio sempre foi meu local preferido para compras, médicos, salões de beleza – Tânia tentava não dizer nada além do que seria compreensivo e normal para o entendimento seu marido.
A rua tremia com a ação dos tratores e pedras se deslocavam e eram postas em carrocerias de caminhões enormes.
Um cidadão vestido de jaqueta de couro preta com o desenho de um crânio pegando fogo nas costas saiu xingando horrores. Sua moto havia desaparecido no meio da confusão que se instalava ali. As crianças lobisomens caíram na gargalhada vendo o sujeito barbudo pulando e praguejando.
O vento soprou um cheiro horrível. Um edifício próximo dali sacudiu. Uma silhueta se materializou numa sacada. Ouvidos sensíveis de vampiros e lobisomens puderam escutar uma gargalhada desprezível. Máquinas deram uma pausa e agentes do Colegiado atentaram para a figura sobre um prédio. Mas desapareceu diante dos olhares cheios de temores. Logo, voltaram ao trabalho e uma agente negra de saia preta e jaqueta marrom contatou seu superior pelo telefone.
- Libertaram... !
A tarde entrou e um ar de normalidade se apossou do local.




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